Ele foi preso pelo FBI em 2013. Foram 25 meses de cárcere nos EUA, boa parte em prisões de segurança máxima, junto com alguns dos prisioneiros mais perigosos das Américas, traficantes e sequestradores.
Preso porque era executivo da Alstom, uma das principais empresas francesas. Co-autor do livro “Arapuca Estadunidense, a Lava Jato Mundial” (editora Kotter), Frédéric Pierucci recebeu o DCM, na França, para uma entrevista exclusiva.
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Na visão do empresário, a soberania dos países do mundo está sob ataque dos Estados Unidos. “Com dois dispositivos, eles colocam o mundo inteiro sob a lei americana.”
“Lutar contra a corrupção está correto. O problema é quando se instrumentaliza a luta contra a corrupção por fins de guerra econômica para favorecer empresas americanas”.
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Embraer, Petrobras, Odebrecht, Airbus, Alstom, Hitachi. Segundo Pierucci, 75% das empresas processadas pelo Departamento de Justiça americano são estrangeiras. “E quando se considera o 25%, das empresas americanas processadas por essa lei, eles as processam porque elas já estão sob investigação por outros países por corrupção”.
Nesta entrevista, Pierucci descreve uma justiça marcada por conflitos de interesse. Ele aponta o governo a partir do qual essa estratégia se intensificou, qual foi o primeiro país a reagir e que estratégias mobilizou, um caminho a seguir pelos demais se quiserem proteger seu patrimônio.
Numa mesa de centro em sua sala, há um tabuleiro de xadrez, bela metáfora para o que ele preconiza como reação. “É preciso retomar o controle, mostrar aos Estados Unidos que fazemos o dever de casa e que, se querem atacar nossas empresas, haverá reciprocidade.”
DCM
Frédéric Pierucci e Willy Delvalle em Paris
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DCM: Gostaria de voltar brevemente ao que aconteceu naquele dia de 2013, quando o FBI lhe prendeu. O que aconteceu?
Para mim, foi um choque absoluto. Eu não fazia ideia do motivo pelo qual eu estava sendo preso. Eu só entendi o motivo bem mais tarde. Na época, eu era diretor de um setor de uma empresa chamada Alstom, que era uma das grandes empresas francesas. Eu ficava em Singapura. A estratégia de determinadas empresas era fundir a parte que eu dirigia com nosso concorrente chinês.
Quando eu fui preso no aeroporto John Kennedy, eu não fazia a menor ideia do porquê. Eu compreendi mais tarde que o objetivo era pressionar os dirigentes da empresa para vendê-la ao nosso grande concorrente americano e ao mesmo tempo parar a aproximação com nosso concorrente chinês.
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Quase quatro anos se passaram desde sua libertação. Como você se sente hoje em relação ao que você viveu com a Justiça americana?
Eu escrevi um livro, que foi traduzido para o português, o que me ajudou bastante a superar essa etapa. Eu fiz basicamente duas grandes coisas quando retornei à França. Primeiro, criei uma empresa de consultoria para ajudar empresas francesas e estrangeiras para evitar cair nessa armadilha.
Depois, trabalhei muito junto às autoridades francesas para criar uma nova lei anticorrupção francesa, que se chama lei “Sapin 2”, que tem por objetivo proteger as empresas francesas da extraterritorialidade americana. Essa lei foi promulgada em 2016 na França. Desde então, conseguimos parar ou relativamente controlar algumas grandes investigações na França iniciadas pelas autoridades americanas, principalmente contra a Airbus e a Société Générale.
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Você está dizendo que, enquanto pessoa, esse ativismo lhe ajudou a chegar a uma forma de equilíbrio e superação dessa experiência?
Exatamente, pois durante meu encarceramento eu passei todo o tempo estudando jurisprudência americana sobre os casos de aplicação extraterritorial, principalmente da lei americana contra a corrupção chamada Foreign Corrupt Practice Act.
Estudando todos esses casos, casos de empresas e indivíduos que foram processados em relação às investigações desencadeadas pelas autoridades americanas, você percebe que um esquema aparece.
