A primeira etapa da jornada da Colômbia rumo à democracia plena, foi concluída com a eleição de Gustavo Petro em 19 de junho. A etapa seguinte e não menos difícil será mudar os parâmetros de um Estado baseado no conluio da política com com o crime organizado, na ingerência imperialista dos EUA e no apodrecimento das instituições públicas.
Em que medida estamos presenciando uma nova onda progressista na América Latina e o que significa exatamente isso? Quais as perspectivas de retomada da integração latinoamericana?
Assista na TV Diálogos do Sul
Para responder estas e outras dúvidas, o ComunicaSul entrevistou em Bogotá o Economista e Cientista Político Jairo Estrada Álvarez, Professor do Departamento de Ciência Política, Coordenador Acadêmico do Mestrado em Estudos Políticos Latino-Americanos da Universidade Nacional da Colômbia e Director do Jornal Izquierda.
Estrada participou das negociações de Havana que resultaram no Acordo de Paz entre o governo e a guerrilha das FARC.
Caio Teixeira
"Dado o fortalecimento até agora previsível da OTAN com seu avanço geográfico, a ameaça de guerra, em vez de recuar, é cada vez mais forte"
ComunicaSul – O Presidente eleito Gustavo Petro disse em campanha que a Colômbia não pode viver da exportação de carvão, petróleo e cocaína enquanto importa tudo o mais, incluindo bicicletas, e que para mudar precisa se industrializar e se transformar numa sociedade do conhecimento, investindo na educação para todos, entre outras coisas. A industrialização do país não é uma tarefa simples ou rápida, mas a China demonstrou que é possível. Como isto pode ser feito na Colômbia e que resultados podem ser esperados em quatro anos de governo?
Jairo Estrada Álvarez – Após mais de três décadas de neoliberalização, que – entre outras coisas – resultou na formação de um regime de acumulação financeira baseado em economias extrativistas, é válido e necessário considerar uma recuperação do aparelho produtivo industrial e agrícola extremamente reduzido do país, o que implica também uma redefinição substancial do padrão energético baseado em combustíveis fósseis.
O anúncio de um redirecionamento da economia para a recuperação da produção industrial proposto pelo candidato Gustavo Petro é, neste sentido, uma proposta necessária, para dizer o mínimo. Até agora, porém, trata-se de uma proposta com elaborações muito básicas, que não permitem esclarecer em profundidade como se conseguiria uma tal reorientação. Os elementos para uma melhor avaliação resultarão dos desenhos, ações e medidas de política pública concretas propostas pelo presidente eleito no seu plano de desenvolvimento e na estruturação do orçamento público durante os próximos quatro anos.
Evidentemente, não se pode esperar que a industrialização do país possa derivar de um período de governo, quando a experiência histórica a nível internacional e no que respeita ao aparelho industrial precário que surgiu na Colômbia até ao final dos anos 80 mostra que se trata de um processo a longo prazo. No máximo, poderia ser considerado lançar as bases para redirecionar parcialmente a acumulação capitalista para a acumulação industrial e como parte de um processo mais complexo de “desneoliberalização”, cujo alcance e contornos durante um governo Petro não são previsíveis e se apresentam moderados dados os limites ideológicos e programáticos do progressivismo colombiano, bem como as condições estruturais que um tal projeto teria de enfrentar.
Em particular, seria necessário saber, entre outras coisas, como é concebida esta finalidade industrializadora na presença de configurações de uma economia capitalista global que fechou efetivamente o espaço para projetos de “capitalismo nacional”; como ler as relações persistentes de dependência, incluindo a dependência econômica e tecnológica; como lidar com relações de propriedade altamente concentradas e centralizadas que se expressam na existência de estruturas empresariais transnacionais ou “grupos econômicos” entrelaçados com o capitalismo global com predominância de negócios financeiros; como são considerados os quadros normativos derivados tanto de uma ordem supranacional que protege os direitos da (grande) propriedade privada capitalista, como os acordos de comércio livre e os acordos para a promoção e proteção recíproca dos investimentos assinados pelos governos neoliberais, e também de uma certa “constitucionalização” da política econômica inspirada na chamada teoria econômica dominante (neoclássica – neoliberal). E também, como conter a hemorragia “desacumulativa” causada pelo pagamento do serviço da dívida pública que durante o governo Duque atingiu máximos históricos de 69% do PIB, projetados para o final de 2022.
