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Bolívia: Ex-ministro denuncia judicialização e ação paramilitar para impedir eleições

Em entrevista exclusiva, Jerges Mercado aponta que desmonte do Estado está agravando pandemia enquanto mídia realiza “guerra assimétrica” contra o MAS
Felipe Bianchi
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Você sabia que até 2004 a expectativa de vida na Bolívia era de 64 anos e que hoje é de cerca de 74 anos? Que a nacionalização dos hidrocarbonetos e das riquezas estratégicas permitiu o incremento do Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 9,5 bilhões para mais de US$ 44 bilhões? 

Ou que o país andino conta atualmente com 50% a mais de médicos e hospitais do que possuía antes de o presidente Evo Morales e o Movimento Ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos Povos (MAS-IPSP) chegarem ao poder em 2006?

Que enquanto o mundo conclama o apoio dos médicos cubanos para o combate à pandemia, a autoproclamada presidenta Jeanine Áñez os expulsou do país?

Esses e outros temas são tratados nesta entrevista exclusiva com o líder boliviano Jerges Mercado, ex-ministro de Obras Públicas, ex-vice-ministro de Eletricidade e atual candidato a deputado pelo MAS-IPSP por Santa Cruz. Ele conversou com jornalistas brasileiros e tratou dos temas mais destacados da política de seu país. Em meio a respostas contundentes, ele alerta sobre a necessidade de participar e fiscalizar as eleições que se aproximam, previstas para 6 de setembro.

Em entrevista exclusiva, Jerges Mercado aponta que desmonte do Estado está agravando pandemia enquanto mídia realiza “guerra assimétrica” contra o MAS

Hora do Povo
Jerges Mercado, ex-ministro de Obras Públicas, ex-vice-ministro de Eletricidade e atual candidato a deputado pelo MAS-IPSP por Santa Cruz

Confira a íntegra da conversa:

Leonardo Wexell Severo: Como um veterano dirigente, gostaríamos que nos desse um quadro da luta contra a pandemia e da dificuldade de uma disputa eleitoral em meio a esta grave crise sanitária.

Jerges Mercado: Muito obrigado. Na Bolívia, estamos muito preocupados porque a pandemia, lamentavelmente, já ultrapassou os 45 mil infectados e estamos chegando aos dois mil mortos. Para a Bolívia, um país com apenas 11 milhões de habitantes, este é realmente um número catastrófico. 

Consideramos que o governo nacional, lamentavelmente, se atrasou rotundamente em controlar a pandemia.  Vejam que detectamos a pandemia quando havia apenas dois infectados e tiveram quatro meses para resolver o problema e nada o fizeram. Agora estamos na rua em Santa Cruz, todo mundo, quando temos oficialmente 45 mil infectados e acredito que tenhamos de multiplicar esta cifra por pelo menos quatro. E ainda temos entre 100 mil e 200 mil infectados que não foram detectados porque o governo não fez as provas massivas para identificá-los, tratá-los e curá-los. 

Tivemos pessoas que morreram nas salas dos hospitais, temos cemitérios colapsados em Cochabamba, necrotérios onde os mortos estão amontoados e não se sabe o que fazer com eles. E temos uma economia tremendamente destruída.

Tivemos pessoas que morreram nas salas dos hospitais, temos cemitérios colapsados em Cochabamba, necrotérios onde os mortos estão amontoados e não se sabe o que fazer com eles. E temos uma economia tremendamente destruída. Começaram a destruir a economia com o golpe de outubro e novembro, o que implicou numa queda de um pouco mais de 2% do PIB, já no ano passado. No caso de Bolívia, significou uma perda de mais de dois bilhões de dólares, numa desaceleração do crescimento. Isso foi se acentuando até março e com a pandemia, a economia agora se encontra realmente em circunstâncias lamentáveis. As pessoas não têm dinheiro, foram despedidas e muitas pessoas preferiram se suicidar porque tiveram de escolher entre morrer de fome ou de coronavírus. São casos isolados, mas existem. 

O governo se atrasou em combater a pandemia e destruiu a economia nacional. Este é um dos diagnósticos que posso dar neste momento. Temos hoje uma das mais altas taxas de mortalidade em toda a América Latina e uma das taxas de recuperação mais baixas, de 20 a 25%. Já entre as taxas de mortalidade, estamos na faixa de 6 a 7%, uma das mais altas da América Latina.