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Esse esquema é o seguinte: essa lei americana é utilizada como arma de guerra econômica pelos Estados Unidos e visa principalmente empresas não americanas. Eles começaram visando grandes empresas europeias, japonesas e brasileiras concorrentes de empresas americanas em determinados mercados.
Elas começaram pelo gás, pela petroquímica, pela eletricidade, pelas telecomunicações. Quando se fazem análises bastante detalhadas desses casos, compreende-se a finalidade do uso dessa arma, que é uma das diversas armas utilizadas pelos Estados Unidos, que conceitualizaram o que chama-se de “lawfare”, a guerra através do direito, que permite desestabilizar empresas, conquistar o mercado muito mais facilmente do que por outras formas de guerra.
Há todo um arsenal de leis que se aplicam de maneira extraterritorial, não apenas às empresas americanas mas a todas as empresas do mundo que têm uma mínima ligação com o território americano.
Os Estados Unidos utilizam duas ligações principais, que são a utilização do sistema financeiro americano, principalmente o uso do dólar ou do sistema Swift, ou no caso, por exemplo, da Petrobras ou da Odebrecht, o simples fato de que utilizavam o American Deposit Receipt no mercado americano para criar uma ligação entre a empresa e o território americano.
O segundo canal de ligação é a utilização de dispositivos digitais. A partir do momento em que se utilizam dispositivos americanos, você pode ser processado porque tem uma ligação com o território americano. Por exemplo, se você utiliza um e-mail “Gmail”, seus e-mails transitam ou são armazenados por servidores nos Estados Unidos. Então, na aplicação de suas leis, eles podem processar essas empresa
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Essa experiência certamente transformou sua visão dos Estados Unidos. De que maneira?
Percebe-se que a partir do momento em que um país domina militarmente o mundo, ele vai tentar impor sua lei para favorecer sua economia. Foi assim antes, com os ingleses, com os franceses sob Napoleão e muito antes, com os romanos. Estamos numa época em que os americanos têm uma potência militar, que eles utilizaram sobretudo depois dos atentados do 11 de setembro com um arsenal de leis que eles impuseram para o resto do mundo. Claro, tendo como objetivo gerar uma certa vantagem às empresas americanas.
O problema, na verdade, não é o que eles fazem e sim como nós reagimos a essa extraterritorialidade, como tentamos reequilibrar a balança. Eles defendem naturalmente seus próprios interesses, o que é normal, mesmo se exageram.
O que é interessante é ver como os países que vivem esses ataques repetidos, pelo menos na França, as empresas francesas tiveram de pagar nos últimos dez anos 14 bilhões de (euros) de multa ao tesouro americano por infração à lei de extraterritorialidade americana, incluindo o Foreign Corrupt Practice Act, mas também as leis sobre sanções e embargo contra as exportações. Então chegaram-se a montantes faraônicos, acompanhados de uma desestabilização das empresas.
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Como você avalia a maneira como a França e seu Estado se comportaram em relação ao seu caso?
No início, a França não havia compreendido muito bem o que aconteceu e, portanto, não reagiu. Em 2013, 2014 e 2015, quando o caso veio à tona, a França não reagiu porque não compreendeu o que aconteceu. Mas antes de 2014, diversas empresas foram processadas pelas autoridades americanas por infração a essa lei anticorrupção: Total, Technip, Alcatel, no setor do petróleo, de extração petrolífera, e telecomunicações. Tudo isso havia sido feito sem uma verdadeira reação francesa.
A grande diferença do caso Alstom é que essa investigação foi a venda de parte da Alstom e principalmente a perda de soberania francesa, de algo que é muito caro para nós, nossa defesa energética. Ao vender dois terços da Alstom à General Electric, perdemos o controle das nossas centrais nucleares, dos nossos porta-aviões, porque a propulsão é proporcionada por equipamentos Alstom, então não nos colocamos a uma situação bastante dependente dos Estados Unidos.
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Vou lhe dar um exemplo. Logo após a compra da Alstom pela General Electric, a General Electric ameaçou a EDF (empresa elétrica nacional francesa) de parar de fornecer peças de reposição para as nossas centrais nucleares se não houvesse um contrato comercial com a General Electric.