Colômbia: Para juventude, Petro e Francia são esperança contra retrocesso
Em suma, estamos frente a uma tarefa louvável e necessária cuja realização exigiria um governo com a decisão política (e a possibilidade) de ir muito mais longe do que aquilo que tem anunciado até agora. Neste ponto, é necessário esperar e ver como será decantada a proposta econômica contida no programa do Pacto Histórico, considerando que, para alcançar a vitória eleitoral histórica do progressivismo sócio-liberal, para além de um apoio social e popular maciço, foi necessário chegar a acordos com setores do establishment, que levaram à moderação de fato das propostas iniciais, a fim de proporcionar “paz de espírito” aos mercados, agências de avaliação de risco, organizações multilaterais, grupos econômicos e grandes empresas.
O Presidente eleito Gustavo Petro afirmou que a base do seu “modelo econômico” está no desenvolvimento do capitalismo, mais especificamente do capitalismo produtivo. A rigor, esta não é uma nova formulação. Já estamos familiarizados com ela a partir das experiências de movimentos progressistas na região. Estas experiências ensinam-nos que não há bons ou maus capitalismos; que há simplesmente capitalismo; mostraram-nos que não foi possível canalizar o aparelho produtivo para processos de reindustrialização. Estaremos atentos para ver como a proposta do Presidente eleito Petro toma forma neste campo e que propostas concretas apresenta para então podermos fazer uma avaliação mais criteriosa e saber se estamos perante uma exceção. Em todo o caso, chama atenção o seu anúncio de estimular a economia popular e a sua ideia de uma “economia plural”, que parece recuperar aspectos da experiência boliviana.
Por outro lado, juntamente com os recursos necessários para reorientar o “modelo econômico” para o capitalismo produtivo, há a questão das resistências sistêmicas derivadas do poder do capital financeiro e dos latifúndios improdutivos. Na minha opinião, estes aspectos dependem dos resultados da anunciada reforma fiscal, da reforma das aposentadorias, da intermediação financeira na saúde, e da promoção de um banco estatal popular, bem como de uma reforma agrária abrangente, entre outros. Estas são questões importantes que irão testar a natureza progressista do novo governo e as suas reais possibilidades.
A formação da equipe econômica, a legislatura que começa em 20 de Julho deste ano, e o projeto de Plano Nacional de Desenvolvimento que o novo presidente deve apresentar ao Congresso até 7 de Fevereiro de 2023, o mais tardar, lançará luz sobre estas questões contribuindo para dissipar algumas das atuais preocupações. No futuro imediato, acredito que o Presidente Petro terá de se concentrar em medidas de choque – com a “panela vazia” e o déficit orçamentário deixado pelo desastroso governo Duque – para enfrentar os problemas da fome e da pobreza. Os contornos da sua política econômica para desenvolver o capitalismo produtivo serão mais visíveis a partir de 2023 e com resultados prováveis nos anos seguintes.
Petro tem afirmado também que as características da corrupção na Colômbia são muito particulares porque existe um casamento entre o Legislativo, o Executivo e o Exército com os traficantes de droga que os financiam. Em teoria, a Colômbia é uma democracia. Na sua opinião, pode um regime com este tipo de compromisso entre o poder e a criminalidade ser considerado uma democracia?
A rigor, o atual regime de dominação de classe na Colômbia não pode ser considerado um regime democrático, à luz do que é teoricamente definido como democracia. Não representa sequer uma aproximação à democracia liberal; nem a uma democracia eleitoral, embora funcione como se fosse uma democracia e garanta, desde o início da Frente Nacional em 1958, a realização de eleições de quatro em quatro anos. Essencialmente, é um regime clientelista, corrupto, criminoso e mafioso, características estas estruturalmente entronizadas. Quando as suas condições de reprodução e permanência foram ameaçadas, esse regime não poupou a utilização de quaisquer recursos, incluindo o exercício da violência sistêmica, as práticas de terrorismo de Estado e a formação de organizações criminosas de contra-insurgência, que incluíram o mercenarismo paramilitar. Tal regime, que se inspirou na doutrina da “segurança nacional” e contou com a contínua tutela da principal potência imperialista, considerando-a seu principal aliado na Nossa América, pode ser definido como uma “democracia de exceção”, como um regime de permanente excepcionalidade
Assista na TV Diálogos do Sul
Esta natureza do regime também explica a importância para a Colômbia, e eu diria para a região, do projeto social-liberal progressista de Petro, apesar da moderação, possibilidade e narrativa do “politicamente correto” que geralmente prevalece no progressismo atual. A provável continuação deste trabalho incansável de formiga merece ser avaliada, sabendo que as formigas do progressismo não são suficientes e podem mesmo desvanecer-se, como foi demonstrado nas experiências das últimas décadas na nossa América. Este é um desafio indiscutível para o movimento social e popular colombiano e uma tarefa a ser feita como parte da reconstrução necessária de um projeto revolucionário de esquerda, que está atualmente ausente dos grandes debates e processos que decorrem no país.