Vanessa Martina Silva: Somente para complementar essa questão, tenho escutado algumas pessoas da oposição que falavam sobre o sistema de saúde. Nos anos do governo de Evo Morales se avançou muito nesse tema, mas como se encontra atualmente? Havia médicos cubanos que foram expulsos. Qual o efeito que isso tem atualmente no enfrentamento da pandemia?

Dou graças a Deus que a pandemia chegou em 2020 na Bolívia, porque se chegasse em 2005, 2006, 2007, a catástrofe teria sido imensamente maior. No começo da pandemia, em março, tínhamos oito mil médicos adicionais aos 17.500 que tínhamos em 2005, profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS), formados durante estes 14 anos.

Em 2005 tínhamos aproximadamente 2000 estabelecimentos de saúde em todo o país. Quando começou a pandemia tínhamos pelo menos 50% a mais. Ou seja, em 180 anos se fez dois mil hospitais e em 14 anos se fez pelo menos 50% a mais. Muitos destes estabelecimentos estavam prontos para serem inaugurados e o governo somente não os inaugurava porque não tinha a cor do seu partido político, para não dar o crédito a Evo Morales. 

Temos 50% a mais de médicos e estabelecimentos de saúde que tínhamos antes do MAS assumir o poder. Se a pandemia tivesse chegado antes, a catástrofe teria sido imensamente maior

Temos o exemplo concreto em Santa Cruz. Demoraram pelo menos dois meses para inaugurar o hospital de Montero. O hospital de Cobija demoraram três meses, e o hospital Sul de El Alto foram três meses para inaugurar, somente para pintar com a cor do partido político atual e terminar de equipá-lo, para não dar crédito a Evo Morales. 

Outra coisa, como disse Vanessa, este governo chegou brigando com meio mundo, com países com os quais a Bolívia tinha boas relações. Brigou com a Espanha, com a Argentina, com Cuba e com a Venezuela. 

Os cubanos e venezuelanos foram praticamente expulsos da Bolívia. São cerca de cinco mil médicos que tiveram um trabalho espetacular na Bolívia e que foram expulsos. Por uma questão ideológica, se negaram a pedir ajuda aos cubanos e aos chineses assim que surgiu a pandemia. 

Aqui há uma imensa responsabilidade do governo nacional, até porque não preparou as condições para enfrentar a pandemia. Sabia desde dezembro que havia pandemia no mundo e que chegou aqui três meses depois. Fomos um dos últimos países da América do Sul onde o vírus chegou. E não prepararam absolutamente nada para enfrentar a pandemia. Quando começaram a comprar coisas que era óbvio que deveriam ter adquirido antes, como respiradores e máscaras, acabaram roubando, fazendo o negócio do século. 

Mas estes senhores elevaram o preço dos respiradores em quase 400%, em plena pandemia, quando as pessoas estavam morrendo por falta de um ventilador ou de fome

Aqui geralmente se dizia que os corruptos levavam 8%, 10%, 15%, não sei. Mas estes senhores elevaram o preço dos respiradores em quase 400%, em plena pandemia, quando as pessoas estavam morrendo por falta de um ventilador ou de fome. Então estiveram mais preocupados e ocupados em fazer dinheiro e em beneficiar seus parentes e amigos, colocados nos postos-chave do governo do que realmente em enfrentar a pandemia. Estiveram mais preocupados em tirar proveito político e perseguir opositores do que em resolver a pandemia. Por isso é que temos todos estes problemas atualmente.

Felipe Bianchi: Há um claro bloqueio informativo sobre o que está ocorrendo na região, em função dos oligopólios midiáticos. No Brasil, por exemplo, na época do golpe, estava na moda falar da Bolívia, quando usavam aquele documento da Organização dos Estados Americanos (OEA) dizendo que a eleição tinha sido fraudada. Além de ter sido comprovado que tal documento não tinha consistência e que a tal “fraude” era na verdade uma fraude, temos agora a questão da pandemia, das eleições agendadas para setembro e não se fala mais nada sobre a Bolívia no Brasil. É como se o seu país voltasse a não existir para os brasileiros. Qual a sua avaliação sobre o enfrentamento ao bloqueio desinformativo existente em toda a América Latina?

Sem dúvida, os meios de comunicação na Bolívia estão totalmente comprados ou amordaçados pelo governo. O governo utiliza a propaganda estatal paga aos meios de comunicação e a usa como ferramenta para poder chantagear, porém também utiliza a repressão judicial contra a mídia e os opositores. Arma processos onde eles não existem contra o candidato do MAS, Luis Arce Catacora – que tem três ou quatro.

