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Toggle*Atualizado em 28/01/2022 às 14:40.
“Uso a expressão “atividade de fala”, em vez de “ato de fala” como John Searle (ou “fala performativa” como Austin) para distinguir, de um lado a fala parresiática e seus compromissos; do outro lado o tipo de compromisso que usualmente se encontra entre alguém e o que ele/ela diz. Porque, como veremos, o compromisso envolvido na parrésia está ligado a uma certa situação social, a uma diferença de status entre o falante e sua audiência, ao fato de que o falante, na parrésia, diz algo perigoso para ele mesmo.
A parrésia é, portanto, fala que envolve algum risco”.
Michel Foucault. The Meaning and Evolution of the Word Parrhesia in Discourse & Truth: the Problematization of Parrhesia, 1999 (trecho aqui traduzido).
“Prelúdios envolvem ensinar, aprender e raciocinar”.
*Platão, Leis, Livro 4, “Prelúdios”, Em 2020, vimos a sagração do tecnofeudalismo – um dos temas gerais de Raging Twenties, meu livro mais recente.
O vírus do tecno feudalismo, em metástase à velocidade da luz, vai-se convertendo em variante tipo selva de espelhos, ainda mais letal: a cultura de cancelamento é reforçada pela Big Tech em todo o espectro; a ciência é todos os dias desmoralizada nas mídias sociais, como se não passasse de fake news. E os cidadãos médios são imbecilizados até padrões de lobotomia. Giorgio Agamben define isso como um novo totalitarismo.
Reprodução: Pxbay
A cultura do cancelamento é uma forma moderna de ostracismo.
O brilhante analista político Alastair Crooke analisou e buscou demarcar a configuração mais ampla (ingles e aqui em Português
Geopoliticamente, o hegemon recorreria até à guerra 5G para manter o próprio primado, ao mesmo tempo em que procura legitimação moral ‘via’ os Movimentos “Acordai!”, devidamente exportados para as satrapias ocidentais.
Os movimentos “Acordai!” (vários), a ‘woke revolution’, é guerra cultural – em simbiose com as Big Tech e os Big Business – que esmagou o que é realmente real na discussão pública: a guerra de classes. A classe trabalhadora, dividida até a atomização, lutando pela mais mínima sobrevivência, foi abandonada, deixada para chafurdar em anomia.
A grande panaceia, de fato a derradeira “oportunidade”, que veio na pandemia Covid-19, é o Great Reset [aprox. “o grande reinício”] anunciado por Herr Schwab de Davos: essencialmente, a ‘troca’, de uma base manufatureira agonizante, por automação, acompanhada de um reset do sistema financeiro.
O concomitante pensamento desejante antevê uma economia mundial que se aproximaria de “um modelo capitalista mais limpo”. Uma de suas manifestações é aquele deliciosamente benigno Conselho pró-Capitalismo Inclusivo (ing. Council for Inclusive Capitalism) em parceria com a Igreja Católica.
Tanto quanto a pandemia – a “oportunidade” para o tal ‘reinício’ – já fora ensaiada no Event 201 em outubro 2019. E estratégias adicionais já estavam prontas para os passos seguintes, como Cyber Polygon, que alerta contra “riscos chaves da digitalização”. Não deixem de ver o “exercício técnico” marcado para dia 9 de julho, quando “os participantes aperfeiçoaram em tempo real competências práticas para mitigar ataque à cadeia de abastecimento de um ecossistema empresarial.”
Nova Conferência de Superpotências?
A soberania é ameaça existencial à revolução cultural em curso. Tem a ver com o papel das instituições da União Europeia (UE) – especialmente da Comissão Europeia – que não se deterá diante de coisa alguma até dissolver os interesses nacionais dos estados-nações. E isso explica em grande medida a rapidez com que russofobia, cinofobia e iranofobia, em diferentes graus, vão-se armando.
O ensaio base de Raging Twenties analisa as apostas que o hegemon joga na Eurásia, exatamente em termos de o que o hegemon lança contra os Três Soberanos – a saber, Rússia, China e Irã.