É de notar que o atual momento político-cultural é produto de acumulações históricas de cansaço e descontentamento social e popular, dos efeitos do acordo de paz assinado com a guerrilha das FARC-EP em 24 de Novembro de 2016, da greve nacional de 28 de Abril de 2021 e da rebelião social dos meses seguintes. Também o grave impacto da pandemia de covid-19 na população. O projeto progressista é parcialmente uma expressão disto, embora tenha a sua própria dinâmica e limites devido à sua compreensão da política, do político e da ação política, circunscrita mais a espaços institucionais e com tendências para conter transgressões e transbordamentos. A este respeito, por enquanto, a menos que a dinâmica do conflito social e de classe imponha novas pressões, trata-se de um projeto de alternância eleitoral.
Como intervir num sistema de representação política que não representa a vontade do povo, mas que é constituído e está funcionando, investido de poder, especialmente quando as forças armadas se comportam quase como um poder independente?
Tal como concebido no ponto 2 do Acordo de Paz sobre “Abertura democrática e participação política”, a Colômbia requer uma profunda reforma do seu sistema político e eleitoral. Este ponto não foi cumprido pelo Estado colombiano. Tal como aconteceu com a maioria das disposições do Acordo, faz parte das obrigações adiadas neste caso pelo atual governo de Iván Duque, um governo do consenso da direita colombiana, que está empenhado na tarefa de “rasgar” o que foi acordado em Havana, com evidentes realizações nesse sentido.
Intervir no sistema político de representação implica reanimar o acordo de paz em relação ao ponto 2 e realizar a reforma política e eleitoral nele prevista, que evidentemente busca interromper as condições de reprodução da “democracia de exceção” em relação à estrutura fraudulenta sobre a qual se assenta. Em termos concretos, trata-se de retomar a primeira proposta elaborada pela Missão Eleitoral Especial mandatada pelo acordo de paz, que foi descartada pelo governo de Santos e enterrada pelo Congresso da República na legislatura 2017/2018.
Dadas as condições colombianas, com o exercício estrutural da violência política, não é possível pensar em ação política e participação sem garantias para os partidos políticos que se opõem ao regime existente (para além do já existente “estatuto da oposição”) e movimentos sociais e políticos que se dedicam à política mas não participam em eleições, e sem o estabelecimento de condições e garantias de mobilização e protesto social. E claro, com a prestação de garantias de segurança para o exercício da política, a começar pela proteção das vidas daqueles que se dedicam à política e protestam e se mobilizam. Este não é um assunto pequeno num país com quase 1.200 líderes sociais e 331 ex-membros das FARC-EP assassinados após a assinatura do acordo de paz, e no qual os desaparecimentos e remoções forçadas, os massacres e o tratamento de guerra ao protesto social são “normalizados”.
Neste sentido, tal como previsto no ponto 3.4 do acordo de paz, é necessário, entre outras coisas, tanto desmantelar as estruturas criminosas de contra-insurgência, incluindo seus braços mercenários paramilitares, como redefinir a política de segurança a partir de um conceito de segurança humana.
Assista na TV Diálogos do Sul
Quanto ao poder dos militares, erigidos num complexo militar, econômico, político e de comunicações, é tempo de o país abordar abertamente esta discussão e seguir o caminho não só da superação da doutrina ainda predominante da “segurança nacional”, mas também de uma definição institucional mais precisa do lugar e do papel das forças militares numa ordem genuinamente democrática. Isto inclui, entre outras coisas, discutir a sua dimensão, limitando as suas esferas de influência e ação (na economia, educação, comunicação, etc.), reconsiderando o seu peso no orçamento público, e as condições para a transição de uma grande parte dos militares para a vida civil, num país cujo horizonte é a construção da paz. Como proporção da população, a Colômbia tem as maiores forças militares da região.
Pensar numa verdadeira transição democrática na Colômbia pressupõe a consecução de uma paz completa. Isto implica a plena implementação do acordo de paz, uma solução política com as organizações que persistem na revolta armada, e a sujeição à justiça estatal das organizações criminosas derivadas da economia ilícita e dos paramilitares.