Contra muitos de nós que somos candidatos estão armando para nos tirar de circulação ou para calar-nos para que não falemos a verdade. E sobre isso os meios de comunicação não dizem absolutamente nada, a maioria. Então há um cerco midiático terrível. Por isso, esses meios alternativos como o que contamos nesse momento são de imensa utilidade, porque aqui estão armando uma guerra totalmente assimétrica.

Os meios de comunicação na Bolívia estão totalmente comprados ou amordaçados pelo governo. Aqui estão armando uma guerra totalmente assimétrica

O governo tem sua candidata [Jeanine Anéz], além de outros candidatos como Carlos Mesa, Luis Camacho, Tutu Quiroga, que representam exatamente o mesmo, os poderes reais do país, vinculados fortemente às transnacionais e aos Estados Unidos. 

O único que representa o povo, a classe média, o bloco patriótico e popular é o Movimento Ao Socialismo. Por isso, há uma batalha feroz contra o MAS. Então faz falta esta mídia alternativa que permita que nossa voz seja ouvida e, sobretudo, para alertar que há uma intenção bem clara desse governo: eles querem eleições sempre que esteja assegurado que estes blocos de poder ganhem. Não querem eleições onde o povo ganhe, por isso estão tentando tirar o nosso candidato ou fazer com a sigla do MAS despareça, porque vamos ganhar. 

Todas as pesquisas e a percepção cidadã nos diz que Luis Arce Catacora e o MAS têm mais de 40% das intenção de votos. O que nos segue está pelo menos 15% atrás. Por isso, estão fazendo todo o possível para tirar o MAS e o seu candidato. 

Caso isso não ocorra, acredito que estão armando um plano B, que é fraudar as eleições. E estão martelando desde agora na mente das pessoas que há fraude, para que quando anunciem oficialmente as pessoas acreditem. Ou seja, eles estão preparando ilegalmente a fraude para ficar no poder ilegalmente como fizeram no ano passado. 

Não descarto um plano C: caso não consigam nada disso, dão um autogolpe para entregar o governo aos militares

E inclusive não descarto um plano C: caso não consigam nada disso, praticam um autogolpe para entregar o governo aos militares. Não descarto que cheguem a esse extremo com o fim de evitar que retornem ao poder o governo do processo de transformações do MAS.

São os cenários com os quais estão jogando, intimamente vinculados à burguesia internacional e aí está, lamentavelmente, também a oligarquia brasileira, a argentina e a norte americana. Há toda uma articulação neste processo eleitoral para que fiquem nas mãos destes grupos nacionais e internacionais.

Leonardo Wexell Severo: A Bolívia liderou, durante vários anos, as mais altas taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina com Luis Arce Catacora como ministro da Economia de Evo. Como fazer agora, em meio a um processo eleitoral de tanta confrontação, para dar visibilidade às propostas do MAS? Enquanto oposição, como vocês têm feito campanha eleitoral, quais têm sido suas dificuldades para popularizar as propostas?

A primeira dificuldade que estou enfrentando são as ameaças de milicianos. Eu ocupei alguns cargos durante a primeira gestão de Evo Morales. Durante os primeiros cinco anos, eu fui ministro, vice-ministro, entre outros cargos. E o governo atual vem investigando onde estive para armar processos penais. Tenho informações de que estão fazendo isso para evitar minha candidatura, porque em Santa Cruz sou um dos que mais tem aparecido e em nível nacional, sou um dos candidatos que mais tem dado a cara a tapa. Esta tem sido uma das primeiras dificuldades.

A segunda dificuldade é que até a segunda-feira não podíamos sair às ruas para fazer campanha política porque havia risco à saúde. Eu tive um infarto enfrentando os grandes problemas do governo em 2008, em função da tensão que havia e eu era uma autoridade nacional. Ou seja, já tenho uma doença. Agora podemos sair livremente e estou na rua fazendo campanha ao lado dos companheiros e de alguns poucos meios de comunicação que nos dão cobertura — a maioria o faz para ver quando erramos para depois destacar.

