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ToggleNão é a mesma coisa dizer literatura e direito do que direito e literatura.
Quando se diz literatura e direito se quer indicar como a literatura trata o direito (A); e quando se diz direito e literatura se alude à maneira como o direito trata a literatura (B).
A — Literatura e Direito
Neste campo, a trama da obra literária se articula em torno das ações dos personagens que são vistas, em definitivo, como relações jurídicas. A obra pode ser narrativa, teatral ou cinematográfica, e até pode manifestar-se como letras de ópera e de canções populares. Por exemplo, a violência contra a mulher poderia ser estudada vastamente nas letras de certos tangos e boleros. Raramente é poética, salvo na antiguidade com a poesia de época que está composta de narrações em verso, por exemplo, as obras de Homero: A Ilíada e A Odisseia as quais, ao descrever as ações dos personagens, mostravam a vida da civilização grega nesse tempo, incluídas suas relações jurídicas.
Pode-se considerar aqui dois aspectos: a relação jurídica como sustentação da trama ou argumento (a); e a influência da literatura no direito (b).
a) A relação jurídica como sustentação da trama ou argumento
As relações jurídicas, como objeto de tratamento das obras literárias, podem ser de várias ordens dos ramos do direito: civis, penais, processuais, administrativas, políticas etc.
Em algumas obras, as relações jurídicas são expostas diafanamente; em outras, só insinuadas.
Muitos autores da literatura norte-americana contemporânea têm tratado profundamente temas sobre as relações jurídicas, em particular as de significado penal e seu curso ante os tribunais e juris.
Em certas obras, ao autor basta expor uma situação com relevância jurídica; não a assinala expressamente, mas no desenvolvimento da trama se vai advertindo e, com maior nitidez, no conflito do comportamento dos personagens.
Porém, inclusive se o autor prescinde de mostrar a face jurídica dos fatos ou não lhe interessa ocupar-se dela, ela não deixa de aparecer indiretamente e, desse modo, se poderia dizer que toda obra literária tem um transfundo jurídico suscetível de ser investigado e posto em relevo.
Para conceber a trama e desenvolvê-la, o autor deve conhecer pelo menos as regras jurídicas fundamentais concernentes às ações de seus personagens. Esse conhecimento só poderia ser dado por sua familiaridade com as normas, por exercer uma profissão jurídica, haver frequentado uma faculdade de direito ou se haver informado sobre este aspectos, o que os leitores com certa formação legal percebem em seguida.
Sucede a mesma coisa com uma trama que destaque certos valores morais contrapostos aos correspondentes anti valores. Um autor não poderia invocá-los nas expressões de seus personagens se não lhe importassem.
A Esopo, por exemplo, lhe importavam tanto que teve que fazer falar aos animais para poder passá-los e, ainda assim, sabia que arriscava sua vida se os destinatários de suas fábulas se dessem conta do que ele queria dizer.
Os literatos que costumam servir-se mais do fundo jurídico da trama são os vinculados ao direito, como juízes, advogados ou estudantes de direito. Não são muitos, em verdade, no Mare Magnum de autores, rara avis, se diria. Flaubert e Dostoievski foram estudantes de direito. John Grisham, agora, é advogado. Em compensação Truman Capote não o era, mas sua obra prima “A sangue frio” descreve minuciosamente o processo penal seguido contra os autores do assassinato de uma família do Kansas.
Como, em nosso país, a maior parte dos literatos são formados nas faculdades de Letras e ganham a vida como professores de todos os níveis, conservam certo espírito de corpo entre eles, que os leva a olhar com desdém e desconfiança os literatos de outras profissões. Um advogado que escreve em prosa ou em verso é, para alguns deles, por regra geral, um intruso, um corpo estranho que lhe suscita rechaço.
A maior parte de autores cujos personagens se relacionam juridicamente se polarizam para o campo penal, porque cria mais expectativa e suspense. As ações delituosas despertam a curiosidade dos leitores com mais intensidade que outras, e ficam presos no desenvolvimento da trama que pode atravessar os seguintes momentos: a preparação do crime ou iter criminis; as motivações do crime; a narração do fato delituoso; a investigação e a perseguição do suposto criminoso; a determinação de se o fato é certo ou não o é, de se o personagens eleito cometeu o crime ou o roubo ou se não o fez, e é outro o autor, e o processo penal que pode dar resultados diversos: demonstrar a culpabilidade do acusado, demonstrar sua inocência, atribuir a outro o fato delituoso.