O acordo de paz celebrado com as FARC foi muito mais do que um simples cessar-fogo e anistia para os guerrilheiros. Foi a construção de um caminho de mudança para a Colômbia que, em certa medida, é muito semelhante à plataforma de Petro de reconstrução da democracia e da economia, ao incluir uma grande parte da população nos benefícios da civilização. Poderia explicar exatamente este conteúdo pouco divulgado do acordo de paz e comentar a sua semelhança com as propostas de Petro?
O acordo de paz contém as condições básicas exigidas pelos guerrilheiros das FARC-EP para fazer a sua transição para a vida política legal. Em termos do seu conteúdo, o acordo de paz inclui as aspirações dos setores populares, democráticos e progressistas da sociedade colombiana, em grande medida historicamente adiadas devido à relutância das classes dominantes em mudanças que consideram afetar e desestabilizar a dominação de classes. O seu âmbito é reformista e modernizador da ordem social existente; não procura ultrapassá-la, mas se for cumprido poderá contribuir para desencadear transformações de âmbito mais estrutural. A este respeito, o Acordo possui um poder transformador que, para ser desencadeado, requer as condições políticas que lhe permitam fazê-lo. Após alguns desenvolvimentos iniciais importantes, limitados em qualquer caso, no sexto ano da sua implementação, o Acordo encontra-se num estado precário e distante dos seus objetivos originais, especialmente no que diz respeito à superação definitiva do confronto armado e do exercício estrutural da violência.
O conteúdo básico do Acordo expressa a intenção de democratizar a sociedade colombiana e de conduzi-la ao longo de um caminho para a regulação dos conflitos sociais e de classe através de meios exclusivamente políticos. Em primeiro lugar, inclui a implementação de uma reforma rural abrangente, que, sem afetar o sistema predominante de propriedade fundiária latifundista e do “agronegócio”, procura fazer avançar a materialização dos direitos das populações rurais, especialmente dos camponeses pobres, para estimular a sua economia, particularmente a produção alimentar, e para reconhecer e apoiar territórios que foram particularmente afetados pela guerra. Em segundo lugar, tem disposições para promover e expandir um processo de abertura democrática, no centro do qual está a superação das atuais características do regime político, como já foi mencionado. Em terceiro lugar, oferece uma forma de enfrentar o negócio transnacional do tráfico de drogas, transcendendo a fracassada “guerra contra a droga” e enfatizando políticas para enfrentar os elos mais fracos do negócio: a substituição voluntária de culturas ilícitas e planos de desenvolvimento alternativos para os produtores de folha de coca, e uma abordagem de saúde pública ao problema do consumo, ao mesmo tempo que contém disposições para combater as outras fases, aquelas em que quase todos os lucros desta economia são mantidos. Em quarto lugar, o desenho original do Acordo inclui um sistema robusto de verdade, justiça, reparação e não repetição, para abordar os direitos abrangentes das vítimas do conflito social armado, baseado no reconhecimento das múltiplas responsabilidades pelo que aconteceu durante o longo confronto armado, a criação de uma justiça especial para a paz e a criação de uma comissão da verdade, entre outros. Em quinto lugar, estabeleceu as condições específicas para a reincorporação na vida política legal daqueles que estavam em revolta armada contra o Estado, incluindo a transição da guerrilha das FARC-EP para um partido político. Finalmente, o Acordo contém disposições para a sua implementação através de processos de planejamento e da concepção de políticas públicas. Tudo isto é verificado pelas Nações Unidas e acompanhado pelos países garantidores, Cuba e Noruega. O Acordo é também reconhecido pela sua integração inovadora das chamadas abordagens étnicas e de gênero.
Como os seus pontos tratam de propostas e disposições reformistas e modernizadoras da ordem social atual, o Acordo coincide com aspectos do programa de progressista social-liberal, embora não se resuma ao mesmo, da mesma forma que tal programa não se resume ao Acordo de Paz. Entre outras coisas, porque no caso do Acordo estamos na presença de um programa em busca da superação do confronto armado, e no caso do programa progressista o que temos é um programa governamental, com um âmbito e temas mais amplos. O programa de Petro tem uma manifestação de empenho na plena implementação do Acordo de Paz, embora, na minha opinião, sem explorar suficientemente as possibilidades que oferece e sem reconhecer suficiente e explicitamente todo o seu potencial.
