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O poeta revive sem qualquer poesia fingindo que é dor a dor que devera sente

Basta mudar o personagem e aparecem os dirigentes do Brasil. Finge-se tudo. Finge-se até que se governa, numa sucessão de decisões fúteis
Flávio Tavares
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

  • O poeta Fernando Pessoa morreu em 1935, mas seus escritos rejuvenescem a cada dia e atingem áreas que ele próprio jamais previu. Um deles, por exemplo, se encaixa perfeitamente no momento político atual do Brasil, onde ele nunca esteve.
  • “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”, escreveu ele, lá por 1920, um século atrás.

Basta mudar o personagem central — o poeta — e ali aparecem os dirigentes do Brasil atual. Finge-se tudo agora. Finge-se até que se governa, numa sucessão de decisões fúteis e tacanhas que não levam a nenhum fim útil ou aproveitável à sociedade. O presidente da República finge-se de motociclista e surge até um termo novo, “motociata”, calcado em “passeata”, que substitui os passos por um barulhento motor.

O fingimento é a expressão maior e mais sofisticada da mentira. Em 2018, na campanha eleitoral, o candidato Jair Bolsonaro fingiu-se de combatente da corrupção que, pouco antes, aparecera de corpo inteiro no perverso conluio entre os intocáveis do grande empresariado e da alta política. Esse contubérnio hipócrita foi revelado pela Lava Jato, uma operação judicial da qual ninguém da área política participou, menos ainda algum integrante do chamado “baixo clero” da Câmara dos Deputados, o inexpressivo grupo de parlamentares que Bolsonaro integrava na época.

No Brasil, o exercício da política é uma sucessão de imposturas. Fingimos que temos partidos políticos, quando existem apenas aglomerados de gente buscando associar-se ao poder para obter vantagens ou prestígio pessoal. Nenhum país no mundo tem 33 partidos registrados, numa barafunda em que a única diferenciação é a pronúncia das siglas. Pelo menos outros 20 estão à espera de registro.

A política é um serviço prestado à comunidade, mas entre nós virou profissão regiamente sustentada pelo poder público. O mastodôntico fundo eleitoral pode chegar à descomunal cifra de R$ 5,7 bilhões no pleito presidencial de 2022, caso o presidente da República não atenda ao clamor por vetar esse abusivo e vergonhoso aumento de 185% (decidido pelo Parlamento) em relação aos R$ 2 bilhões destinados à campanha de 2020, também exorbitantes.

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Essa profusão de partidos que nada representam faz surgir no Parlamento as tais “frentes” (como a “bancada evangélica”, a “do agronegócio” e outras) que atuam como as corporações da Itália fascista de Mussolini. São meros grupos de pressão, ou balcões de negócios, fantasiados de representativos e democráticos.

Nessa maçaroca, os projetos de governar para todos se transformam em ações para beneficiar determinados grupos. E, assim, chegamos ao País desigual de hoje, onde predomina a vulgaridade e cresce o analfabetismo, com 14 milhões de desempregados.

Basta mudar o personagem e aparecem os dirigentes do Brasil. Finge-se tudo. Finge-se até que se governa, numa sucessão de decisões fúteis

Palácio do Planalto
No Brasil dos últimos anos, é mais fácil abrir uma “igreja” do que uma barbearia ou um salão de beleza.

No momento em que, mundo afora, a defesa do meio ambiente passa a ser a preocupação maior de todos os governos, o Brasil destoa e caminha no sentido oposto. Além do desprezo governamental pela Amazônia e pelo clima, a Câmara dos Deputados aprovou nova lei de licenciamento ambiental abrindo portas à devastação. 

Pela nova lei, futuros empreendimentos (como as perigosas barragens rompidas na mina de Brumadinho, MG) necessitarão apenas de uma “autodeclaração” da empresa de que nada será afetado…

Finge-se não só o respeito à natureza, mas até o respeito à divindade ou à religiosidade. No Brasil dos últimos anos, é mais fácil abrir uma “igreja” do que uma barbearia ou um salão de beleza, para os quais se exige “alvará sanitário”. 

Assim, surgiram igrejas sem teologia, tal qual “empresas” especializadas em arrecadar dinheiro, as chamadas “pentecostais” que se autodenominam “evangélicas” sem adotar a solidariedade dos Evangelhos.

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Essa ampla simulação propicia que o presidente da República invente que o atual sistema eleitoral é fraudulento, sem apresentar sequer indícios de fraude na votação eletrônica, menos ainda qualquer prova. Bolsonaro já inventou que em 2014 o eleito foi Aécio Neves, não Dilma Rousseff, mas se cala sobre suas próprias eleições ou sobre as de seus filhos.

A pregação absurda do presidente aponta unicamente para desmoralizar a eleição em si como instrumento da democracia. Assim, ele se atira contra o Tribunal Superior Eleitoral e ataca o ministro Luís Roberto Barroso, que dirige a instituição.

O fingimento maior se consumou com a nomeação do senador Ciro Nogueira para ministro-chefe da Casa Civil. Na posse, Bolsonaro frisou que lhe entregava “a alma do governo”, mas omitiu que Nogueira responde a cinco processos na Justiça por corrupção e é acusado de chefiar a organização criminosa instalada no PP. O atual “dono” da “alma do governo” é um íntimo perene do poder. Quando Lula e Dilma governavam, foi também governista e tinha pelo petista uma admiração de semideus.

Ou seria apenas adulação ao poder em si, em que o resto é apenas fingimento sem poesia?

* Flávio Tavares é jornalista e escritor, Prêmio Jabuti de Literatura 2000 e 2005 Prêmio APCA 2004, e professor aposentado da Universidade de Brasília


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Flávio Tavares Jornalista e escritor, professor da Universidade de Brasília, Prêmio Jabuti de Literatura em 2000 e 2005, Prêmio APCA em 2004

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