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Carlos Russo Jr. | Na morte de Ivan Ilich, despeço-me de meu filho, que partiu

Tolstoi vivenciou uma crise existencial onde tudo perdeu valor e sentido
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul
Florianóolis (SC)

Tradução:

Por volta dos cinquenta e cinco anos de idade, o maior escritor russo de sua época, Liev Tolstoi, interrompe toda a sua enorme produção artística e chega mesmo a renegá-la. Ele tal qual eu, aos setenta e três, nos demos conta do nada imenso do destino de todo o ser humano.

Desde então, o olhar de Tolstoi se voltará para a compreensão do inexplicável, buscará contemplar a angústia primitiva do ser humano e, talvez como poucos, terá a coragem de encarar resolutamente o problema que o destino impõe ao homem: a humanidade interrogando seu destino!

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“Por que viver? Qual a causa de minha existência e a dos outros? Que finalidade tem minha vida e a de todos os seres vivos? O que significa a dualidade entre o bem e o mal que sinto em mim? Como devo viver? O que é a morte? Como e se poderei salvar-me?”. São frases que anotou em uma folha de papel e para as quais buscaria respostas.

Livra-se, então, de toda literatura e em seus estudos somente têm lugar os filósofos. Como neste, tão pouco encontra respostas, afasta-os e debruça-se sobre um único livro: a Bíblia.

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Mas como alcançaria seu objetivo aquela mentalidade aberta, desafiadora, um cristão primitivo em sua essência anarquista, lendo os textos míticos e históricos da Bíblia? Afasta-se também da Bíblia.

Muda agora seu modo de agir! Participa com os camponeses das colheitas, começa por desfazer-se de seus bens materiais, acentua-se o clima de “guerra sem paz” com sua esposa Sônia, e com a maioria de seus quinze filhos.

Dispõe da maior parte de seu patrimônio, cria uma primeira escola modelo rural para os filhos de camponeses.

O grande escritor Turgueniev, de seu leito de morte em 1886, escreve ao amigo Tolstoi uma súplica: “Por favor, volte à literatura, você não tem o direito de privar a humanidade de seu talento imaginativo!”

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Liev Tolstoi mantém ao lado do leito a carta do amigo por quase um mês. Afinal retoma a escrita, uma escrita que jamais será a “descompromissada e livre” literatura de antes.


Obsessão

Agora a morte torna-se um elemento central, quase uma obsessão!

Não que isto refletisse um desejo pessoal de morrer, era sim uma vontade de entender a morte movida por temores, pelo estranhamento, tal como relatou um de seus filhos: “Embora durante mais de trinta e cinco anos Liev não deixasse de falar um só dia na morte, meu pai não a desejava”.

A morte nos seus livros é antes de tudo um elemento catártico do próprio autor. Ele se rebela contra a o paradoxo da mortalidade, sofre com o fato de que a vida dos homens seja submetida por doenças e pelo furor do tempo.

“Nenhum homem, que tem a infância atrás de si, deveria esquecer-se da morte por um só minuto, tanto mais quanto a sua espera constante não só não envenena a vida, mas lhe empresta firmeza e claridade”, diz Tolstoi em uma carta à sua tia.

Tolstoi vivenciou uma crise existencial onde tudo perdeu valor e sentido

Pintura: Gustave Courbet (1819–1877)
Valter, como Ivan Ilich, não temeu a morte, apesar de sempre lutar pela vida!




“A Morte de Ivan Ilitch”

E quando Tolstoi retorna à pena, surge “A morte de Ivan Ilitch”, uma pequena-grande novela, uma epopeia sobre a Vida e a Morte, altamente concentrada, sem desvios nem distrações, uma incrível sobriedade no trato da finitude humana.

“A Morte de Ivan Ilitch” nos introduz no mundo burocrático da Rússia czarista, com seus escritórios cheios de advogados e juristas, membros “da melhor estirpe dentre as elites eslavas”, aqueles cujo poder podem determinar o destino dos cidadãos comuns.

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Ivan Ilitch é um desses importantes funcionários da máquina estatal. Com um bom casamento e gordo salário, ele é o que comumente se considera um homem bem-sucedido. No entanto, aos quarenta e cinco anos, uma misteriosa doença o atinge de surpresa.

Como a medicina, apesar das intervenções médicas repetidas, não lhe dá respostas, só resta suportar a dor. E esta criatura egoísta em todo o seu viver, se agigantará na tenacidade de seu desespero perante a morte.

“O sofrimento maior de Ivan Ilitch provinha da mentira, aquela mentira por algum motivo aceita por todos, no sentido de que ele estava apenas doente e não moribundo, e que só devia ficar tranquilo e tratar-se, para que sucedesse algo muito bom. Mas ele sabia que, por mais coisas que fizessem pouco resultaria disso além de sofrimentos ainda mais penosos e a morte.”

E esta mentira atormentava-o; atormentava-o o fato de que não quisessem confessar aquilo que todos sabiam, que ele mesmo, inclusive, mas procurassem mentir perante ele sobre sua terrível situação, e obrigassem-no a tomar parte naquela mentira e dos procedimentos que os médicos lhe impunham.

“Sentia que ninguém haveria de compadecer-se dele, porque ninguém queria sequer compreender a sua situação”.

 “E se minha vida tivesse sido errada?”, perguntava-se em seu leito de morte. As dores morais, reproduzindo as mesmas incertezas do autor, “eram infinitamente maiores que as físicas”. Na espera pelo último suspiro, ele se conscientiza de toda a miserável vida que construíra e nunca quisera enxergar, erguida sob engodos e aparências. A vida da maioria de nós todos!