É nesse quadro, por exemplo, que uma lei-monstro, de mais de 270 páginas, a Strategic Competition Act [aprox. “Lei da Competição Estratégica'', foi recentemente aprovada no Senado dos EUA. Vai muito além da concorrência geopolítica, e traça o mapa do caminho para fazer guerra de espectro total contra a China. É muito provável que seja aprovada no Congresso, dado que a cinofobia já é esporte bipartidário em D.C.
Oráculos do hegemon, como o perene Henry Kissinger, já fizeram pelo menos uma pausa, na incansável cantilena de Dividir para Governar, para alertar que a escalada de competição “sem fim” pode descarrilhar e virar guerra quente – especialmente se se consideram a Inteligência Artificial e as mais recentes gerações de armas inteligentes.
No incandescente front EUA-Rússia, onde o ministro de Relações Exteriores Sergey Lavrov vê ausência de confiança mútua, para nem falar de falta de respeito, como… Não, pior que na Guerra Fria, o analista Glenn Diesen observa que o hegemon “anseia por converter em lealdade geopolítica a dependência dos europeus no que tenha a ver com questões de segurança”.
Eis o coração de uma saga ou-vai-ou-racha: o gasoduto Nord Stream 2. O hegemon usa qualquer arma – incluída a guerra cultural, na qual Navalny, escroque já condenado, é peão muito importante – para tirar dos trilhos um acordo de energia essencial para os interesses industriais da Alemanha. Ao mesmo tempo, cresce a pressão contra a Europa comprar tecnologia chinesa.
Enquanto isso, a OTAN – que reina sobre a UE – continua a ser montada como um Robocop global, pelo projeto NATO 2030, apesar de já ter convertido a Líbia em terra devastada envenenada de milícias e de já ter levado surra coletiva humilhante no Afeganistão.
Apesar de toda a histeria de som e fúria de sanções e da lista infinita de neonomes para a guerra cultural, o establishment hegemônico não é perfeitamente cego para a evidência de que o ocidente “está perdendo não só a dominância material, mas, também a pegada ideológica”.
Assim sendo, o Conselho de Relações Exteriores (ing. Council of Foreign Relations) – numa espécie de ressaca Bismarckiana – propõe agora uma Nova Conferência de Superpotências (ing. New Concert of Powers) para enfrentar o “populismo irado” conferência a ser conduzida, claro, contra aqueles atores maléficos como a “beligerante Rússia” (orig. “pugnacious Russia”) que ousa “desafiar a autoridade do Ocidente”.
Por mais que essa proposta geopolítica possa vir acolchoada em retórica benigna, o objetivo é o mesmo: “restaurar a liderança dos EUA”, pelos termos dos EUA. E que se danem os “illiberals” Rússia, China e Irã.
Crooke evoca exatamente um exemplo russo e um exemplo chinês para ilustrar o resultado a que podem levar os “movimentos Acordai!” (orig. woke revolution).
No caso da Revolução Cultural Chinesa, o resultado foi caos, fomentado pelos Guardas Vermelhos, que se puseram a criar uma espécie de caos ‘definido’ por eles mesmos, sem ouvir a liderança do Partido Comunista.
E há também Dostoievsky, que em Demônios, mostrou como os liberais seculares russos dos anos 1840s criaram as condições para que emergisse a geração dos 1860s: radicais ideologizados, prontos a pôr abaixo a casa.
Nem se discute: “revoluções” sempre devoram os próprios filhos. Usualmente começam com uma elite governante que impõe a todos as próprias recém descobertas Formas Platônicas. Pensem em Robespierre. A política de Robespierre foi cunhada em termos muito platônicos – “o gozo pacífico da liberdade e da igualdade, o reino da justiça eterna”, com leis “gravadas no coração de cada homem e de todos os homens”.
Bem, quando apareceram os que não concordavam com a visão da Virtude que Robespierre cultivava para ele mesmo, todos sabemos o que aconteceu: o Terror. Exatamente, vale lembrar, como Platão já previa que acontecesse em Laws (ing. Leis, port.).
Faz sentido, pois, lembrar aos filhos dos Movimentos ‘Acordai!’ (‘woke revolution’) que há risco de que acabem devorados vivos por efeito do próprio furor.
