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Rússia e China: à espera de que as estruturas do capitalismo rachem desse “lado" do mundo

O eixo Rússia-China chegou à conclusão de que discurso diplomático polido com os norte-americanos é como secar cabeça de pato
Alastair Crooke
Strategic Culture Foundation
Líbano

Tradução:

“E a economia então viveria um re-boot, depois de terem sido gastos $150 trilhões para ‘verdificar’ tudo e todos. Mais uma manifestação de governo orientado ‘pela ciência’, dirigido por ‘especialistas’ sem qualquer mácula de partidarismo político ou ambição de ganhos pessoais. (…) OK. Pena que não está funcionando.”

Jeffrey Tucker, em artigo intitulado (ing.) How Close Is Total Social and Economic Collapse? [O quanto está próximo o total colapso social e econômico?], escreve:

“Economias e sociedades caem aos pedaços lentamente, depois um pouco mais, até que desabam. Vimos acontecer no período médio da trajetória [nos EUA]. A queda lenta começou em março de 2020, quando políticos em todo o mundo imaginaram que já não seria grande coisa paralisar a economia e reiniciá-la logo que o vírus se distanciasse. Que bela manifestação seria essa, do poder de um governo ‘orientado pela ciência’ – tecnocracia em pé de guerra.”

Mas, “nada disso funcionou. Não é possível desligar uma economia e o funcionamento social normal, e depois religá-los, como com um interruptor de luz elétrica na parede. Só a tentativa já causará necessariamente quantidades imprevisíveis de rompimentos de longo prazo, não só de estruturas econômicas, mas também do espírito de um povo. Tudo que acontece hoje reflete o pressuposto desastroso de que seria possível – e não a causa de dano dramático e duradouro. Foi o maior fracasso da política num século”.

Tudo funciona, até que, de repente, não funciona. Como disse Minsky, instabilidade alimenta instabilidade. O problema é que sistemas complexos são inerentemente frágeis. A otimização que os torna custo-efetivos também remove as redundâncias que os torna resilientes. As coisas podem cair aos pedaços rapidamente, quando se verificam eventos não previstos. Não só coisas; a psique coletiva pública também é sistema complexo frágil – não pode ser restaurada ao que foi, com um simples apertar o botão de reset.

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Tucker vê tudo isso essencialmente como um fracasso do julgamento. Talvez seja, talvez não – o que implica dizer, fracasso do julgamento no modo como Tucker quer dizer. Sim, a debacle da cadeia de suprimentos pode não ter sido adequadamente prevista; ou não se previu a autoagressão que resultou da tentativa de bloquear a cadeia de suprimentos, numa economia entretecida de modo tão onipresente quanto a economia da China (i.e. interrupção na cadeia de suprimento de microchips).

Talvez a razão de a estratégia da vacina não estar sendo reconsiderada seja que se tornou a doutrina cult sobre a qual o Establishment dobrou a aposta de início, não só como meio para alcançar um fim – criar imunidade de rebanho via vacinas – mas também como fim, em si e de si mesma.

Tomada a questão por esse ponto de vista, pode-se perceber não só ‘um fracasso’ – com uma recuperação “em V”, com o re-start apresentado como neoevangelho portador de alguma neo-boa-nova – mas, sim, uma série de ‘fracassos’ de julgamento relacionados. Esses fracassos podem ter aparência de trupe de erros, em análises falhadas, mas bem-intencionadas, embora de fato sempre fossem conectadas por serem concebidas, de início, como fins em si e por si mesmas.

O traço comum em todos esses ‘erros’ está em serem todos ‘um e o mesmo projeto’ – de um só genus – e não simples cadeia de erros acidentais.

