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Toggle“Temos cessar-fogo após cessar-fogo, sempre com o prenúncio do próximo genocídio, do próximo extermínio, da próxima matança de palestinos. A que nos levará uma interminável sequência de cessar-fogo? A absolutamente nada”. A declaração foi concedida pelo presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Rabah, em entrevista à Revista Diálogos do Sul Global. Ele também avalia como um cenário de risco a posse de Donald Trump nos Estados Unidos, já que ela deve mudar a lógica da agressão israelense ao povo palestino.
Apesar da certa euforia global em torno do anúncio, após meses de negociação, de um cessar-fogo na Faixa de Gaza, Ualid é cético quanto à sua real concretização: “Será como o acordo com Beirute, que foi assinado, mas Israel continuou atacando o Sul do Líbano”.
O jornalista palestino, correspondente da Diálogos do Sul Global na Faixa de Gaza, Wisam Zoghbour, no entanto, está ansioso para o fim dos bombardeios e início da trégua “para parar as mortes, o derramamento de sangue”. Em seu relato, ele descreve que “os corpos dos mártires estão dispersos nas estradas, debaixo dos escombros e das sepulturas temporárias”. Com o cessar-fogo, os palestinos também poderão chorar seus mortos sem o medo de serem eles mesmos bombardeados.
O cessar-fogo foi acordado entre o grupo palestino Hamas, integrantes da Jihad Islâmica e Israel, e deve ter início no domingo (18). As negociações para a trégua ocorreram na cidade de Doha, no Qatar — principal mediador do diálogo, ao lado dos Estados Unidos e do Egito. Milhares de palestinos e cidadãos de outros países do Oriente Médio foram às ruas para celebrar o cessar-fogo.
Biden e Trump reivindicam triunfo
Os presidentes dos Estados Unidos, Joe Biden (em fim de mandato), e Donald Trump (ingressante), reivindicaram nesta quarta o mérito pela conquista. O republicano havia prometido acabar com as duas principais guerras no mundo — provocadas por Israel e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Em sua rede social, antes mesmo de Biden se pronunciar, Trump anunciou: “Temos um acordo para os reféns no Oriente Médio. Eles serão libertados em breve. Obrigado”. Já o atual mandatário destacou que o acordo é “justamente” o que vinha sendo costurado por seu governo desde março do ano passado.
Com duração de seis semanas, o acordo será implementado em três estágios, sendo o último deles a “concretização da paz definitiva”, com o fim do genocídio palestino e a consolidação de um Estado Palestino, assegurou Biden em declarações à imprensa nesta quarta-feira.
De acordo com informações do Qatar, no primeiro momento, que durará 41 dias, o Hamas deverá libertar mulheres, crianças, idosos, doentes e feridos. Israel, por sua vez, deverá libertar palestinos sequestrados em cárceres israelenses. Também será permitida a entrada de ajuda humanitária e a reabilitação de centros médicos, hospitais, padarias, além do abastecimento de combustíveis no país.
Na segunda fase, serão libertados os demais reféns, incluindo soldados do sexo masculino e homens em idade militar. Já na terceira e última fase, serão entregues a Israel os restos mortais de reféns que morreram durante os bombardeios na Palestina. Cada refém israelense tem um “valor de troca” em número de palestinos libertados por Israel.
Desconfiança e descrédito democrata
Com relação ao clima de desconfiança em torno de mais um cessar-fogo, já que Israel historicamente não cumpre os documentos que assina, o primeiro-ministro do Qatar, Mohammed bin Abdulrahman Al Thani, garantiu, em declarações à imprensa, que seu país continuará trabalhando com seus parceiros para garantir que o acordo seja implementado integralmente e que a calma retorne à Faixa de Gaza.
“Começa um momento de responsabilidade para ambas as partes, e que precisa do apoio dos mediadores e da comunidade internacional para ser bem-sucedido”, afirmou. Na sequência, garantiu: “Nunca vamos desistir do povo de Gaza”.
Por sua vez, Joe Biden garantiu que “esse cessar-fogo será permanente e dará início ao grande plano de reconstrução de Gaza”. “Essa foi uma das negociações mais difíceis que já realizei”, acrescentou em tom triunfalista, para depois enumerar, orgulhoso, todos os atos de guerra cometidos por Israel com o apoio dos Estados Unidos em diversos países do Oriente Médio nos últimos 15 meses.
Biden ainda disse esperar um futuro para uma Palestina “livre do Hamas” e com um “Estado para chamar de seu”. Também destacou que, embora o acordo tenha sido costurado por seu governo, ele será implementado pela próxima gestão, sinalizando que houve cooperação com os republicanos.
Ao fim da coletiva, ao ser questionado se o acordo só foi possível devido à intervenção de Trump, Biden foi categórico: “Você só pode estar de brincadeira”. Rabah avalia com descrença o esforço democrata para obter a paternidade do acordo. Afinal, foram os democratas, e não os republicanos, que estiveram à frente dos Estados Unidos nos piores momentos para o povo palestino. Ele ainda ressaltou que Biden entrará para a história como o responsável pelo genocídio palestino.
