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José Dirceu: quais os desafios e as tarefas da esquerda socialista no Brasil pós-pandemia?

Será preciso derrubar a velha ordem e reler o Brasil objetivando formular um projeto que atenda às demandas econômicas, sociais e culturais do povo
José Dirceu
Nocaute
São Paulo (SP)

Tradução:

Em seu pronunciamento no 1º de Maio, Lula, mencionando o que vem sendo dito pelos principais jornais econômicos – que o capitalismo está moribundo -, afirmou que “está nas mãos dos trabalhadores a tarefa de construir esse novo mundo que vem aí”. 

Num primeiro momento, notei, em seu discurso, omissões importantes: não mencionou a crise política institucional, o Fora Bolsonaro, o impeachment, a luta política. Logo depois me dei conta de que Lula estava nos convocando a pensar o pós-pandemia e a enfrentar uma tarefa postergada por nós, petistas e socialistas: qual a alternativa ao capitalismo como ele realmente é hoje, no mundo e no Brasil?

A primeira lembrança que me veio a mente foi da lição que aprendi nos bancos escolares na juventude, lutando contra a ditadura: sem uma teoria revolucionária não há revolução e o dever de todo revolucionário é fazer a revolução. Sempre me guiei pela realidade, pelos fatos. Minha geração cresceu sob o signo da revolução cubana e da imagem do Chê e Fidel, da agressão criminosa e genocida do império norte-americano contra o povo vietnamita, das revoltas estudantis e operárias na Europa e no Brasil, da luta pelos direitos civis dos negros estadunidenses em plena segunda metade do século XX.

Se 1968 foi o ano da rebeldia e da luta contra o autoritarismo, o racismo, o militarismo, também foi o da invasão da Tchecoslováquia, do começo da crise do então chamado campo socialista e do próprio socialismo – ainda em sua infância, se comparado com o capitalismo.  

Será preciso derrubar a velha ordem e reler o Brasil objetivando formular um projeto que atenda às demandas econômicas, sociais e culturais do povo

Facção Fictícia
O principal objetivo de toda política de desenvolvimento tem que ser o bem-estar social e o emprego com a garantia dos direitos sociais

Globalização e crise

Nos últimos cem anos vivemos crises, depressões, duas grandes guerras mundiais e dezenas de guerras pela independência e civis, grandes catástrofes e desastres naturais e o capitalismo sobreviveu e se fortaleceu. A globalização parecia um deus invisível e onipotente, devastou as conquistas sociais de décadas de lutas dos trabalhadores, o chamado estado de bem-estar social, suas organizações e, o mais grave, suas ideias, ideais e cultura. 

Parecia o fim de uma época, a das revoluções sociais, mas o tempo provou o contrário. Nunca houve tanta instabilidade política e social, tantas guerras de agressão e ocupação, tanta pobreza e miséria. A desigualdade cresceu inclusive nos países centrais do capitalismo, destaque para os próprios Estados Unidos. Incapaz de resolver suas contradições, o capitalismo revelou suas entranhas e natureza com o crescimento do nacionalismo, do autoritarismo, do racismo, dezenas ou no máximo centenas de ricos passaram a controlar a riqueza mundial.

A pandemia da Covid-19 apenas veio expor as misérias e a ideologia do capitalismo, sua falta total de compromisso com suas próprias ideias, seja porque elas eram falsas ou, porque sua natureza o leva à barbárie para sobreviver como nos ensina as experiências do colonialismo e do nazismo.

No Brasil também as  radicais mudanças no mundo do trabalho provocadas pelo avanço tecnológico e pela reorganização da produção serviram de pretexto para a agressão aos direitos sociais e às conquistas dos trabalhadores. Mais uma vez o custo da crise do capitalismo recaiu sobre a classe e a submeteu, como nunca, ao fantasma do desemprego, impondo a falsa opção de trocar o emprego pela redução dos direitos, ou seja, da cidadania em benefício das empresas e, principalmente, dos bancos e do capital financeiro. 

Desmonte do Estado

O ataque ao Estado como indutor do crescimento e ao Estado de Bem Estar Social chegou com ideias totalitárias envoltas em uma retórica nacionalista e religiosa — destruir para construir foi a máxima do presidente eleito. 

Não vivemos mais sob o capitalismo dos anos 1980/1990. Mudou o modo de produção, mudaram as classes sociais, mudou o mercado de trabalho sob o impacto das inovações tecnológicas e da hegemonia do rentismo. Todo e qualquer projeto de desenvolvimento nacional foi banido e o país perdeu a autonomia sobre sua moeda, câmbio e capitais. 