O eixo Rússia-China chegou à conclusão de que discurso diplomático polido com os norte-americanos é como secar cabeça de pato

Patria Latina
Vladimir Putin, presidente da Rússia e Xi Jinping, presidente da China

A lógica ostensiva é que, ‘empurrar’ quase todos para serem vacinados ajuda a alcançar a imunidade de rebanho e, portanto, elimina o vírus. Aqui se vê vício-equivalente-ao-vício-de-Tucker, em que se assumiu que as vacinas não foram ‘vazadas’ para prevenir variantes; ou que os vacinados não seriam invulneráveis à infecção; ou que os vacinados não portariam, disseminariam e transmitiriam o vírus; ou que alguma proteção não se esgotaria em semanas ou meses? Talvez tenham compreendido mal a história da família dos vírus SARS (não seriam particularmente suscetíveis a vacinas, porque tendem a deslizar para variantes); ou outra vez aqui a vacinação em massa também seja fim em si mesma?

No vax, no job? [Zero vacina, zero emprego?] Os não vacinados passaram a ser ‘o inimigo’, exatamente no sentido de que o filósofo Carl Schmitt disse que definir ‘um inimigo’ quase sempre funciona: colar um rótulo num ‘outro’ tão negativo e tão sem remissão, que se torna inconcebível construir mediações com tais ‘monstros’ – ‘que põem em risco a vida de outros’. Esse maniqueísmo ‘ou branco ou preto’ é a essência da política, escreveu Schmitt, aprovando. Na Itália, por exemplo, representantes do establishment político, médico e midiático já abertamente acusaram os não vacinados de serem “ratos”, “subumanos” e “criminosos” que merecem ser “excluídos da vida pública” e “do serviço público nacional de saúde” e até muito merecem “morrer como moscas”.

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Haverá aqui outro caso [isolado] em que o pensamento claro teria fracassado? Outro caso [isolado] de incapacidade dos líderes para compreender o modo como a linguagem estraçalha, reduz a farrapos a sociedade; e que a sociedade não voltará à normalidade social e funcional, diretamente e tão logo o Green Pass seja ‘desligado da tomada’ (se algum dia acontecer)?

Ou haverá aí um fim em si? – Atestado de vacinação como ‘procuração’ que garantiria lealdade política [q já nasceria democrática!] – a maioria a se autodefinir em oposição polar contra uma oposição demonizada: ‘Se você cultiva a ideologia política declarada errada, você é sujo’. Você merece expurgo. 

Talvez aí esteja a razão por que o governo Biden também não está muito preocupado com demissões em massa (e perturbações econômicas) – porque ajudam a purificar o país, livrando-o de recalcitrantes apoiadores de Trump?

Muito obviamente, o apressado ‘projeto de esverdeamento’ atado a uma declarada ‘emergência’ climática, é outra face, uma contraparte em outro campo, do erro do ‘fechamento’ e da vacinação obrigatória. Parece que também o ‘esverdeamento’ foi pensado como solução rápida: numa pirueta, o mundo abandonaria a energia suja, por energias limpas, graças a ‘créditos de carbono’ que cancelariam todos os efeitos, problemas e defeitos pessoais e coletivos, da prodigalidade na produção de gás carbônico. E a economia então viveria um re-boot, depois de terem sido gastos $150 trilhões para ‘verdificar’ tudo e todos. Mais uma manifestação de explícito governo orientado ‘pela ciência’, dirigido por especialistas, supostamente sem qualquer mácula de partidarismo político ou expectativas de ganhos pessoais.

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Mas aqui também o plano não está funcionando. Não se pode simplesmente ‘desligar’ uma economia baseada em combustível fóssil, e em seguida religar tudo, pouco tempo depois, já como economia verde da ‘rede zero’ (ing. net zero) [que retira da atmosfera tanto quanto lá põe, de gazes de efeito estufa].

Por um lado, pode-se ver aí simples falha, ou fracasso, ao apreciar os impedimentos práticos que deram ao mundo a crise de energia e o concomitante alto custo imposto aos consumidores – embora falha ou fracasso disparados, como nos contam, pelo mais puro desejo de salvar o planeta.

Ou, por outro lado, os créditos de carbono também são um fim em si mesmos? ou seja, trata-se da transição para uma classe gerencial tecnocrática global, e da transferência das principais ferramentas políticas para fora do nível nacional para o supranacional? Se assim for, tampouco está funcionando. Os custos sociais do choque dos preços da energia reverberarão por toda a política e causarão novas rupturas na economia.