Resta saber como um provável governo progressista implementará específica e concretamente o Acordo de Havana. A concepção do Plano Nacional de Desenvolvimento, que de acordo com a Constituição deve incorporar um capítulo específico sobre a implementação (incluindo o seu financiamento), lançará luz sobre o compromisso real do novo governo para com a implementação do acordo de paz. Por enquanto, deve afirmar-se que a opção progressista que hoje chegou ao poder na Colômbia também se baseia nas novas condições políticas proporcionadas pelo acordo de paz. E que, ao contrário das suas propostas programáticas, o Acordo contém compromissos já assumidos – pelo menos formalmente – pelo Estado colombiano, que estão à espera de serem cumpridos não exigindo qualquer tipo de negociação.
As últimas eleições presidenciais na Argentina, Bolívia, Peru, México, Honduras, Chile e agora Colômbia, vencidas por candidatos progressistas, juntamente com a possibilidade concreta de eleição de candidato com o mesmo perfil este ano no Brasil, podem ser interpretadas como o início de um novo ciclo na América Latina? O que poderia esta nova correlação de forças significar para o fortalecimento político deste bloco do sul na geopolítica da região?
A caracterização dos processos na Nossa América com base na existência de “ciclos políticos” pressupõe uma abordagem problemática que “naturaliza” a trajetória dos processos políticos. Embora à primeira vista, com base nos resultados eleitorais, a existência de um ciclo pareça verificável, creio que esta abordagem assume um movimento oscilante de processos sociais que sugere que a fase inicial é seguida de expansão e boom e depois da fase de crise e depressão, tal como formulada na teoria do “ciclo econômico”. Prefiro afirmar que o curso do processo político é marcado por conflitos sociais e de classe e, nesse sentido, é expressivo de uma disputa intensa e contínua, o que não exclui a contingência. O que vimos na região foi a disputa sobre a Nossa América, que inclui a disputa geopolítica e o questionamento (ou não) da posição hegemônica dos Estados Unidos. Os governos nacionais-populares e progressistas da primeira década deste século (em alguns casos que se estenderam para além), juntamente com Cuba, mostraram, do ponto de vista conceitual, nas suas visões programáticas e nas suas ações, um projeto de integração; em alguns casos reivindicaram a ideia da “Pátria Grande” e exibiram traços claramente anti-imperialistas; procuraram mesmo desenvolver as suas próprias instituições. Obviamente, os seus compromissos foram desiguais e diferenciados, assim como os resultados em perspectiva histórica.
Os projetos progressistas dos dias de hoje na Nossa América, vistos como um todo, são mais tênues e nebulosos nas suas intenções integracionistas e definitivamente sem vislumbres de anti-imperialismo, pelo menos como o temos conhecido. Estou convencido de que a questão não é de estilo e forma, mas de concepção, embora se possa dizer que a forma também faz parte do conteúdo. Vejo no progressismo atual – como parte do pragmatismo político – um medo de reconhecer linhas de continuidade com o passado das primeiras décadas deste século, especialmente no que diz respeito aos governos que eram mais radicais. Claro que estes podem ser criticados e em relação a eles se guardar distância. Aqueles que governaram na região, para além dos seus sucessos e erros incontroversos, enfrentaram a mais forte resistência do imperialismo, das forças de direita e do interesse capitalista geral, com as mais variadas estratégias. A luta política na Nossa América nas primeiras duas décadas tem sido muito acentuada e intensa.
Encontro um progressismo atual que é geralmente disciplinado ao que a direita tem definido como os contornos e características do campo político, e relutante em elaborar as suas próprias experiências vividas. Muito tímido, por exemplo, sobre o significado da valiosa e complexa experiência da revolução cubana; mais preocupado em mostrar distância – sem a necessária avaliação complexa – do processo venezuelano; reclamando valores democrático-liberais que, embora válidos, não são suficientes para empreender transformações substantivas das nossas sociedades. Compreendo, por outro lado, que não existem líderes políticos com o alcance dos da primeira década, que foram fundamentais para falar de um projeto político-cultural regional. Os atuais estão mais circunscritos aos seus respectivos países; não parecem transcender o próprio espaço nacional-estatal. É claro que também aqui existem exceções e nuances. Noto-os sobretudo na política externa do atual governo mexicano de López Obrador.
Tudo isso não me impede de afirmar que um olhar sobre o campo político atual na América Latina, quando visto da perspectiva dos governos, mostra que há um enfraquecimento dos projetos políticos de direita, o que deveria levar a considerações sobre um momento geopolítico diferente. Resta saber se tal momento levará a um forte renascimento de um conceito de integração baseado na autodeterminação e soberania e a um questionamento real e material da hegemonia dos EUA.
