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ToggleLogo após uma noite de protestos e violência que deixou 61 detidos em todo o país, a Câmara dos Deputados do Chile desferiu nesta quarta-feira um golpe histórico contra o sistema de pensões, um modelo baseado na capitalização individual e pioneiro no mundo, implantado há quatro décadas durante o regime de Augusto Pinochet.
Por 95 votos a favor ― inclusive de alguns deputados governistas de direita ―, 36 contra e 22 abstenções, o plenário deu sinal verde a uma reforma constitucional que permitiria aos afiliados às Seguradoras de Fundos de Pensões (AFPs, na sigla em espanhol) retirar até 10% de suas poupanças da aposentadoria para enfrentar a crise econômica.
A iniciativa, que agora começa a tramitar no Senado, representa uma derrota para o Governo de Sebastián Piñera, que havia se empenhado diretamente em convencer os deputados de sua coalizão a votar contra.
Foram quase quatro horas de um tenso debate no plenário do Congresso, em Valparaíso, 100 quilômetros a oeste de Santiago, a capital. A deputada socialista Maya Fernández Allende ― neta do presidente Salvador Allende, deposto por Pinochet em 1973 ― disse em seu pronunciamento que “o apoio popular a este projeto está diretamente relacionado ao fracasso do sistema das AFPs, que não se preocupam com as pensões, porque são investidores financeiros”.
Para o ministro da Fazenda, Ignacio Briones, “a iniciativa enfraquece as pensões do manhã”. Sobre os 20 bilhões de dólares que a medida injetaria na economia, o economista se perguntou: “O que justifica que se retire a aposentadoria, que será maior para aqueles que têm mais, livre de impostos? Onde ficaram as reivindicações de progressividade e as discussões sobre nosso sistema tributário que tínhamos à vista e que compartilhamos como Governo?”
Twitter / Reprodução
Noite de protestos e violência que deixou 61 detidos em todo o país
Fato político
O debate em torno da reforma se tornou um fato político decisivo porque, em parte, está atravessado pela crise interna da coalizão governista, insatisfeita com seu Governo.
Na quarta-feira passada, quando a Câmara se pronunciou sobre a ideia de legislar sobre esta iniciativa, 13 deputados de direita votaram a favor da tramitação e contra as diretrizes do Executivo. Mas existe um segundo elemento: da parte da oposição, trata-se de um passo crucial para começar a enterrar o atual modelo previdenciário.
O problema das aposentadorias ― uma das bandeiras das revoltas iniciadas em outubro de 2019 ― é uma das principais preocupações dos chilenos, porque são muito baixas em relação ao nível de vida dos cidadãos na ativa, em um país com uma distribuição de renda deficiente.
O próprio presidente Piñera se envolveu diretamente nos últimos dias na articulação política para tentar pôr ordem em coalizão. Na terça-feira, horas antes da votação na Câmara, o mandatário anunciou, pela segunda semana consecutiva, um novo plano de ajuda econômica focado na classe média, para convencer os parlamentares governistas e evitar uma nova derrota no Parlamento.
A aposta, entretanto, não atraiu suficiente apoio, numa votação que gerou uma alta expectativa da opinião pública. Logo depois da aprovação preliminar dos deputados, panelaços e aplausos foram ouvidos em alguns bairros de Santiago, ainda confinada por uma pandemia que já deixou 7.186 mortos confirmados.
A discussão sobre os saques das pensões não se explica só como um enfrentamento entre governistas e oposição. Destacados especialistas de centro-esquerda, como o ex-presidente do Banco Central José de Gregorio e o ex-ministro da Fazenda Rodrigo Valdés (do Governo de Ricardo Lagos, 2000-2006, e do segundo mandato de Michelle Bachelet, 2014-2018), se mostraram preocupados de que a iniciativa supere os 12 bilhões de dólares (64,4 bilhões de reais) do plano definido transversalmente em meados de junho para enfrentar a pandemia.
Para os economistas, existem mecanismos alternativos mais eficientes, equitativos e menos custosos em termos fiscais para auxiliar a classe média durante a crise.
Rocío Montes, no El País Brasil
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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