E, se a mudança associada, da gerência econômica tradicional, para a Moderna Teoria Monetária (MTM) – que aconteceu de acontecer ao mesmo tempo em que, por causa da pandemia, suspenderam-se as atividades econômicas,– foi simples coincidência nascida da necessidade de proteger o povo durante a crise do Covid? Necessidade que acompanhou a ‘criação’, pelos Bancos Centrais, de $30 trilhões de liquidez injetada nas economias, como apoio pandêmico. Foi então, apenas malfadado erro de avaliação dos riscos de gerar inflação (não transitória) que empobreceria os consumidores e possivelmente provocaria recessão econômica?

Ou, então, teria sido também fim em si mesmo – concebido no começo como o combustível poderoso que financiaria a transição do capitalismo individualista hiper-financeirizado, já não mais sustentável (o que até os tecnocratas reconhecem), para um gerencialismo corporativo de acionistas, que deslocaria amplamente os direitos à propriedade individual, em favor de governo com interesses ambientais e sociais (ing. Environmental, Social Governance, ESG) e visão de diversidade de corporativismo de acionistas?

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Há muitos anos, em 1941, James Burnham, em The Managerial Revolution, argumentava que o velho paradigma de trabalho versus capitalismo estaria superado; que a evolução progressiva levaria a transição mundial para longe da dialética capitalista-socialista, e para nova síntese – uma estrutura organizacional feita de uma classe gerencial tecnocrática de elite – um tipo de sociedade que seria ao mesmo tempo ‘socialista’ (Governo Ambientalista Social e ‘consciente’/woke), mas também empreendedora corporativa. Que seria liderada por especialistas que compreenderiam os problemas num nível além do público. Burnham acreditava que o processo estava em andamento para substituir o capitalismo em escala mundial (hoje ‘Davos’ fala de corporativismo acionário, ou de acionistas).

Tudo isso tem um fim em si mesmo? Claro – a classe da elite oligárquica é preservada, e controla o dinheiro e o crédito, embora agora num nível supranacional, (i.e. o Banco Central Europeu praticando estrito racionamento de crédito para empresas, segundo suas próprias doutrinas Verdes). Sim, mas… isso também não está funcionando: enfrentamos ambos, um ‘choque de preços’ da energia e inflação disruptiva, com mais quebras na economia.

No plano geopolítico internacional, as coisas também não dão sinal de estar funcionando. A Equipe Biden diz que quer “competição gerenciada” com a China. Mas por que, então, mandam à China Wendy Sherman (que não se destaca pelas competências diplomáticas), como enviada de Biden? Por que prossegue o insistente bate-boca de provocação miúda contra a política de “Uma só China” de 1972, com uma série de movimentos pequenos, aparentemente inócuos sobre Taiwan, se a Equipe Biden quer competição contida (como foi dito que quer, em recente conversa com o presidente Xi), mas fracassa sempre e não fomenta qualquer relacionamento sério?

Será que A Equipe não compreende que isso não é ‘conter’ a competição, mas é, isso sim, brincar com fogo, com repetidas ‘sugestões’ de que os EUA apoiariam a independência de Taiwan?

Além do mais, por que, dentre todas as mulheres do mundo, despachar Victoria Nuland para Moscou, se a competição com Moscou deveria ser calmamente ‘equilibrada’, como Biden pareceu sinalizar quando esteve cara a cara com Putin em Genebra? Like Sherman, Nuland tampouco foi recebida em nível superior, e, claro, a reputação de ‘incendiária de Maidan’ a precedeu em Moscou. E por que dizimar a representação da Rússia no quartel-general da OTAN? E por que mandar o secretário Austin falar em Georgia e Ucrânia como ‘porta aberta’ da OTAN?