Imagine parar de fornecer equipamentos de substituição para as centrais nucleares francesas quando 15% da eletricidade da França é produzida pelas centrais nucleares. Isso significa ter a possibilidade de colocar o país no escuro. Isso começou a ser compreendido depois da compra, depois dessa operação de desestabilização. Antes, não havia quase nenhuma reação.
Quando eu estive na prisão, não houve nenhuma reação porque não haviam compreendido o que aconteceu ou não queriam compreender, ou os “lobbies” deram um jeito para que essa reação fosse anestesiada.
Quais “lobbies”?
Há um lobby atlantista extremamente considerável na Europa, na França, na Comissão Europeia, em muitos países. Quanto mais se vai a leste, mais os países são atlantistas por razões bastante históricas.
Essa configuração fez com que na França houvesse um atraso para compreender o que estava acontecendo. Na Europa, o país que compreendeu mais rápido os riscos da extraterritorialidade americana foi paradoxalmente a Inglaterra.
Os ingleses foram alvos de um ataque em 2009 e 2010, quando o Departamento de Justiça americano visou o British Aerospace, uma empresa inglesa, por pagar propina na Arabia Saudita. Parece brincadeira. Se tem alguém que tem influência na Arábia Saudita são os Estados Unidos desde 1945.
Então, ao compreender que eles foram alvos do Departamento de Justiça americano, eles reagiram e criaram suas próprias leis anticorrupção em 2010. Nós precisamos esperar seis anos e o desmantelamento do grupo Alstom para reagir e criar nossa lei anticorrupção para frear a lei extraterritorial americana.
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Você compreende o que ocorreu com você como uma guerra econômica dos Estados Unidos contra as empresas concorrentes. De que maneira essa guerra econômica evoluiu, desde então?
Ela se acentuou com uma bateria de leis de alcance extraterritorial. Há evidentemente a lei anticorrupção, todas as leis sobre sanção e embargo que os Estados Unidos decretam, determinando com quem as empresas podem comercializar ou não, de acordo com listas de sanções, colocando um determinado país sob embargo. É o caso do Irã.
Ninguém mais negocia com o Irã porque os Estados Unidos declararam que ninguém pode fazer negócios no Irã e que se você for uma empresa internacional e fizer negócios no Irã será vetado nos Estados Unidos submetido a penalidades nos Estados Unidos, pagar uma multa que você não tem condições.
Implementando esse sistema de sanções, eles esperam controlar o sistema de comércio internacional. Eles implementaram uma nova lei recentemente, em 2018, que se chama Cloud Act, que permite às autoridades americanas pedir aos GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon) lhes fornecer informações que são armazenadas nos seus servidores se sua empresa estiver sob investigação americana.
Com isso, eles quebram um conceito implementado há muito tempo, de cooperação internacional, sobre o problema de empresas alvo dos Estados Unidos. Normalmente se uma empresa é alvo dos Estados Unidos por uma razão X ou Y, o esquema clássico é passar pelo Ministério de Justiça americano e o Ministério da Justiça francês para obter documentos e transferi-los aos Estados Unidos.
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O que não ocorreu com você no início…
Não. Além do mais, na Europa, na França, temos leis de bloqueio que proíbem empresas francesas e europeias de fornecer informações a autoridades estrangeiras se estas as solicitarem em caso de investigações.
Ao pedir aos GAFA diretamente para fazer o trabalho dos Ministérios, burlam completamente os acordos internacionais. Vemos esse aceleramento nos últimos anos e que ele é bipartidário. Não podemos esperar que porque há um novo presidente nos Estados Unidos que isso vai mudar as coisas.
Quanto a esses atores intermediários locais em outros países, como Sergio Moro, que manteve relações bastante estreitas com os Estados Unidos. São eles braços dessa guerra?
Não posso me pronunciar sobre Sergio Moro porque não estudei esse caso. Mas é evidente que há transmissores que foram formados no exterior, que transmitem o pensamento americano, principalmente via programas como Young Leaders, que tentam ajudar o Departamento de Justiça a fazer esse trabalho.