Cancelar a liberdade de falar/escrever
Aqui já parece justo perguntar em que momento o ‘ocidente’ começou a errar tão gravemente – no sentido de se pôr a cancelar conteúdos e ações culturais. Permitam-me oferecer o ponto de vista cínico/estoico de um nômade global do século 21.
Se precisamos de data, comecemos com Roma – epítome do Ocidente – no início do século 5º. Siga o dinheiro. É o momento em que a renda das propriedades de templos religiosos foi transferida para a Igreja Católica – o que aumentou o poder econômico dos católicos. Pelo final do século, até presentes e doações aos tempos já eram proibidos.
Paralelamente, crescia onda avassaladora de destruição – alimentada pela iconoclastia dos cristãos, que foi, de escavar cruzes em esculturas e estátuas pagãs, até casas de banhos fechadas para serem convertidas em igrejas. Banhos sem roupa? Quelle horreur!
A devastação foi impressionante. Um dos raríssimos sobreviventes foi a fabulosa estátua de Marcus Aurelius a cavalo, em bronze, na Colina Capitolina, Campidoglio (hoje abrigada no museu). Essa escultura só sobreviveu, porque as milícias pias supuseram que Marcus Aurelius fosse Constantino.
A sanha ‘purificadora’ daqueles cristãos destruiu o próprio tecido urbano de Roma: rituais, senso comunitário, ‘canto e dança’. Lembremos que as pessoas até hoje falam baixo ao entrar numa igreja.
Por séculos ninguém ouviu a voz dos despossuídos. Luminosa exceção encontra-se num texto do início do século 6º, de autoria de filósofo ateniense, citado por Ramsay MacMullen em Christianity and Paganism in the Fourth to Eight Centuries Aquele filósofo grego escreveu que os cristãos são “raça dissolvida em paixões, destruída pela autoindulgência controlada, servil e afeminada no pensamento, beirando a covardia, que chafurda na própria pocilga, sem base, satisfeita com a servidão em segurança.”
Se soa como pré definição da cultura de cancelamento cá desse século 21, é porque é.
Também em Alexandria as coisas saíram muito mal. Uma milícia cristã matou e esquartejou a sedutora Hypatia, matematicista e filósofa. Esse crime encerrou, de fato, a era da grande Matemática grega. Não surpreende que Gibbon tenha registrado o assassinato de Hypatia num fragmento notável de Decline and Fall of the Roman Empire (“No auge da beleza, em plena maturidade do intelecto, a jovem recusava amantes e dedicava-se aos alunos; as figuras mais ilustres, por classe ou mérito, esperavam impacientes a oportunidade de visitar a mulher filósofa”).
Sob Justiniano – imperador de 527 a 565 – a cultura de cancelamento passou atacar o paganismo, sem ver limite ou contenção. Uma das leis de Justiniano pôs fim à legislação que obrigava a tolerar todas as religiões que havia no Império, vigente desde Constantino, no ano 313.
Se você fosse pagão, melhor preparar-se para a pena de morte. Professores pagãos – especialmente os filósofos – foram banidos. Perderam a parrésia (gr. parrhesia: licença para dar aulas; aqui se lê (ing.) a brilhante análise de Foucault).
Parrésia – que se pode traduzir como “crítica franca” – é questão tremendamente séria: ao longo de não menos de mil anos, “parrésia” foi a definição de liberdade de fala (itálicos meus).
Aí está: primeira metade do século 6º. Foi quando a liberdade de fala foi cancelada no ocidente.
O último templo egípcio – dedicado a Isis, numa ilha no sul do Egito – foi fechado em 526. A Academia de Platão – com não menos de 900 anos de aulas públicas no currículo – foi fechada em Atenas, em 529.
E adivinhem que país os filósofos gregos escolheram como lugar de exílio: a Pérsia.
Eram dias – no início do século 2º – quando Epíteto, o maior dos estóicos, frígio, escravo forro, admirador de Sócrates e Diógenes, foi consultado por um imperador, Adriano; e tornou-se modelo para outro imperador, Marcus Aurelius.
O que a história nos diz é que a tradição intelectual grega não se apagou por si só no ocidente: ela foi atacada; foi alvo de um movimento do tipo “Acordai!”, da cultura de cancelamento.
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