Após duas semanas de guerra aberta, está evidente que estamos imersos num conflito de dimensões mundiais. Não se trata de um enfrentamento restrito a dois países, motivado por mesquinharias, tentativas de se recriar a extinta União Soviética ou de uma guerra de anexação, como delirantes analistas ao redor do mundo – Brasil incluído – propagam irresponsavelmente.
Estamos diante do maior conflito armado no sistema interestatal desde 1945. A implicação global mostra que a Rússia tinha razão nas demandas feitas seguidamente desde 1991, quando George Bush pai prometeu verbalmente a Mikhail Gorbatchev que a OTAN não se expandiria para leste.
O número de soldados enviados por Moscou ao chamado teatro de operações – cerca de 100 mil – em nenhum tempo ou lugar da História se compara a forças de ocupação. O tipo de ataque realizado atesta isso. A aviação não é utilizada “para se fazer o país regredir à Idade da Pedra”, como afirmou em 1964 o general Curtiss Lemay, um dos comandantes da Força Aérea dos EUA no Vietnã. Ou para se destruir uma cidade, como a Otan fez em Belgrado há 23 anos. A eletricidade e o fornecimento de água não foram interrompidos em Kiev, como cenas noturnas divulgadas em TV aberta podem atestar. Há várias coberturas mostrando que, apesar de uma crise de abastecimento, os mercados seguem abertos na capital.
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Há, é verdade, imensos dramas humanos, com a fuga de mais de 1 milhão de ucranianos, cerca de 500 mortos e o dobro do número de feridos em meio às movimentações russas. Mas o Kremlin não almeja sequer derrubar o governo Zelensky, como declarou Vladimir Putin na última quarta-feira. Moscou, aliás, apresentou seus três pontos para o fim da guerra, em reunião bilateral na segunda passada (7), na Belarus: 1. O reconhecimento da soberania de Donetsk e Lugansk; 2. O reconhecimento da anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014 e 3. A garantia de que o país não se incorporará à Otan. Todos são perfeitamente razoáveis.
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A neutralidade da Ucrânia e o fim das sanções contra a Rússia implica um recuo significativo dessa ofensiva imperial
O terceiro item é o principal. Implica a modificação de emendas à Constituição ucraniana (1996) aprovadas em 2019. São eles:
– “Artigo 85 – A autoridade do Verkhovna Rada da Ucrânia (Congresso Nacional) inclui: (…) Parágrafo 5) A determinação dos princípios de política interna e externa, realização do curso estratégico do Estado na adesão de pleno direito da Ucrânia na União Europeia e na Organização do Tratado do Atlântico Norte; (…)
– Artigo 102 – (…) O Presidente da Ucrânia é fiador da implementação da estratégia curso do Estado para obter a adesão de pleno direito da Ucrânia na União Europeia e na Organização do Tratado do Atlântico Norte; (…)
– Artigo 116 – O Gabinete de Ministros da Ucrânia (…) prevê a implementação do curso estratégico do Estado para a adesão de pleno direito da Ucrânia na União Europeia e na Organização do Tratado do Atlântico Norte”.
Ou seja, a ucrânia decidiu há três anos – numa clara provocação ao equilíbrio de forças e à segurança da Rússia – aderir a uma estrutura militar que tem Moscou e Pequim como inimigos centrais. Repita-se: a decisão está tomada e constitucionalizada.
Os três pontos colocados na mesa pelo Kremlin, caso atendidos, implicam o encerramento imediato do conflito. Diante deles, a primeira reação de Volodymyr Zelensky, horas depois da reunião em Belarus, foi a de que seria possível conversar. No dia seguinte, o presidente ucraniano voltou atrás, afirmando que seu país lutaria até o fim. Obviamente não foi uma recusa de Kiev, mas uma negativa de Washington, que move céus e terras para impedir qualquer contestação ao seu poder imperial.