“Não havia nada a defender, nem os deveres profissionais, nem a vida regrada, nem a ordem familiar, ou o consumismo e os interesses mundanos. Tudo eram grandes mentiras.”

Por outro lado, seus amigos de trabalho não se importam realmente com a iminente morte do colega e sim com o cargo que este ocupa e que ficará vago em menos de três meses.

Sua presença agonizante é, inicialmente, motivo de angústia e tristeza apenas para a esposa e família; no entanto, gradualmente, angústia e tristeza se transformam em espera ansiosa por um desenlace que tarda…

Solidários a Ivan em sua tangida dor, somente a mulher, um filho e o servo Guerrássin.

A arte de Tolstoi, um “cristão-pagão”, em “Ivan Ilitch” é em sua essência anti-platônica: ela celebra a completa realidade do mundo, um “Reino de Deus” que deve ser celebrada no aqui e agora, única vida real que nos está destinada.

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G. Steiner traça um contraponto entre Tolstoi de “A morte de Ivan Ilitch” e o “Homem do Subterrâneo” de Dostoievski: enquanto este vai até os recônditos da alma, Tolstoi desce ao fundo do corpo, a seus lugares mais sombrios.

Na verdade, é sufocante, angustiante, profundo e bastante pesado para quem se grudou em tantas ilusões na vida quanto o protagonista Ivan Ilitch, no espírito do qual, todos nos enquadramos.

O romance é mais que uma lágrima de lamentação pelo destino inexorável: é um estrondoso berro para que a vida tenha significado e o desperdício não seja a norma geral, ou sinônimo de felicidade.

Talvez “A Morte de Ivan Ilich” seja um dos poemas mais atormentados jamais escritos.


Três dias de agonia

Nos seus últimos três dias de enorme agonia o moribundo sentiu, obnubilado pela morfina e pelo ópio, que alguém lhe beijava a mão.

Viu o filho e a seu lado a mulher a chorar. Deixou, então, de ter pena de si mesmo. Teve compaixão pelo sofrimento daqueles que até mesmo chegara a odiar, pois lhe sobreviveriam.

“Estou a atormentá-los, estarão melhor quando eu tiver morrido. Nesse momento começou a sentir que todo o seu tormento se ia dissipando, escoando de seu corpo pelos poros, e, então, não teve medo da morte, em lugar dela via a luz.”

Ouviu que alguém a seu lado dizia: “Acabou a morte. Ele morreu”.

E Ivan Ilitch morreu!


Adeus, meu filho

Valter nasceu em 1970, sem a presença do pai e sem ele permaneceria por anos, sem dúvida os mais importantes para um ser humano. Seu nome foi uma homenagem póstuma ao Comandante da Resistência à ditadura militar, Joaquim Câmara Ferreira.

O pai era preso político da ditadura. A mãe, também militante, antes de fugir para o exílio teve de socorre-lo de desidratação. O H.C. de Ribeirão Preto aplicou na criança uma papa de hemácias que lhe traçaria o destino e a morte prematura.

A contaminação por hepatite C somente se manifestaria na maturidade.

Valter resistiu com todas as suas forças, o quanto pode. Novos antivirais, finalmente haviam conseguido debelar a infecção, mas a cirrose grave permaneceu.

Valter casou-se na França, teve três filhos. A Vida concedeu-lhe vigor para trabalhar, amar e viajar.

Em dezembro último, após meses de crises e internações hospitalares, seus médicos realizaram um transplante de fígado. Última ponte para a Vida.

Valter foi valente. Teve ulceração intestinal, nova cirurgia. Infecções, novas internações. Quando parecia que a situação clínica iria se estabilizar, meu filho faleceu de morte súbita, no dia 21 de fevereiro de 2023.

Ele, como Ivan Ilich, não temeu a morte, apesar de sempre lutar pela vida! Ao seu lado, a mulher e os filhos. Nunca teve pena de si mesmo e, ao contrário de Ilich, jamais culpou a ninguém pelo destino.

Finalmente, descanse em paz, pois:

“A paz esteja contigo! Podes tomar o caminho da consolação e não tens que preocupar-te com coisa alguma; pensa em como tudo isso é belo e alegra-te, nada mais de dê cuidado! Não te preocupes com os teus membros, nem com os negócios da casa, nem contigo mesmo, nem com que será de ti, nem o que será da vida que fica do outro lado desta. Nada te dês o cuidado, deixas como está, pois que de alguma forma deve ser já que existe; da melhor maneira possível se providenciou para que as coisas se passem desse jeito e não de outro; quanto a ti não te toca mais providenciar sobre nada e podes simplesmente descansar sobre aquilo de que cuidaste. Tudo isso é simplesmente cômodo e tranquilizador. Agora te é permitido repousar! Todos os aborrecimentos se acabaram, todas as tribulações, todos os incômodos. Acabaram-se os sofrimentos físicos, os terrores dos espasmos. Abre-se o cárcere de tua moléstia. Saia dele, livre e incólume vai pelo caminho da consolação que em cada passo conduzem mais profundamente para as mansões da paz. Logo, e nem sequer percebes o passo que para lá te conduzem, te acolhem prados de completa bonança onde nem de longe, nem do modo mais inconsciente te tocará qualquer cuidado daqui e imediatamente ficas livre de toda a moléstia, de toda dúvida a respeito do que é lá e de que será de ti e te espantas de te teres algum dia atormentado com tais escrúpulos, porque tudo é como é e acontece do modo mais natural, mais justo, melhor, na mais profunda harmonia contigo mesmo, pois o que és é, e o que serás, será”.

Adeus Valter, meu filho.

Carlos Russo Jr | Colunista na Diálogos do Sul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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