O romance Crime e castigo de Fiodor Dostoievsky foi publicado pela primeira vez em 1866. É a narração minuciosa da preparação do delito por um estudante empobrecido e, depois que o executa, de seu remorso. É tanto uma obra jurídica como uma tese de prospecção psicológica de um criminoso.
No romance Vermelho e Negro de Stendhal, publicado em 1831, o desenlace é o assassinato pelo jovem Julián Sorel de sua protetora e amante Madame de Renal, o julgamento e a execução. Mas o que o autor queria mostrar era a sociedade burguesa de seu tempo e o arrivismo de um jovem de procedência camponesa, embora instruído.
b) Como influi a literatura no direito
A temática narrativa com um conteúdo jurídico, enunciado clara e diretamente ou subentendido, pode causar a aparição de novas normas jurídicas e influir no conteúdo e no sentido das existentes.
Essa influência é indireta: se opera através dos leitores que vão formando sua opinião sobre as relações jurídicas tratadas pela obra literária. Lendo sua obra, os leitores advertem aspectos que comumente em sua vida diária não lhe chamariam a atenção, por considerá-los uma maneira normal de ser. Se essa opinião se generaliza, podem ser criadas correntes críticas que quase sempre obrigam, cedo ou tarde, a uma modificação das situações jurídicas encaradas.
Há muitas obras que tiveram esse efeito, por exemplo: Os miseráveis de Victor Hugo; A cabana do Pai Tomás de Beecher Stowe; As vinhas da ira de John Steinbeck; O sol é para todos de Harper Lee; Eu acuso de Émile Zola.
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O impacto pode incidir no Poder Legislativo, seja pela mudança de sua composição ou pela modificação do critério dos legisladores, e promover a expedição de novas leis no Poder Executivo, a respeito das normas de sua competência; e no Poder Judicial, em relação às suas sentenças. Não obstante, é claro que neste âmbito, a influência da literatura só é possível com a condição de que os advogados e juízes tenham transitado por ela. Nem em uma obra de extravagante fantasia se poderia ler que de um salgueiro se colhe um cacho de uvas.
Outra manifestação das influências da literatura no direito é a melhoria da redação das peças legais. Um jurista com inquietudes literárias transfere seu bom dizer e sua prolixidade e elegância ao narrar e descrever os documentos que redige. Enrique López Albújar, um destacado romancista, contista e juiz peruano dizia: “Até quando administro justiça fala em mim o poeta”, como lembra seu biógrafo Manuel Estuardo Cornejo Agurto, outro destacado narrador que enquanto foi jovem se deixou engolir pelo direito. No entanto, a expressão, que no âmbito literário pode ser difusa ou imaginativa, no jurídico deve ser sempre concreta e exata, ao invocar os fatos, definir ou interpretar os pressupostos da norma e expor as considerações e enunciados mandatórios na sentenças, pela necessidade de determinar com precisão os direitos e as obrigações das partes. O nível cultural dos advogados e juízes e de suas universidades e sociedades pode ser apreciada nitidamente em suas peças jurídicas.
B — Direito e Literatura
Esta expressão indica a maneira como o direito trata a literatura.
O direito pode fazer da temática da literatura um objeto de normação (a); pode regular os direitos dos autores (b); e pode fazer à relação da literatura e o direito como objeto de ensino.
a) A temática da literatura como objeto de normação
Em tempos passados, o direito regulava rigorosamente o conteúdo das obras literárias, vale dizer que proibia certos temas e situações que os governantes estimavam contrários à ordem estabelecida política, militar, religiosa, moral, econômica ou social.
Truman Capote – MOSCOT / Wikimedia Commons
Muitos autores da literatura norte-americana contemporânea têm tratado profundamente temas sobre as relações jurídicas
Exemplos: a obra Dom Quixote de la Mancha, para ser editada, teve que passar pela censura da Coroa espanhola e da Inquisição, como se pode ver em suas páginas iniciais. A situação era a mesma na França, Inglaterra, Itália e outros países. Sem essas licenças a obra literária não era publicada, mesmo que o público fosse reduzido e formado só por pessoas de grande poder econômico que podiam pagar os altos preços dessas obras.