Usamos as redes sociais, mas é insuficiente. Temos 7,5 milhões de eleitores. No melhor dos casos, cheguei a alcançar 250 mil eleitores em uma semana

E a terceira é uma questão logística. Fui autoridade nacional, mas sou um homem comum, não tenho grande fortuna nem dinheiro para fazer campanha milionária. Faço com os poucos recursos que tenho depois de muito tempo sem trabalhar, devido à pandemia e por várias razões. 

O que estamos fazendo para seguir em frente: usamos as redes sociais, fazemos vídeos, programas informativos e usamos o Facebook. Tenho três programas durante a semana e produzo pelo menos um material por dia com alguma notícia, com alguma proposta, com alguma crítica. 

Essa é a forma como estamos trabalhando, porém é ainda muito insuficiente, porque temos 7,5 milhões de eleitores. No melhor dos casos, cheguei a alcançar 250 mil eleitores em uma semana, o que ainda é insuficiente. Somos poucos os que estamos enfrentando essa batalha. Outros candidatos na última semana também entraram nessa batalha pelas redes sociais e meios de comunicação alternativos. 

“Estamos enfrentando três dificuldade na campanha: a judicialização da polícia e, inclusive, represálias de cunho paramilitar; a pandemia e os poucos recursos”

Então, basicamente, são essas três dificuldades: a judicialização política e os possíveis processos que possam trazer represálias, inclusive de cunho paramilitar que podem te agredir; a segunda é a questão da saúde e da pandemia, que é um risco, obviamente, ao qual estamos submetidos; e a terceira é logística. E quando eu falo aí está também o cerco midiático, porque quando a mídia aparece vem somente para tentar encontrar algum erro e, dependendo da declaração, cortam ou editam. A maioria faz isso, ou quase todos. 

Mas quais as vantagens? A vantagem é que o povo nos conhece, sabe que não cometemos nenhum ato de corrupção, sabe que somos gente capaz e, finalmente, sabe que o governo do MAS-IPSP foi o melhor que a Bolívia já teve, apesar dos muitos erros e alguns casos inclusive de delito. Apesar disso, fomos um dos melhores governos, para não dizer o melhor.

O PIB aumentou de US$ 9,5 bilhões para US$ 44,5 bilhões, E iria crescer um pouco mais, mas com o golpe inconstitucional destruíram a economia 

O que disseste sobre o Produto Interno Bruto. O PIB aumentou de US$ 9,5 bilhões para US$ 44,5 bilhões, mais de quatro vezes mais e iria crescer um pouco mais, mas com o golpe inconstitucional destruíram a economia e ela não cresceu como deveria.  

Em relação à pobreza, quando Evo Morales assumiu, tinha 59,9% de pobres e não é que eles tenham desaparecido, mas já não é este alto percentual, agora é de 38%. E havia uma extrema pobreza de 35,2%. Ainda existe gente na extrema pobreza, mas agora é de 15,2%. Bom, isso foi no ano passado, porque não há dúvidas de que com a pandemia e com a má condução da economia, hoje tenhamos muito mais pobres do que havia no ano passado.

Nosso temor é de que com a volta desse pessoal ao governo a quantidade de pobres e extremamente pobre suba ainda mais porque as políticas implementadas são do modelo neoliberal, para os que mais têm. Não são políticas de ampliação do estado, de recuperação das pessoas, de levar até elas serviços públicos que tanta falta fazem.

Vanessa Martina Silva: Estamos vendo esses processos de judicialização como uma forma de desestabilização, de golpes, como vimos no Brasil, como se tentou na Argentina e agora há um processo contra Evo Morales. Eu escutava pela manhã a CNN em Espanhol e havia um senhor que chamava Evo de terrorista, narcotraficante e de coisas impensáveis e pediam a cabeça do ex-presidente. Essa judicialização ataca Evo, Álvaro García Linera, Luis Arce e outros candidatos. Isso me parece grave porque pode, inclusive, inabilitar o MAS. Acredito que houve muitos avanços na gestão Evo na questão do judiciário, mas gostaria de saber como ficaram estes altos postos dos juízes, se houve mudanças, e como as pessoas entendem este fenômeno, esta ofensiva contra Evo e o MAS?

Em primeiro lugar, neste momento, a Bolívia vive um momento em que tudo de mal que se acontece no país é culpa de Evo Morales. Tivemos aviões que saíram carregados de drogas nestes sete meses deles e também jogaram a culpa em Evo Morales. 