Na sexta (11), o presidente dos EUA, Joe Biden fez questão de ampliar o leque de sanções contra a Rússia, com um discurso incendiário: “Vamos continuar a espremer Putin”, afirmou em coletiva de imprensa, revelando que conversa diariamente com seu homólogo ucraniano.
Duas das penalidades mais duras desferidas contra a Rússia são sua exclusão da SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) e o roubo de cerca de 60% de suas reservas internacionais. Em português claro, os EUA estão expulsando um dos mais importantes países do mundo do sistema financeiro internacional. Ou da sociedade do dólar, estabelecida em 1944, no acordo de Bretton Woods. Washington está utilizando seu poder emissor e controlador da liquidez universal para quebrar um inimigo. Nas condições atuais, isolar algum Estado do dólar significa impedir que ele tenha relações de qualquer tipo com o resto do mundo. Significa potencialmente alardear a quatro ventos quem manda no planeta.
É uma aposta arriscadíssima, que talvez só encontre paralelo na ameaça feita ao longo dos anos 1970 e início dos 1980, após o anúncio do rompimento da paridade dólar-ouro feita em 1971 pelo então presidente Richard Nixon.
Explica-se. Durante quase três semanas de intensas negociações entre representações de 44 países em Bretton Woods, em julho de 1944, acertou-se a criação do FMI, do Banco Mundial, além de dezenas de acordos. A partir daí, a definição de um padrão monetário global tornou-se central. Inicialmente havia a proposta de J. M. Keynes de uma cesta de moedas – o Bancor – que faria as vezes de unidade de transações interbancárias. Os representantes dos Estados Unidos, já na condição de superpotência única, impuseram sua moeda como métrica geral. No jogo de pressões, chegou-se a uma solução de compromisso. Detentor de quase metade das reservas internacionais em ouro, o país aceitou garantir uma paridade entre o meio circulante e suas reservas metálicas.
Após duas décadas de crescimento contínuo, a economia do país passou a apresentar perdas significativas de produtividade. Em 1966, suas autoridades monetárias começaram a esboçar alterações monetárias estruturais, culminando com a adoção do dólar flexível cinco anos depois. O que garantiria seu valor? Seu peso internacional, o tamanho de seu PIB, seu poderio industrial-militar, sua proeminência cultural e sua hegemonia global, entre outros fatores. Ou seja, fatores eminentemente políticos e decisões monetárias unilaterais.
O rompimento do padrão metálico, engolido a seco pelo resto do mundo, coincide com o advento do neoliberalismo e a ampliação desmedida da financeirização econômica. No início dos anos 1980 não havia, nem de longe, contestação ao poder hegemônico planetário dos EUA.
Estamos diante de aposta unilateral de dimensões semelhantes, com a reafirmação do poder universal do dólar. Mas, ao contrário de quatro décadas atrás, quando a antiga URSS encontrava-se em sua decadência irreversível, o quadro global é distinto hoje. Os Estados Unidos são desafiados pela ascendente China, em aliança com a Rússia. Por esse motivo, não apenas a guerra da Ucrânia tornou-se universal, como ela transparece cada vez mais como uma disputa pela hegemonia mundial. Estamos diante da grande guerra do dólar!
A neutralidade da Ucrânia e o fim das sanções contra a Rússia implica um recuo significativo dessa ofensiva imperial. Significa viabilizar a existência de um contrapeso forte ao unilateralismo da casa Branca.
De outra parte, a derrota russa acarreta o aumento sem freios do poder norteamericano, a anulação da União Europeia como ator político expressivo e a predominância da direita e da extrema direita com peso real nas disputas internas em cada país.
Nessa disjuntiva terrível, a guerra tem de ser analisada por seu prisma mais geral. Há catástrofes humanitárias em curso e há problemas reais internos à Rússia, mas existe um espectro mais largo a ser levado em conta. Um superpoder único submete o sistema internacional à perspectiva de dominação sem espaço para qualquer tipo de autonomia ou negociações potencialmente democratizantes.
Num panorama realista de construção de um mundo de equilíbrio multilateral, é melhor que Moscou vença a guerra.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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