Em 1961, o Experimento Milgram, ao verificar pessoas infringirem choques de 450 volts em desconhecidos, estabeleceu uma das mais consistentes verdades científicas sobre comportamento humano: mais de 60% das pessoas tendem a provocar sofrimento em outra se estiverem seguindo orientação de autoridades.
Aqui e agora, essa constatação nos traz uma conclusão inexorável: sem o exemplo de nossos líderes, os esforços para controlar os efeitos da Covid-19 são esvaziados.
Eis a razão do ajuizamento, por mim, de ação popular para obrigar o presidente da República a usar máscara de proteção, a União fazer com que seus servidores a usem e o Distrito Federal a fiscalizar o seu uso.
O juiz Renato Borelli, em decisão irretorquível, concedeu a medida liminar afirmando o que deveria ser uma obviedade ululante: “o presidente da República possui obrigação constitucional de observar as leis em vigor no país, bem como de promover o bem geral da população, o que implica adotar as medidas necessárias para resguardar os direitos sanitários e ambientais dos cidadãos, impedindo a propagação de um vírus que se alastra rapidamente”.
A enorme repercussão do caso tornou a causa estratégica para o governo. Assim, o não uso de equipamento para prevenir contágio tornou-se uma das causas mais relevantes da República. Nada menos que o AGU, o PRU da 1ª Região, o PGU e a Coordenadora Geral de Ação Estratégica da AGU assumiram sua defesa.
Palácio do Planalto
Quanto aos adoecidos, nem a indagação é possível, apenas acalento e resignação
O AGU então afirmou[1] que “qualquer Poder está dispensado de cumprir uma ordem absurda”, que a decisão judicial tornava o presidente um “cidadão de segunda categoria”, pois “quando se defere uma liminar para obrigar o presidente da República a usar uma máscara, que estamos todos obrigados a usar em dadas circunstâncias, também é menosprezar o presidente da República enquanto cidadão”.
Distribuído o recurso, telefonei pedindo audiência com a desembargadora. Apesar de só poder me atender no dia 7 de julho, a decisão veio bem antes. Olvidando julgados do STJ em entendimento contrário, apoiou-se exclusivamente em precedentes de corte ordinária para desconhecer a ação popular.
Mais do que isso, em teratológica supressão de instância, extinguiu monocraticamente o feito sem julgamento de mérito, sem sequer abrir espaço para o recorrido se manifestar, como manda a lei. Em 20 anos de advocacia em Brasília, nunca vi ou ouvi falar de decisão semelhante.
E assim, “o cidadão de segunda categoria” teve a defesa gratuita pelo Estado e uma atuação vertiginosa do Judiciário para encerrar o assunto, inclusive com um rito processual exclusivo. E tudo isto para legitimar que o líder da nação não promova a prevenção ao contágio durante a maior crise sanitária do século.
Pergunto-me como explicar às mães sem pensão, aos trabalhadores sem salários e aos segurados sem benefício em que categoria eles estão para precisar do Judiciário para ter o cumprimento da lei. Quanto aos adoecidos, nem a indagação é possível, apenas acalento e resignação.
Victor Neiva, advogado e colaborador da Diálogos do Sul.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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