Ainda que estes supostos julgamentos não tenham pé nem cabeça, sejam totalmente ilegais e inconstitucionais, obviamente estão tratando de tirar vantagem. Mas finalmente uma parcela das pessoas se dá conta de que isso tem por objetivo criar uma cortina de fumaça para evitar o crescimento de Arce e do MAS.

Os meios de comunicação dão ampla cobertura às “informações” divulgadas pelo governo, que são distorcidas e nada falam sobre nós, que lhes explicamos a diferença. 

Porém, lamentavelmente, os meios de comunicação jogam um papel negativo porque dão ampla cobertura a essa “informação” divulgada pelo governo, que é distorcida, e nada falam sobre nós, que lhes explicamos a diferença. Estão, paulatinamente, buscam introjetar na consciência das pessoas as informações que eles querem.

Avançamos bastante na questão do judiciário, é verdade, na democratização da Justiça, mas temos que reconhecer que foi um dos temas em que faltou fazer muitas coisas, que não se fez. Então a Justiça, lamentavelmente, é uma das piores e está totalmente submetida ao governo nacional neste momento. Esta é a triste verdade e espero que as pessoas se deem conta que muitos dos processos são políticos, que têm unicamente o objetivo de tirar os candidatos da disputa eleitoral.

Leonardo Wexell Severo: A comunidade boliviana em países como Brasil e Argentina foram fundamentais para garantir os 10% de vantagem nos votos que garantiram a reeleição de Evo Morales, impedido de celebrar a vitória porque teve de exilar-se. Nesses tempos de perseguição, somado ao contexto do governo fascista de Bolsonaro, o que podem fazer estes bolivianos no Brasil para organizarem-se e ajudarem neste processo? Creio que vão utilizar a pandemia para que não participem das eleições, como querem fazer na própria Bolívia.

Eu digo à coletividade boliviana que vive no Brasil que, antes de qualquer coisa, tem de estar a consciência social. Que Bolívia tínhamos antes de 2005? Uma Bolívia mendiga, na qual todos os serviços públicos dependiam do estrangeiro, como a eletricidade, que era propriedade de espanhóis, alemães, canadenses e ingleses. Os hidrocarbonetos também era propriedade de estrangeiros. A água era dos franceses e norte-americanos. Ou seja, tudo em nosso país pertencia às transnacionais. 

De 2005 para cá, iniciamos um processo de recuperação da dignidade da Bolívia, com soberania política, econômica e social. Também fizemos muito contra a pobreza extrema e moderada, o que proporcionou melhorias desde a luta contra o analfabetismo até a estrutura de rodovias do país.

“Que Bolívia tínhamos antes de 2005? Uma Bolívia mendiga, na qual todos os serviços públicos dependiam do estrangeiro. A eletricidade, que era propriedade de espanhóis, alemães, canadenses e ingleses. A água era dos franceses e norte-americanos. Ou seja, tudo pertencia às transnacionais”

Em todos os âmbitos, incluindo a política externa, foi devolvida a dignidade e a soberania ao nosso país. É certo que em 14 anos fizemos muito, mas também é certo que cometemos erros e desacertos. Mas se compararmos o que foi feito de positivo com o que foi feito de negativo, de longe, prevalece o positivo. Por isso, apelo à consciência social dos bolivianos no Brasil para que façam prevalecer o seu direito ao voto. E que exerçam este direito votando no candidato que representa as grandes maiorias nacionais na Bolívia. E o candidato que pode retomar o crescimento econômico, a luta contra a pobreza e o desenvolvimento equitativo é Luis Arce Catacora, com David Choquehuanca como vice.

Amigos bolivianos, exijam que se permita o voto em todos os confins. Particularmente em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, mas que se permita o voto em todos os lugares onde haja consulado da Bolívia, para que prevaleça seu direito ao voto. Inclusive, vale lembrar que, em nossos governos, fizemos muito para proteger os bolivianos vivendo em outros países. Estabelecemos o conceito de “Pátria Grande” e criamos mecanismos para que se respeitem os direitos dos bolivianos que vivem em todos os cantos do mundo. Com consciência e organização, é possível que vençamos e retomemos o processo de mudanças em nosso país. 

Felipe Bianchi: O mundo inteiro testemunhou o papel cumprido por setores militares no golpe ocorrido recentemente na Bolívia. No Brasil, estes setores têm, atualmente, participação ativa na política, exercendo uma espécie de cerco permanente a outros poderes — dizem que “não acontecerá nada, desde que obedeçam calados”. Como você avalia este problema na América Latina que, em 2020, voltamos a sofrer com esta ingerência dos militares na política? E como assegurar a lisura de um processo democrático justo na Bolívia em setembro? Teremos observadores internacionais, organizações que acompanhem o processo?