Eu não sei como isso aconteceu no caso do Brasil, mas se vê no caso de muitos países uma frequente cumplicidade local para que essas ações sejam exitosas.
Existem informações claras sobre o manuscrito desaparecido do seu livro?
No dia que terminamos a última linha, enviamos para o nosso editor. No dia seguinte, houve um furto na casa do Matthieu (co-autor do livro Arapuca Estadunidense, a Lava Jato Mundial). Só roubaram o livro, no computador do Matthieu. Não tivemos resposta sobre quem fez isso.
Depois de todos esses anos?
Não.
Nunca foi reencontrado?
Alguém quis lê-lo antes.
Numa entrevista, você se disse dividido a respeito de quem teria furtado o manuscrito, agentes americanos, agentes franceses. O que se temia que você dissesse?
O livro foi lido e relido por advogados franceses e americanos, que fizeram muitas correções. Todo mundo tinha medo que o livro fosse proibido. Não foi o caso. Não houve nenhum processo posterior ao lançamento do livro. O livro é extremamente factual. Eu sou engenheiro. Todo o livro é baseado em fatos. Quando fiz essa análise sobre as sanções americanas contra empresas internacionais, basta ir ao site do Departamento de Justiça para revisar todos os casos desde 1977. Poucas pessoas o fizeram porque isso leva muito tempo. No meu caso, havia a vantagem de ter bastante tempo, pelo menos nos 25 meses de prisão.
Fiz essa análise, de duas mil páginas. Claro que não pude colocar tudo no livro. Mas é preciso permanecer bastante factual sobre esse assunto. Não é nem um pouco necessário fazer interpretações. Basta ler os documentos e os fatos e ver o que está ocorrendo, analisá-los.
O que você pode aconselhar aos países do mundo em relação à proteção de sua soberania, de suas instituições, de seu patrimônio e suas empresas?
Primeiro, é necessário se conscientizar dessa guerra econômica. Eu me esforço para fazê-lo. Há muitas conferências na França, mas também no exterior. Eu viajei bastante pelo mundo para fazer esse tipo de conferência.
Depois, é preciso se armar. Na Europa, fomos capazes há mais de 20 anos de devolver na mesma moeda sobre a aplicação extraterritorial de suas leis sobre as colisões entre empresas. Na época, os americanos processaram empresas europeias por cartel, e em seguida as europeias processaram as americanas por cartel, depois cada um segue lavando roupa suja no seu canto.
Precisa-se retomar esse caminho, talvez implementando as próprias leis, lavar nossa roupa suja, porque há evidentemente roupa suja para levar em casa e responder a essa extraterritorialidade pela criação de barreiras que vão permitir reconquistar nossa soberania jurídica, digital.
Alguns países começaram a fazê-lo. A Inglaterra começou a fazê-lo. A França começou a fazê-lo. A China começou a fazê-lo. A Rússia está fazendo-o. O Brasil começou a fazê-lo por determinados dispositivos. É preciso retomar o controle disso, mostrar aos Estados Unidos que fazemos o dever de casa e que, se querem atacar nossas empresas por essa via, haverá reciprocidade.
Para isso, é preciso uma coalizão de países que tenham os mesmos interesses para reagir. Convido os países que vivenciaram essa humilhação imposta a se falarem. Penso que é importante que o Brasil fale com a França e outros países sobre esse tema.
Você teria outras considerações a fazer?
Sua geração é a que deverá mudar as coisas. Somos uma geração que foi muito atlantista por razões históricas. Agora, a nova geração deve se conscientizar desse risco. Eu espero que vamos partir rumo a um mundo multipolar.
Minha geração viveu o fim da Guerra Fria, supostamente o fim da história, e a dominação americana. Agora caminhamos para um mundo multipolar. Eu espero que a Europa reencontre seu lugar nesse mundo multipolar, que o Brasil reencontre seu lugar, que não continuemos submissos juridicamente, digitalmente, militarmente aos Estados Unidos.
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