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Dez anos sem Abdias do Nascimento, o homem que fez milhares de mulheres, homens e crianças negras voltarem a sonhar

O ator e poeta sentiu na pele toda a dor de nascer negro num país cuja cultura comum e corrente foi escrita com sangue pelo regime escravocrata
Roseli Oliveira e Silva
Fundação Perseu Abramo
São Paulo (SP)

Tradução:

Abdias do Nascimento, nascido em 14 de março de 1914, no município de Franca, interior de São Paulo, foi um menino oriundo de família muito pobre no interior do estado mais rico do Brasil. Sentiu na pele toda a dor de nascer negro num país cuja cultura comum e corrente foi escrita com sangue pelo regime escravocrata, que por sua vez estruturou o racismo de norte a sul do país, esmagando cada mínima possibilidade de construção pacífica da cidadania de um povo.

A história de Abdias do Nascimento poderia ter sido parecida com a história da maioria de tantos meninos pretos e pobres que habitam ainda hoje as favelas e periferias do nosso país, e que passam praticamente toda sua vida tentando apenas sobreviver. No entanto, qual história que só personagens encantados poderiam ter, o garotinho de Franca, filho de mãe doceira e pai sapateiro, neto de africanos escravizados, lutou, lutou e teimou, e se tornou um dos mais célebres cidadãos que o Brasil viria a conhecer.

Forjado na própria luta pela sobrevivência, e na luta pelos direitos humanos e civis do povo negro, Abdias construiu sua trajetória de forma brilhante, conseguindo ultrapassar barreiras consideradas quase insuperáveis quando se trata de pessoas negras. Passou por inúmeras formações, foi docente e reconhecido em importantes universidades e instituições por todo o mundo.

O ator e poeta sentiu na pele toda a dor de nascer negro num país cuja cultura comum e corrente foi escrita com sangue pelo regime escravocrata

Reprodução: Montagem Diálogos do Sul
Abdias do Nascimento foi ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista

Abdias começou a trabalhar aos sete anos de idade, mas conseguiu completar o segundo grau com diploma de contabilidade. Formou-se em economia pela Universidade do Rio de Janeiro em 1938, e em 1957 completou sua pós-graduação pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), e em 1961 pelo Instituto de Oceanografia.

Foi professor visitante na Escola de Artes Dramáticas da Universidade Yale (1969-70); Visiting Fellow no Centro para as Humanidades, Universidade Wesleyan (1970-71); professor visitante no Departamento de Línguas e Literaturas Africanas da Universidade Obafemi Awolowo, Ilé-Ifé, Nigéria (1976-77); professor visitante do Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade Temple, Filadélfia (1990-91). Foi Professor Emérito da Universidade do Estado de Nova York em Buffalo (EUA) onde fundou a cátedra de Culturas Africanas no Novo Mundo do Centro de Estudos Portorriquenhos, Departamento de Estudos Americanos.

Por sua contribuição intelectual, política e artística, Abdias Nascimento recebeu os títulos de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia, Universidade do Estado da Bahia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade de Brasília, e da Universidade Obafemi Awolowo em Ilé-Ifé, Nigéria.

Sua luta pela liberdade e pelos direitos civis e humanos dos afrodescendentes começou bem cedo e seguiu até os últimos dias de sua vida.

Já em 1930, na cidade de São Paulo, participou da Frente Negra Brasileira. Em 1937 foi preso pelo Tribunal de Segurança Nacional no regime do Estado Novo por ter participado dos movimentos de protesto contra o regime. Em 1938 foi organizador do Congresso Afro-Campineiro. E em 1941 preso novamente por resistir à discriminação racial na capital de São Paulo, ficando na Penitenciária de Carandiru por dois anos.

Foi um artista múltiplo, de amplitude e grandiosidade

Em 1943 fundou o Teatro do Sentenciado na penitenciária de Carandiru, onde também ajudou a fundar o jornal dos prisioneiros. Em 1944, no Rio de Janeiro, fundou o Teatro Experimental do Negro, entidade que lutou, de forma inédita pelos direitos civis e humanos dos negros, e denunciando a segregação no teatro brasileiro, onde se pintavam os atores brancos de negro para eles pudessem desempenhar papéis de pessoas negras. Foi o responsável pela formação da primeira geração de atores e atrizes negros.

Escreveu a Carta de Dakar, primeiro protesto de um intelectual afro-brasileiro a ser ouvido por um público africano mundial contra a discriminação racial no Brasil.

Nesta tela, Abdias Nascimento reinventa os símbolos pátrios e verticaliza a bandeira brasileira, substituindo o lema positivista “Ordem e Progresso” pela palavra iorubá “Okê!”, uma saudação a Oxóssi, orixá da caça e da fartura. / Masp Twitter

Durante seu exílio de 13 anos, participou de inúmeras iniciativas importantes e marcantes por todo o mundo, além de desenvolver sua vasta obra como artista plástico.

Abdias, foi o primeiro deputado federal a lutar pelos direitos dos afrodescendentes brasileiros, condição que lhe rendeu uma indicação ao prêmio Nobel da Paz em 2010.

Foi um dos principais organizadores do Comitê Democrático Afro-Brasileiro, onde lutou pela libertação dos presos políticos do Estado Novo, e editou o jornal Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro.

Entre 1950 e 1968, atuou no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), principal força política de oposição ao regime autoritário instituído pelo golpe militar de 1964.

Viveu exilado durante 13 anos nos Estados Unidos e na Nigéria e nesse período participou de inúmeras iniciativas importantes e marcantes por todo o mundo, além de desenvolver sua vasta obra como artista plástico.

Na volta ao Brasil, Abdias participou de inúmeros protestos e das reuniões que fundaram o MNU – Movimento Negro Unificado. Fundou o Ipeafro – Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, que criou o Sankofa, um dos primeiros cursos de preparação de professores para a introdução da história e da cultura africanas e afro-brasileiras no currículo escolar.

Em 1991, tornou-se senador. Foi nomeado por Leonel de Moura Brizola, como titular da nova Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras do Governo do Rio de Janeiro, onde ficou até 1994. Em 1999, assumiu como primeiro titular da nova Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Em 1995, foi eleito Patrono do Congresso Continental dos Povos Negros das Américas, realizado no Parlamento Latino-Americano em São Paulo, na ocasião do 3º Centenário da Imortalidade de Zumbi dos Palmares.

Confira a ocupação Abdias do Nascimento, realizada pelo Itaú Cultural aqui

Para além de seu talento artístico e de sua incrível capacidade política e articuladora, Abdias foi um escritor genial e memorável, tendo dezenas de livros publicados ao longo de sua vida, marcando definitivamente uma trajetória construída com muita luta, suor, honra e brilhantismo. Uma vida dedicada à liberdade de seu povo.

Rememorar a vida e as lutas de Abdias do Nascimento, no ano em que sua ausência tão significativa completa 10 anos, é fundamental. O ano de 2021 está marcado no Brasil pelos sucessivos assassinatos de pessoas negras, pelo inegável racismo estrutural que, ainda mais premente e descarado, assola o nosso país.

Toda a luta pelos direitos civis e humanos do povo negro, pela qual lutou Abdias e tantas pessoas ao longo de mais de um século, ainda parece longe de ter alcançado um estágio mais avançado, porém com toda certeza, a contribuição deste homem incansável tornou possível que milhares de mulheres, homens, garotinhos e garotinhas negras pudessem voltar a sonhar com um mundo mais justo e igualitário.

Viva Abdias do Nascimento, viva o povo negro!

 Referência: Portal Geledes – www.geledes.org.br


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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