Vanessa Martina Silva: A OEA cometeu a “fraude sobre a ‘fraude’”. Como garantir que não aconteça novamente esta ingerência da parte dos observadores, que deveriam garantir o processo, e não comprometê-lo?

Estou de acordo com o fato de que, na América Latina, lamentavelmente, nos últimos anos, vem ocorrendo um retrocesso das forças progressistas e um empoderamento dos grupos reacionários mais “linha dura” no continente. Entre eles, não está isento o Brasil, que tem um dos grupos mais recalcitrantes. 

As forças militares têm recriado aquele ímpeto, aquela vontade de manejar o poder. Aqui se viu o exemplo, quando o comandante-em-chefe foi à Assembleia Plurinacional exigir os ascensos, ou seja, exigir que os militares fossem mandados imediatamente à reserva “ativa” ou recebessem “baixa voluntária”. É um péssimo antecedente que eles deliberem e queiram mandar em um órgão legalmente e legitimamente eleito, como a Assembleia Plurinacional. 

É certo que há elementos entre os setores militares que estão ansiosos para alcançar o poder. E há fatias da sociedade civil que, lamentavelmente, vê isso com bons olhos. Há uma fração da população que é reacionária, gente retrógrada, que veria com bons olhos e, justamente por isso, é perigoso descartar esta opção. Sabemos que estas correntes são minoritárias entre os militares, mas existem. Os militares sabem que a justiça tarda, mas chega e, caso se metam a fazer algo desta natureza, não sei se em 10, 15 ou 20 anos, mas que serão julgados posteriormente. Creio que a maioria entende bem isso e compreende que devem abster-se da disputa em torno do poder político.

Sobre as formas de garantir o processo no “dia D” [6 de setembro], a melhor garantia é a mobilização social. O povo, em primeiro lugar, tem de estar muito atento para defender seu voto. Em segundo lugar, é importante que venham missões internacionais de observadores independentes. Na OEA não confiamos. Não confiamos hoje e nem confiaremos amanhã, ainda mais depois do papel que tiveram no golpe do ano passado. 

“Não confiamos hoje na OEA hoje e nem confiaremos amanhã, ainda mais depois do papel que teve no golpe do ano passado”

A OEA carrega enorme responsabilidade no que se passou aqui. Portanto, não tem nossa confiança. Precisamos de missões de observação internacional neutras e transparentes. Missões de países como Alemanha, França, China, Rússia. De organismos neutros, e não observadores de dois ou três dias. É preciso que venham semanas antes para acompanhar todo o processo eleitoral e evitar a perseguição política, para evitar a manipulação informativa e evitar que se utilizem de fundos do Estado para fazer propaganda política e eleitoral, como está fazendo Jeanine Añez neste exato momento. A maior parte da propaganda que está na televisão é propaganda política a favor do governo e de desprestígio contra seu principal adversário, o MAS. 

Além disso, é fundamental contar com a presença de pessoas como vocês, de meios de comunicação alternativos atentos para fazer denúncias. Se acontecer de prenderem Jerges Mercado por razões políticas, é importante que haja denúncias sérias na mídia sobre esta perseguição política. Se há algum tipo de fraude, são os meios alternativos que farão a denúncia. Em caso de um golpe de Estado, não estarão inertes e não dirão que estão isentos. 

Em síntese, precisaremos de mobilização popular, missões realmente neutras de observadores internacionais e a cobertura comprometida dos meios alternativos, preparados para fazerem as denúncias necessárias. São três elementos que podem nos ajudar a assegurar eleições transparentes e justas no dia 6 de setembro. 

Leonardo Wexell Severo: Estava na Bolívia em 2008 quando os Estados Unidos tentaram retirar a “Meia-Lua” (Beni, Pando e Tarija) do mapa da Bolívia. Nesta época, lembro de pichações com mensagens do tipo “Evo vai morrer em Santa Cruz”, a destruição da sede da Empresa Nacional de Telecomunicações (Entel), que havia sido nacionalizada. Há uma elite em Santa Cruz que trabalha claramente contra o sentimento nacional, carregada de preconceito e ódio contra os indígenas. Como isso foi trabalhado nos anos de governo Evo Morales? Falo até hoje com gente de Santa Cruz que demonstra muito fortemente esta repulsa. Reclamam até de que se construiu campos de futebol. Qual o nível de perigo desta disputa em Santa Cruz?