Reunião em Oslo
Também nesta quarta-feira, enquanto as negociações de cessar-fogo aconteciam em Doha, a Noruega sediou uma reunião da Aliança Global para a Implementação da Solução de Dois Estados. Participaram do encontro o ministro das Relações Exteriores da Noruega, Espen Barth Eide, o primeiro-ministro palestino, Muhammed Mustafa, o coordenador especial da ONU para o Oriente Médio, Tor Wennesland, o diretor-geral da UNRWA, Philippe Lazzarini, além de mais de 80 países e organizações.
Mustafa reiterou que não aceitará qualquer tentativa de separar a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, e que apenas uma liderança palestina legítima e o Governo do Estado da Palestina poderão governar o território.
“Nós, como Governo do Estado da Palestina, estamos prontos para assumir nossas responsabilidades na Faixa de Gaza, como fizemos antes, e para implementar a Resolução 2735 do Conselho de Segurança da ONU, e reunificar a Cisjordânia, incluindo Jerusalém, e a Faixa de Gaza sob um único governo.”
Cessar-fogo é imprescindível, mas é preciso dar fim à ocupação
As declarações de Muhammed Mustafa encontram eco em Ualid Rabah, que destaca a importância do acordo: “É imprescindível para qualquer ação. Afinal de contas, a iniciativa da guerra, o ataque bélico, resultam em destruição, feridos, mortos (inclusive por fome e sede), escombros, doenças, etc.”
Porém, prossegue: “Não adianta falar em cessar-fogo sem o fim da ocupação, inclusive da Cisjordânia. É preciso haver o reconhecimento do Estado Palestino, garantir o retorno dos palestinos, assegurar sua segurança e liberdade de ir e vir. Sem isso, não haverá paz.”
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Outro fator determinante, lembra Ualid, é a retirada dos colonos da Cisjordânia e dos soldados israelenses de Gaza. Ele lembra que a zona de segurança na fronteira de Gaza até outubro de 2023 era de 300 metros dentro do território palestino. “Se qualquer palestino ingressasse na área, era executado por Israel. Agora, Netanyahu pretende alargar essa faixa para 1,5 km, explica o porta-voz: “Isso é impensável e inaceitável. É evidente que Israel quer normalizar a ocupação até tornar inviável o Estado da Palestina.”
O problema: os EUA
Avaliando a chegada do acordo desta quarta apenas nos últimos dias da presidência de Biden, Ualid Rabah assinala que um terço do atual governo dos Estados Unidos foi dedicado à administração do genocídio palestino. Ele relembra os vetos a propostas debatidas na ONU — inclusive de autoria do Brasil — e observa que, desde a resolução de cessar-fogo aprovada em 28 de março de 2024 no órgão, 25 mil palestinos foram exterminados devido à falta de implementação. Neste sentido, ele afirma:
“Só o veto dos EUA impede que os palestinos tenham seu Estado soberano, reconhecido na ONU e integrando-a como Estado de pleno direito. Não é Israel o problema; o problema são os EUA.”
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Se a intenção da administração Biden era se colocar como responsável pela suspensão da matança em Gaza, Rabah lembra que, desde 1916, democratas, e não republicanos, estiveram à frente dos EUA nos momentos mais trágicos do povo palestino:
“Foi Biden o presidente estadunidense mais genocida da história contra a Palestina. Essa é a maior matança de mulheres, crianças e civis proporcionalmente da história humana”, observa. “Estamos com 9.989 crianças exterminadas por milhão de habitantes nesses 466 dias de genocídio. Na Segunda Guerra Mundial, que durou seis anos, foram 2.813 crianças por milhão”, explica.
Outros números citados por Ualid ajudam a compreender a dimensão do massacre. Segundo ele, 2,7% da população de Gaza foi morta desde 7 de outubro de 2023, o que equivaleria, proporcionalmente, a 5,5 milhões de pessoas no Brasil ou 20 milhões na Europa. Além disso, os Estados Unidos gastaram R$ 2,5 milhões por cada palestino assassinado em Gaza no mesmo período.
Trump e o novo padrão de destruição
A chegada de Trump, assinala Ualid Rabah, deve marcar o início de um novo padrão de destruição da Palestina: “Dar sequência aos Acordos de Abraão, que normalizam as relações dos países árabes com Israel, sem a exigência de um Estado Palestino, conforme originalmente pretendido pela Liga dos Países Árabes”.
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“O tratado prevê a manutenção da colonização da Palestina, a anulação da soberania palestina sobre terra, ar e mar, e a segurança da Cisjordânia e de Gaza sob Israel e a inexistência de um exército palestino; permanência de Jerusalém como capital israelense; fim do direito de retorno dos palestinos; e fim da atuação da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA).