No caso do progressismo de Petro, foi expressa a intenção de construir um consenso regional em torno das alterações climáticas, a transição gradual para um padrão energético baseado em energia limpa e a tendência para a superação do extrativismo predatório. Tal pretensão tem um significado inegável. Torná-la realidade significa questionar em profundidade as relações persistentes de dependência, enfrentando o poder das empresas transnacionais, confrontando as pressões das organizações multilaterais e enfrentando o regime de acumulação financeira que hoje também se baseia nas economias extrativistas. O quanto o governo Petro se move (ou pode mover-se) nesta direção ainda se está por ver.
Como poderá a nova correlação de forças que está a surgir entre o Oriente e o Ocidente como resultado do conflito na Ucrânia influenciar a América Latina?
É ainda prematuro tirar conclusões sobre a correlação de forças e sobre a situação geopolítica global que surgirá após a guerra na Ucrânia. É um conflito em pleno andamento. É verdade que há sinais de uma remodelação da ordem mundial, especialmente da ordem pós-soviética acordada pelas potências imperialistas com Gorbachev. Dado o fortalecimento até agora previsível da OTAN com seu avanço geográfico, a ameaça de guerra, em vez de recuar, é cada vez mais forte, tal como as possibilidades de intervenção imperialista no futuro. Não está claro qual será a posição da Rússia, cujas ações não podem ser lidas com uma espécie de nostalgia bolchevique. O papel da China na reconfiguração em curso da ordem mundial também não ficou claro em profundidade, para além do fato de representar uma opção para a construção de uma nova hegemonia, até agora com características que não podem ser comparadas às de uma potência imperialista clássica. A nossa região não parece desempenhar um papel significativo neste contexto complexo, especialmente porque não se percebe uma intenção de ação conjunta, e a integração política, econômica, social e cultural baseada em novos pressupostos ainda não está na agenda do progressismo atual. O que se esperaria, pelo menos, é tornar o objetivo fundador da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) de tornar a Nossa América um território de paz uma realidade. Mas isto pressupõe que a CELAC esteja viva, o que requer determinação, vontade política e uma correlação de forças para tornar isto possível. O mesmo se pode dizer da situação da Unasul.
Caio Teixeira | ComunicaSul
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
Assista na TV Diálogos do Sul
Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.
A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.
Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:
-
PIX CNPJ: 58.726.829/0001-56
- Cartão de crédito no Catarse: acesse aqui
- Boleto: acesse aqui
- Assinatura pelo Paypal: acesse aqui
- Transferência bancária
Nova Sociedade
Banco Itaú
Agência – 0713
Conta Corrente – 24192-5
CNPJ: 58726829/0001-56
Por favor, enviar o comprovante para o e-mail: assinaturas@websul.org.br
- Receba nossa newsletter semanal com o resumo da semana: acesse aqui
- Acompanhe nossas redes sociais:
YouTube
Twitter
Facebook
Instagram
WhatsApp
Telegram
*A reprodução deste conteúdo é livre, desde que citada a fonte e a lista de entidades e organizações que apoiam esta cobertura, como no rodapé a seguir.
* A Agência ComunicaSul esteve na Colômbia cobrindo o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais graças ao apoio das seguintes entidades: Associação dos/das Docentes da Universidade Federal de Lavras-MG, Federação Nacional dos Servidores do Poder Judiciário Federal e do MPU (Fenajufe), Confederação Sindical dos Trabalhadores/as das Américas (CSA), jornal Hora do Povo, Diálogos do Sul, Barão de Itararé, Portal Vermelho, Intersindical, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Sindicato dos Bancários do Piauí; Associação dos Professores do Ensino Oficial do Ceará (APEOC), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-Sul), Sindicato dos Bancários do Amapá, Sindicato dos Metroviários de São Paulo, Sindicato dos Metalúrgicos de Betim-MG, Sindicato dos Correios de São Paulo, Sindicato dos Trabalhadores em Água, Resíduos e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp Sudeste Centro), Associação dos Professores Universitários da Bahia, Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal do RS (Sintrajufe-RS), Sindicato dos Bancários de Santos e Região, Sindicato dos Químicos de Campinas, Osasco e Região, Sindicato dos Servidores de São Carlos, Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal de Santa Catarina (Sintrajusc); mandato popular do vereador Werner Rempel (Santa Maria-RS), Agência Sindical, Correio da Cidadania, Agência Saiba Mais, Revista Fórum, Viomundo e centenas de contribuições individuais.