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Há alguma outra lógica oculta nisso tudo, ou esses enviados foram selecionados intencionalmente como espécie de ‘chute no traseiro’ provocativo, para mostrar ‘quem manda aqui’ (quer dizer, mostrar que America is Back!)? É movimento conhecido em Washington como ‘diplomacia de capitulação’ – dos concorrentes só se considera a possibilidade de capitularem. Se foi isso, não funcionou. 

Os dois enviados foram efetivamente mandados fazer as malas e partir, e as relações de Washington e esses estados chaves estão degradadas, já próximas de zero.

O eixo Rússia-China chegou à conclusão de que discurso diplomático polido com os norte-americanos é como secar cabeça de pato. EUA e seus protégés simplesmente não ouvem o que Moscou ou Pequim dizem – e, assim sendo, que sentido haveria em falar aos ouvidos de lata dos norte-americanos? Resposta: nenhum.

Tucker escreveu sobre os lockdowns motivados pela pandemia, que “tudo que agora acontece reflete o desastrado pressuposto de que [continuar a] fazer o mesmo [que já estava fazendo] seria possível, e não provocaria dano dramático e duradouro. Foi o maior fracasso político em 100 anos”. Seria verdade também para a política exterior dos EUA (a tal diplomacia de capitulação)?

Asume-se que o modo de os EUA manterem a primazia global seria continuar a provocar, puxando o rabo da casaca da China na questão de Taiwan e da política de “Uma Só China”. E também provocar a Rússia com o assunto de a Ucrânia ser feita membro da OTAN? E que bastariam as repetidas insinuações feitas por um Biden folclórico em reuniões bilaterais, para impedir que os eventos saiam completamente de controle?

Será que toda a provocação é simples erro de julgamento da Equipe Biden, que não perceberia que China e Rússia realmente falam a sério das respectivas Linhas Vermelhas, que acreditam no que dizem e dizem precisamente o que querem dizer? Ou será que, diferente disso, a provocação é um fim nela mesma? (Acrescento que Burnham disse claramente que muitas guerras terão de ser combatidas antes de se poder ter efetiva sociedade gerencialista. Essas guerras levariam à destruição de estados-nação soberanos, de tal modo que só umas poucas grandes nações sobreviveriam, o que culminaria num núcleo de três ‘super-estados’. Burnham acreditava que “a soberania será restrita a uns poucos super-estados”.)

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A pergunta inicial de Tucker, não esqueçamos, era O Quão Próximo Está o Colapso Social e Econômico? Nosso ponto, nesse artigo, é que todos esses fracassos e erros estão coligados porque foram pensados já de início, como fins em si e para si. E, numa ou noutra medida não estão funcionando. Trata-se então de tempestade perfeita que se vai formando?

O fator comum a todos esses distintos ‘erros’ está em que todos são parte de ‘um mesmo projeto’ – o golpe invisível contra as ferramentas e estruturas para cobrança e prestação públicas de contas [ing. accountability pública], no plano nacional, que são transferidas para o plano supranacional (também conhecido como O Reset). 

Todos os erros derivam, todos, do culto ao gerencialismo tecnocrático. Em última análise, Tucker está certo: na luta para cumprir esse projeto e incontáveis subconjuntos de objetivos, “só a mera tentativa causará necessariamente quantidades imprevisíveis de rupturas e desarranjos de longo prazo, não só nas estruturas econômicas, mas também no espírito de um povo”.

Historicamente, cultos [e religiões] fazem pouco caso da fragilidade em sistemas complexos. Estão sempre concentrados em meios para chegar a “fins”. Não veem necessariamente sequer como quebras e fracassos as “quebras” e “fracassos” de que Tucker fala. Atitudes e comportamentos humanos – ou seja, de pessoas – são vistos como obstrução e impedimento; como Biden adverte repetidamente, “se as pessoas não vão ajudar, devem sair do caminho das regras da vacina … sair do caminho das pessoas que fazem a coisa certa”.

Parece que Rússia e China, assistindo a tudo isso, permanecerão distantes e pacientes – à espera de que as estruturas rachem desse ‘lado’ do mundo.

Alastair Crooke, britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, com sede em Beirute.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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