Reflexos no Oriente Médio
Em entrevista à Revista Diálogos do Sul Global, Amyra El Khalili, editora das redes do Movimento Mulheres pela P@Z!, declarou que falta otimismo em relação ao cessar-fogo: “Não é de fácil implementação, e sabemos que está vindo na esteira da posse de Trump e da saída de Biden.” Ela também destacou que “Israel não cumpriu nenhum acordo anterior, incluindo o de cessar-fogo com o Líbano, que foi violado mais de mil vezes, segundo analistas”.
Ualid Rabah compartilha dessa visão, afirmando que a negociação desta quarta-feira repetirá a situação da nação libanesa: “Israel não se retirou completamente, pediu 60 dias, continuou atacando o Sul do Líbano e segue atacando outras regiões do país até agora. Inclusive, nesta segunda-feira (13) houve novos ataques”, lembra.
In Khan Younis, #Gaza, thousands of displaced people queue for food for hours on end. With supplies very scarce, many of them leave empty-handed.
Time is running out, while the needs continue to increase quickly and massively.Only a #CeasefireNow can end this humanitarian… pic.twitter.com/QTX53ZjP6w
— UNRWA (@UNRWA) December 24, 2024
Neste sentido, ele afirma não acreditar que Israel respeitará o tratado, sob a alegação de combater o “terrorismo” em Gaza. A negociação determina, inclusive, que o exército sionista poderá sobrevoar a região para operações de reconhecimento: “Qual é o objetivo do reconhecimento? Seguramente atingir alvos que Israel decida que serão objetivos militares viáveis”, assevera.
A confiança de que Benajmin Netanyahu respeitará o acordo também perde força diante dos eventos na Síria. Desde a queda de Bashar al-Assad, substituído pelo novo regime de Abu Mohammad al-Julani com patrocínio da Otan, Israel tem invadido e atacado o país sob pretexto de segurança, recorda Rabah: “Seguramente, o futuro reserva um tom muito sombrio para o Oriente Médio”, lamenta.
A confiança de que Benajmin Netanyahu respeitará o acordo também perde força diante dos eventos na Síria. Desde a queda de Bashar al-Assad, substituído por novo regime — de Abu Mohammad al-Julani — patrocinado pela Otan, Israel tem invadido e atacado o país sob pretexto de segurança, recorda Rabah: “Seguramente, o futuro reserva um tom muito sombrio para o Oriente Médio”, lamenta.
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Amyra El Khalili, por sua vez, analisa que o avanço sionista sobre o território sírio visa, além de terras, a água do país para suprir sua agricultura e indústria israelenses: “Israel esta assentando mais e mais colonos em uma área que a infraestrutura de energia, água e esgoto está precária e destruída, pelo próprios ataques de Israel às terras ocupadas palestinas”, diz.
Isso está relacionado, segundo a analista, com o mantra expansionista da Grande Israel, o que diminui ainda mais as chances de sucesso do cessar-fogo negociado nesta quarta: “É difícil de ser implementado e precisará de tempo, isso, se Israel não inventar mais desculpas, sabotar o acordo ou mesmo ‘decapitar seu negociador’ como sempre fez”.
Reorganização palestina
“Independentemente do cessar-fogo e de outras medidas, é fundamental que os palestinos coloquem em prática o acordo alcançado em Pequim no ano passado”, afirma Ualid Rabah, em referência ao histórico pacto firmado em julho de 2024, na China.
As negociações reaproximaram o Hamas, que comanda a Faixa de Gaza, e o Fatah, que governa a Cisjordânia. Os grupos, que estavam rompidos desde 2007, concordaram em integrar suas forças à Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e formar um governo nacional de consenso.
É preciso “haver uma reconciliação nacional entre todas as forças, a construção de um governo de unidade nacional, inclusive com características emergenciais para a reconstrução de Gaza”, exorta Rabah.
Neste sentido, ele repudia qualquer possibilidade de participação de Israel, EUA e demais potências que participam do genocídio palestino, na reconstrução de Gaza: “Não podem eles e suas empreiteiras, seus empresários, lucrarem com a destruição de Gaza”.
O presidente da Fepal alerta que nações pró-sionistas seguramente apagarão indícios e provas materiais do genocídio: “Somente países, potências e atores isentos, neutros e honestos poderão participar, coordenados pelos palestinos num governo de unidade nacional”, declara. Do contrário, “fecharemos a conta não em zero, muito pior: zero somado a um genocídio”, conclui.
Esperança de reencontro
O jornalista palestino e correspondente da Diálogos do Sul Global na Faixa de Gaza, Wisam Zoghbour, em comentário enviado à nossa redação, afirma que Gaza aguarda ansiosamente pelo início do cessar-fogo, agendado para o próximo domingo (19).
“Para parar as mortes, o derramamento de sangue. Os corpos dos mártires estão dispersos nas estradas, debaixo dos escombros e das sepulturas temporárias”, relata.
Ainda segundo o comunicador, o fim dos bombardeios dá ao povo palestino a oportunidade de se reencontrar após a separação imposta pelo conflito e pelas barreiras geográficas:
“Perdemos muitos e pagamos altos preços, mas a caminhada vai continuar e vamos manter nossas esperanças. Apesar da nossa dor, vamos reviver o que a ocupação destruiu.