O ciclo político e histórico que nos deu origem não existe mais, com o agravante de que mesmo as grandes empresas de capital nacional abandonaram todo e qualquer projeto de autonomia e independência, já que a maior parte das elites sempre foi entreguista. E as Forças Armadas, que desde a redemocratização vinham observando seu papel constitucional, viram o campo aberto para abraçar o autoritarismo político-militar agora casado com o fundamentalismo religioso e o alinhamento com os Estados Unidos.

As experiências históricas de socialismo no mundo e o que vivemos em nosso país — as reformas de base no governo Jango e os programas sociais nos governos do PT — devem ser reavaliados.  Devemos retomar o fio da nossa história. Não haverá soberania e autonomia sem controle da nossa moeda e câmbio, dos capitais. 

A experiência trágica do coronavírus provou como nosso país está desarmado e exposto à dependência externa em áreas estratégicas e mesmo de segurança nacional. Será necessário rever nossas inserção nas cadeias globais de valores e restaurar nossa soberania em áreas estratégicas como a de fármacos para dar um exemplo. 

Nossas tarefas

Devemos restaurar o papel do Estado como indutor e condutor do desenvolvimento nacional mais ainda na pós-pandemia. Os bancos públicos e as empresas estatais no setor de energia, petróleo e gás são decisivas para a retomada do crescimento. 

Nosso país tem grandes vantagens comparativas na agroindústria e na produção de energia, um dos maiores mercados internos do mundo e uma demanda de infraestrutura social e econômica. Mas o subconsumo, produto da concentração de renda e riqueza, impede o crescimento. Para reverter este quadro, será necessária uma mudança radical na política monetária e fiscal do país, com a redução dos juros a níveis internacionais hoje negativos (nossa  taxa média real de juros é de 32% para uma inflação e uma taxa Selic de menos de 4%).  Para grande parte da nossa dívida interna ainda pagamos juros de 10%, o que além de um escândalo é praticamente uma expropriação da renda nacional de famílias e empresas.

Outra necessidade urgente na pós-pandemia é a reforma tributária, invertendo a pirâmide de impostos sobre bens e serviços para renda e propriedade. A distribuição de renda e o aumento da demanda interna, assim, se darão não apenas pelos investimentos públicos e privados em infraestrutura social e econômica, mas também no aumento da renda dos trabalhadores com a queda dos juros e a redução da carga tributária sobre eles. 

Com planejamento e restaurando o papel dos bancos públicos e de empresas estatais como a Petrobras, devemos retomar a industrialização, reformando o pacto federativo para que todo país seja beneficiado com um grande programa de obras públicas de saneamento, habitação, transportes coletivos, reconversão de energias e uma reforma urbana e agrária com alcance não somente social, mas ambiental. 

Sem uma revolução nas áreas da ciência, tecnologia e inovação não seremos capazes de usar a riqueza natural e o nosso capital acumulado e nem retomar o tempo perdido em nossa industrialização agora revelados pela nossa debilidade em produzir o essencial na área da saúde e de fármacos. O principal objetivo de toda política de desenvolvimento tem que ser o bem-estar social e o emprego com a garantia dos direitos sociais. Daí a necessidade de reformar a legislação trabalhista e previdenciária, imposta nos últimos anos pelos governos de direita.

Os desafios para a esquerda socialista são derrubar a velha ordem, reler o Brasil e o mundo de hoje para formular uma teoria revolucionária que atenda às demandas econômicas, sociais e culturais atuais. Paralelamente, temos que levar a luta diária, em todas as frentes, contra o bolsonarismo e as classes sociais e políticas que o apoiam e temos que disputar com a oposição liberal os rumos do país. 

Para essa tarefa gigantesca, mas não impossível, é preciso começar a nos reavaliar, nos reconhecer, para mudar nossos partidos, nossa prática e, se necessário, nossas ideias. Sempre a partir da realidade em que vivemos com o objetivo de buscar uma revolução social, que democratize a propriedade, a riqueza e a renda, o poder político e cultural, que proteja a natureza e a vida, onde impere a solidariedade social e a liberdade,  a igualdade e a fraternidade, a paz com justiça. 

José Dirceu, ex deputado federal e ex ministro da Casa Civil


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

José Dirceu

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