Eu lembro muito bem desta época, pois cheguei a sofrer um infarto, muito por conta de todo este contexto de convulsão social. Neste período, eu era autoridade da entidade reguladora do sistema elétrico boliviano. Havia muita sabotagem, explodiram os dutos e estávamos a ponto de ficar sem energia elétrica na cidade. A polícia e os militares foram acionados para evitar um massacre. Os grupos violentos tomaram a cidade e havia racionamento elétrico às noites. Corremos sério risco de um massacre. 

Lamentavelmente, quem orquestrou e dividiu o país naquele momento são os mesmos que voltaram do exterior recentemente e estão operando politicamente. E às vezes, inclusive, são recebidos como heróis, como se não tivessem tentado dividir o país e arrastar-nos para uma guerra civil. Ignoram que suas hordas atacavam órgãos públicos cheios de pessoas. Eu fui declarado inimigo de Santa Cruz, mesmo sendo ‘cruceño’, nascido e criado aqui, como meus avós. O risco de polarização é grande e podemos viver este cenário novamente, pois estes grupos violentos ainda existem e muitos de seus líderes voltaram para o país. Há grupos atuantes em Santa Cruz e Cochabamba. 

“Se recordam das bandeiras nazistas desfilando pelas ruas de Santa Cruz? Houve bloqueio no qual queimavam as bandeiras pátrias e desfilaram as bandeiras com suásticas. São extremamente retrógrados. Defendem com unhas e dentes os privilégios dos grupos de poder”

Se recordam das bandeiras nazistas desfilando pelas ruas de Santa Cruz? Houve bloqueio no qual queimavam as bandeiras pátrias e desfilaram as bandeiras com suásticas. São extremamente retrógrados. Defendem com unhas e dentes os privilégios dos grupos de poder. São grupelhos, mas que infelizmente têm perigosa capacidade de mobilização. Exploram um sentimento racista e antipatriótico. Alguns deles dizem que jamais respeitarão a wiphala, mas empunham a bandeira estadunidense.

Vanessa Martina Silva: O governo de Añez tem caráter de transição e deveria cumprir a missão de convocar eleições o mais breve possível. Porém, o que temos visto é que ela está aproveitando este período para promover privatizações a toque de caixa, desmontando o Estado. Quais as perspectivas para um futuro próximo a respeito das possibilidades econômicas? O Brasil de hoje é a prova de que o neoliberalismo privatista leva a uma situação econômica caótica, com forte redução do PIB. A Bolívia era o país que mais crescia na América Latina e, agora, volta a ter este caráter entreguista.

De fato, a Bolívia liderou, por muitos anos, o crescimento econômico na América Latina. Mas há também que se ver a qualidade deste crescimento. Foi um crescimento baseado na demanda interna e com uma forte distribuição de renda. Digo isso porque é possível crescer, mas não repartir o bolo, concentrando a riqueza nas mãos de grupos privilegiados, que é o expediente neoliberal. Na Bolívia, foi o contrário: houve crescimento e utilizava-se este resultado para combater a desigualdade.

Qual é o caminho que temos à frente? Há dois: Primeiro, certos grupos de poder, como o de Añez, Camacho e Mesa, que são a mesma coisa, se eles agarram o poder, com certeza terminarão de desmantelar o Estado Plurinacional, terminarão de desmontar a economia e continuarão a concentrar a riqueza nas mãos dos grupos de poder. Neste cenário, as classes populares e as classes médias podem esperar o pior possível. Fala-se de uma contração do PIB de 6%. Quem assumirá este prejuízo? Os grupos de poder? Óbvio que não. Cobrarão este prejuízo do povo. 

O outro caminho é adotarmos políticas keynesianas, ampliando o investimento público e a participação do Estado de tal forma que esta queda no PIB não seja tão grande. Sobretudo, que esta queda no PIB não recaia sobre os mais pobres. Quem deve pagar esta conta são os que mais têm. Esta é a diferença. 

Caso os grupos que mencionei anteriormente vençam, podem esperar pela redução do Estado, justamente quando a pandemia do coronavírus obrigou o mundo a testemunhar a importância do Estado para liderar e buscar soluções. Temos de evitar que se enfraqueça o Estado para frear os danos da contração econômica. Primeiro, frear a crise. Depois, retomar o crescimento para garantir melhores condições de vida para todo o povo boliviano. 

