Durante a Guerra Fria, quando parecia só se poder escolher estar do lado dos americanos ou soviéticos, outros países ousaram buscar um terceiro caminho, em que não se alinhassem a nenhuma das superpotências. Atento a esse movimento, duas nações amigas em campos opostos passam a se “paquerar”, em um movimento que, se bem sucedido, mudaria completamente o rumo do mundo: Brasil e China.
A decisão brasileira era praticamente unânime dentro do espectro político da época, adotando o que se chamou à época de “política externa independente”. De lados opostos, Jânio Quadros e João Goulart, eleitos presidente e vice sendo de chapas opostas, tomaram as primeiras medidas direcionado a um reatamento diplomático e ao restabelecimento de relações econômicas que, dada a magnitude de ambos os países, poderiam de fato colocar em xeque o mundo bipolar em que vivíamos.
Embora se possa dizer que Jânio, eleito pelo minúsculo PTN e com apoio da conservadora UDN, o fez por estar a reboque dos pensamentos de Affonso Arinos de Melo Franco (um liberal no sentido clássico do termo), o fato é que tomou as primeiras medidas para reatar as relações diplomáticas com a China, enviando o trabalhista Jango para a China em 1961, na primeira viagem de um líder ocidental àquele país, e autorizando a vinda da primeira missão diplomática chinesa para o Brasil. Se por um lado, uma das nações estava de fato determinada a continuar no caminho do não alinhamento, setores reacionários de nosso país aproveitaram deste fato para construir a maior fake news daquele tempo: a existência de uma ameaça comunista.
Essa era a desculpa necessária para aniquilar nossas instituições, arruinar o projeto de uma nação independente e permitir que cínicos e broncos, sejam militares ou civis, assumissem o controle do país, inaugurando os anos de chumbo em que o alinhamento aos americanos e a renúncia ao interesse nacional foi a tônica dominante, feita à força.
Anistia Política
O jornalista Ju Qingdong, 84, é uma das nove vítimas chinesas da Ditadura Militar
Para isso, já em 4 de abril de 1964, os agentes da repressão prenderam os 9 burocratas chineses que aqui estavam, acusando-os de terrorismo. Chamaram pipas de mísseis, agulhas de acupuntura de instrumentos assassinos e uma comitiva devidamente autorizada pelo então presidente do Brasil, de um aparelho terrorista, em um processo para lá de forjado.
Sobral Pinto, na época o mais famoso advogado do país e inicialmente apoiador do Golpe, assumiu a defesa dos chineses e conseguiu, com sua atuação incessante na Justiça e na imprensa, demonstrar aqui o que já se sabia lá fora: era uma armação. Eis o primeiro incidente e escândalo diplomático de uma ditadura que mal se iniciava.
Desde então, o cinismo, a opressão e o submissão de interesses nacionais deixaram de ser apenas uma presença entre nós, mas a força central em nosso espectro político, fato que, exceto por um pequeno hiato após a Constituição de 1988, tem sido a nossa dura realidade.
Tamanha a nossa subserviência que, em 1971, não mais por nossos autônomos interesses mas por pressão dos americanos, os mesmos que outrora acusaram a China de ser uma ameaça à nossa democracia para justificar a ditadura, a reconheceram como “a verdadeira China” e restabeleceram as mesmas relações que os presidente e vice democraticamente eleitos tentaram 17 anos antes para fortalecer a soberania brasileira.
Enfim, a nação que continuou no caminho do não alinhamento tornou-se uma grande potência. A que cedeu ao cinismo e à opressão continua condenada a ver seu enorme potencial diuturnamente desperdiçado.
E a lição que nos resta foi ensinada pelo mesmo Sobral Pinto que logo após esse incidente tornou-se um crítico voraz do Regime Militar e um dos mais aguerridos defensores de presos políticos. Em 1968, ao ser preso por exercer seu trabalho e provocado por um dos bárbaros que nos dominavam, afirmou: “Coronel (ou capitão), há Peru à brasileira, mas não há democracia à brasileira. A democracia é universal. Sem adjetivos.”
Victor Mendonça Neiva é Advogado e colaborador da Diálogos do Sul