Isso determinou que alguns autores tivessem que disfarçar sua intenção crítica e mensagens com seu personagens e tramas, em geral jocosas; Os moinhos de vento, as praias e os rebanhos personificam os nobres e outras pessoas em Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes; em As viagens de Gulliver de Jonathan Swift, os malévolos anões e os estúpidos gigantes eram a expressão dos nobres e seus partidários; em Gargantua e Pantagruel de François Rabelais estes dois personagens e as pessoas com as que travam relações reproduzem a maneira de ser da sociedade francesa de seu século.
E os leitores destas obras, no momento em foram publicadas, incluídos os personagens retratados nelas, riam às gargalhadas do que liam ou escutavam ler, posto que muitos eram analfabetos. O engenho para a sátira e a ironia encobertas eram o seguro de vida desses autores que com essas obras arriscavam a ser levados ao cadafalso sem atenuantes.
Durante o vice-reinado espanhol na América condenou-se tudo o que era defesa dos patriotas e, em particular, de Túpac Amaru.
Os processos a Charles Baudelaire (As flores do mal), a Gustave Flaubert (Madame Bovary) no século XIX na França; e no século XX, na Grã-Bretanha, Estados Unidos e Austrália, a David H. Lawrence (O amante de Lady Chatterley); os isolamentos e silêncios a Boris Pasternak (Doutor Jivago) e a Aleksandr Solzhenitsyn (O arquipélago Gulag) na União Soviética continuaram a censura do poder real e da Inquisição.
Na América Latina, as ditaduras se compraziam em esvaziar as bibliotecas e confiscar os livros colocados em seu índex, como o de Manuel A. Odría, entronizado no governo em 1948, pela oligarquia algodoal-açucareira. Era um general peruano que, ao parecer, nunca havia ouvido falar de literatura, mas que foi sacralizado pela intelligentsia que escrevia nos jornais e revistas do seu tempo.
Com o avanço da democracia e a difusão dos direitos humanos vamos deixando para trás esse obscurantismo opressor.
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Não obstante, ficam resquícios que poderiam ser reativados se a direita recalcitrante reassumisse o poder absoluto após afundar na passividade ou na indiferença às maiorias sociais. Quando nos romances se adverte aos leitores que os personagens são de ficção, alheios a pessoas existentes, salvo coincidências involuntárias, os autores estão se precavendo, na realidade, contra uma perseguição que, sendo inclusive remota, acreditam que poderia retornar. Para eles, o zelo macarthista dos críticos e “opinólogos” a soldo do poder midiático nunca descuida a vigilância da imaginação criadora.
Eu me pergunto como reagiriam os promotores e juízes peruanos diante de uma novela que tratasse das guerrilhas dos anos 80 do século passado, estando tão imbuídos da noção tão alta do delito de apologia do terrorismo?
b) O direito em relação à propriedade intelectual dos autores
Este é um campo que se desenvolveu muito e é matéria do ramo do direito relativo à propriedade intelectual, tão válida e real como qualquer outra forma de propriedade. Está orientado a tratar dos direitos econômicos e morais de uma obra intelectual de seu autor, como um prolongamento do direito civil de propriedade; a perseguição e sanção da publicação ilegal de uma obra intelectual, como um aspecto especializado do Direito Penal.
c) O direito e a literatura como objeto de formação jurídica
Desde fins do século XIX, em algumas universidades abra-se passo a uma tendência a tratar a relação entre a literatura e o direito como uma parte do ensino nas faculdades de direito, mas ainda de maneira marginal ou acessória, em geral como seminários e conferências muito espaçadas no tempo, posto que para suas autoridades o ensino do direito se acha confinado ao seu exame casuístico e às técnicas de sua interpretação e aplicação. A literatura é tida ainda como outro setor do ensino ou como uma rara inquietude pessoal sem relação profissional com o direito.
Jorge Rendón Vásquez é colaborador da Diálogos do Sul de Lima, Peru.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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