Em maio de 2001, fiz parte de um grupo de jornalistas brasileiros que viajou a Israel para escrever sobre a “Terra Santa”. Na verdade, era um esforço de marketing para levar mais brasileiros para o país, que tinha visto os turistas minguarem.
Alguns meses antes, numa demonstração de força e desrespeito aos palestinos, o então primeiro-ministro israelense Ariel Sharon entrou na Esplanada das Mesquitas e provocou o caos. Ali iniciou-se a segunda Intifada, a revolta contra a ocupação mais longa da história contemporânea.
Durante a viagem, muitos de nós ficamos perplexos com o que vimos. Não poderíamos visitar a Igreja da Natividade, um dos pontos altos dos cristãos, por causa da revolta. Um montão de coisa era proibido. E por que raios alguém iria para lá nessa situação? Como nós, jornalistas, escreveríamos uma matéria sobre turismo na região com tanta segregação e violência promovida pelo Estado, com tantas questões de segurança, com tanta gente sofrendo? Refletimos sobre isso, num jantar.
A representante do ministério do turismo israelense, uma carioca, começou a se irritar com a discussão. Disse que para o brasileiro, isso não interessava – não deixa de ser irônico alguém que vem do Rio de Janeiro falar nesses termos. Um jornalista do grupo, para quebrar o clima ruim, pediu mais vinho. A representante do governo, que pagava a conta, disse que tinha acabado o vinho do restaurante. A situação foi extremamente constrangedora.
A viagem me impactou, mas por outros motivos. Por que a cobertura da imprensa brasileira era tão fora da realidade? Um tempo depois de voltar ao Brasil, após 11 de setembro de 2001, decidi pesquisar o assunto. Optei por fazer uma comparação entre como foi a representação de árabes e muçulmanos antes e depois dos atentados nos EUA, a partir de reportagens nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Li as edições de um mês de cada jornal em um período anterior e posterior a 11 de setembro. Aqui estão alguns dos meus achados:
1) A maior parte do que se publica sobre árabes e muçulmanos nos dois jornais brasileiros é relacionado à questão palestina. Em um mês escolhido de 2001, foi de cerca de 30% do total da cobertura relacionada aos dois temas, enquanto em 2002 foi de cerca de 70%, considerando que no período ocorria uma incursão militar israelense na Cisjordânia.
2) Do ponto de vista temático, a violência se sobrepõe a qualquer outro tema, seja política, economia, cultura etc. Violência dominou entre 39% e 60% do total da cobertura relacionada a árabes e muçulmanos nos quatro recortes estudados, parte de março e de abril de 2001 e o mesmo período de 2002 em ambos os jornais.
3) O uso de palavras como “resposta” e “retaliação” estiveram sempre relacionados a Israel e nunca aos palestinos. Israelenses só respondem, palestinos só atacam. Isso parece inverter o papel de quem é vítima, que tem seus territórios ocupados pelo período mais longo da história contemporânea.
4) O mesmo ocorre com o vocábulo “autodefesa” e a ideia de “ter o direito de se defender”, que são usados somente para o lado israelense. Dessa forma, se torna implícito que o outro lado tem o direito de ser bombardeado, mas não tem o de se defender.
5) De um lado há um exército bem treinado – o serviço militar é obrigatório para jovens israelenses de ambos os sexos. Portanto, em Israel, quem não está no exército e fortemente armado, está na reserva, com acesso a armas. Isso não aparece.
Prensa Latina
6) Do outro tem civis que vivem sob uma ocupação e uma população que tem cidadania israelense, mas não tem os mesmos direitos, como mostra a questão de Sheikh Jarrah – judeus têm direitos sobre terras adquiridas antes de 1948, os palestinos, não. Isso também não aparece.
7) O sintagma “territórios ocupados” estava entrando em extinção no início dos 2000. E quando era usado, se empregava de maneira confusa fazendo com que o leitor desavisado pensasse que eram os palestinos que ocupavam os territórios e não os israelenses. Atualmente, parece a palavra se extinguiu de vez. Percebo que “ocupados” anda desaparecida da cobertura jornalística brasileira. Mas, a ocupação israelense continua e, infelizmente, avança. Veículos pró-Israel usam “disputados”, apesar de não haver disputa, já que as resoluções da ONU são bem claras sobre os direitos dos palestinos.
8) As origens do conflito, Balfour, a Nakba, o desrespeito sistemático de ISRAEL às leis internacionais, da Convenção de Genebra etc. não são sequer mencionados. Isso pode dar a impressão de que se trata de um conflito religioso e não político e que só a repressão basta. O direito dos que sofrem opressão não é sequer mencionado. Outro item totalmente ausente.
9) Nenhuma menção aos cristãos palestinos. Posso garantir que eles existem e são gente como a gente, assim como os muçulmanos palestinos.
10) Os palestinos não têm voz nos jornais. Enquanto há entrevistas e declarações com uma série de membros do governo israelense e populares, o lado palestino tinha somente declarações de Arafat ou de algum outro membro da OLP, como o também falecido Saed Barekat ou Hannan Ashrawi. O mais interessante é que, invariavelmente, publicava-se um artigo do jornalista irlandês Robert Fisk para dar o lado palestino.
11) O sintagma “infraestrutura do terror” foi usado acriticamente no recorte estudado para justificar o bombardeio de regiões densamente povoadas de Gaza. Ou seja, o governo israelense dizia que só queria acabar com tal infraestrutura, quando todos sabemos que mal há infraestrutura básica para as pessoas viveram em Gaza. O sintagma surgiu em 1982, ressurgiu em 2000 e pode reaparecer a qualquer momento. O sintagma era muito usado com os verbos “desmantelar” e “erradicar”, apesar de eles não serem sinônimos de bombardear.
Essas são algumas das conclusões da dissertação de mestrado “Orientalismo na Imprensa brasileira”, de minha autoria, orientada pelo professor Mamede Jarouche e aprovada com distinção e louvor em 2007 no Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Ela pode ser baixada gratuitamente em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8154/tde-01092011-102913/pt-br.php
Apenas para concluir com uma nota feliz nesses tempos difíceis: neste mês brindarei duas décadas com o rapaz gentil que sugeriu o vinho naquela desagradável noite em Jerusalém.
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* Isabelle C. Somma de Castro é pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri-USP), do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira (GTF/Unila) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Concluiu pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. É doutora em História Social (USP) e mestre pelo programa de Língua, Literatura e Cultura Árabe do Departamento de Letras Orientais (USP).
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