Antes falavam para o povo que éramos uma ditadura e agora sim sentem o que é uma ditadura. Disseram que éramos um governo ruim e agora se sente o que é um governo ruim

Apesar da guerra que estamos enfrentando, apesar dos meios de comunicação partidarizados, sou muito otimista: o povo boliviano tem consciência que estava bem melhor antes que agora. Que antes falavam para o povo que éramos uma ditadura e agora, sim, sentem o que é uma ditadura. Disseram que éramos um governo ruim e agora se sente o que é um governo ruim. 

As pesquisas de intenção de voto asseguram que ganharíamos em primeiro turno. Mas ainda precisamos trabalhar bastante, os meios de comunicação precisam parar de distorcer a verdade, a população precisa entender o que está em jogo. Eles insistem em dizer que nada foi feito. A quantidade de hospitais construídos foi enorme. E construir campos de futebol é um problema? O cidadão que pratica esportes tem menos chance de ficar doente. É parte da medicina esportiva. E caso se construa um campo de futebol, é porque havia esta demanda da comunidade local. 

Felipe Bianchi: Quando cobrimos as eleições de 2014 na Bolívia, o cenário era outro. As pessoas diziam que era muito difícil a oposição competir com Evo porque era difícil fazer oposição a tantas conquistas e melhoras nas condições de vida. O golpe desvelou que, de fato, não há um projeto de país por parte das elites, não há visão de país, apenas rancor e ódio de classe. Quando entraram com a bíblia no Parlamento, quando queimaram a wiphala e anunciaram que a “Pachamama” jamais voltaria ao Palácio de Governo, isso fica evidente. No Brasil, vivemos algo similar. Apenas melhorar a vida do povo é o suficiente para enfrentarmos elites tão agressivas e rancorosas como as que temos em nosso continente?

Estou convencido de que não é suficiente apenas levar melhores condições de vida ao povo. O governo de Evo Morales é prova disso. Falavam muito que a Venezuela iria cair, que a Nicarágua iria cair, mas a Bolívia seria o último desta lista. Por quê? Longe de mim criticar e desrespeitar os outros processos, mas na Bolívia é inegável a enorme transformação que promovemos, com melhoras da qualidade de vida das pessoas. 

Apenas como curiosidade, em 2004, a expectativa de vida aqui era de 64 anos. Hoje, é de 74, aproximadamente. Incrementamos a expectativa de vida em 10 anos. Os salários subiram. Tudo melhorou e, mesmo assim, o governo foi derrubado. Houve mobilização nas ruas. Mas fica claro que não é suficiente melhorar a vida do povo e levar serviços de qualidade se não transformamos a sociedade, se não transformarmos a mentalidade das pessoas e se não transformamos as estruturas políticas e sociais.

“Em 2004, a expectativa de vida aqui era de 64 anos. Hoje, é de 74, aproximadamente. Incrementamos a expectativa de vida em 10 anos”

Teremos de trabalhar muito para disputar as narrativas nas mentes das pessoas. Teremos de tocar as estruturas política e econômica do país. É uma tarefa pendente, que nos custou caro, apesar de ninguém acreditar que pudesse acontecer algo do tipo. Muita gente pensa que as melhores condições de vida foram obra do Espírito Santo. Mas não. Foram as políticas públicas e isso, poucos sabem ou admitem. Os grupos de poder que controlam a economia, a mídia e as igrejas parecem que se empenham diariamente em minimizar o que conquistamos de positivo e maximizar erros cometidos. 

Este é o grande problema que temos de enfrentar não só na Bolívia, mas na América Latina. Vejamos o caso do Brasil: um governo que tirou mais de 40 milhões da pobreza, mas nas eleições perdem. Por quê? Pela mesma razão que nós estamos pagando este preço: não trabalhamos a consciência popular e não tocamos nas estruturas políticas, econômicas e sociais.

Vanessa Martina Silva é editora da Diálogos do Sul

Leonardo Wexell Severo jornalista e colaborador da Diálogos do Sul

Felipe Bianchi jornalista da equipe da ComunicaSul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Felipe Bianchi É jornalista e atua no Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé desde 2011. Também integra o coletivo ComunicaSul e faz parte do Fórum de Comunicação para a Integração de Nossa América (FCINA).

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