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Toggle“Estamos sendo tratados feito tolos”. A frase resume a revolta de Yara Schaeffer Novelli, doutora e professora sênior da Universidade de São Paulo (USP), em relação ao vazamento de óleo que já é considerado o maior desastre ambiental do Nordeste. Ela foi a primeira perita judicial da primeira ação civil pública movida no Brasil por dano ambiental, em 1983, num rompimento de oleoduto da Petrobras na Baixada Santista. Naquela época, o Brasil tinha recém-publicado e regulamentado a Lei 6938, de 1981, da Política Nacional do Meio Ambiente.
Desde então, leis, normas, protocolos, planos nacionais e experiências foram sendo acumulados. Marcos legais não faltam, mas eles não estão sendo cumpridos. O descaso e o silêncio do governo federal são ensurdecedores. A Marco Zero Conteúdo conversou por quase 1h ao telefone com a cientista, considerada umas das maiores conhecedoras do assunto no País e sócia-fundadora da ONG Instituto Bioma Brasil.
“Nós (o Brasil) começamos com o pé errado. Mas, com todo esse tempo – as primeiras manchas de óleo apareceram em 30 de agosto -, para mim foi intencional não envolver pessoas e grupos que poderiam definitivamente ter colaborado. Teríamos tudo para ter agido de forma organizada, legal e dentro das normas desde o primeiro momento em que se avistou óleo chegando às praias. Não precisa de muito, está tudo aí no Google”, avalia Yara, autora de mais de 100 artigos científicos e escritora ou organizadora de mais de 40 livros.
A Lei 9.966, de 2000, estabelece o que deve ser feito em termos de prevenção, controle e fiscalização de poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional. São os princípios básicos a serem seguidos por todos os tipos de embarcações, portos, plataformas e instalações, nacionais ou estrangeiros, que estejam em águas brasileiras.
“Está tudo lá, mastigado”, reforça. A lei mostra desde o que deve ser feito quando se registram as primeiras aparições de óleo, como classificar, controlar, prevenir e transportar as substâncias, incluindo marcos legais de infrações e punições, além de elencar quem são os responsáveis pelo cumprimento.
A legislação, porém, não está sendo cumprida. Foi necessário que o problema se espalhasse assustadoramente para que, só no último sábado (7) – quase 40 dias depois dos primeiros registros -, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) determinasse que a Polícia Federal e a Marinha investigassem as causas e as responsabilidades do que, com atraso, passou a ser considerado um crime ambiental de grandes proporções. As ações de mitigação e prevenção estão sendo realizadas num trabalho de formiguinha, que muitas vezes envolve mais o ativismo do que o cumprimento governamental.
Ascom
Praia do Pontal do Peba, em Piaçabuçu (AL), uma das 132 atingidas por manchas de óleo em 62 municípios do nordeste brasileiro
Nada deveria ter sigilo, explica Yara: “o próprio Plano Nacional de Contingência diz que imprensa tem que ser comunicada e que é para haver reuniões diárias e divulgações de tudo que está acontecendo. Eu fico pasma, esse é o adjetivo que configura o que estou sentindo no momento”, lamenta.
A professora explica que a Lei 9.966 também atribuiu ao Ministério do Meio Ambiente a responsabilidade na identificação, localização e definição dos limites das áreas ecologicamente sensíveis à poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas.
Em 2008, uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) estabeleceu que esse mapeamento deveria ser representado pelas chamadas Cartas SAO (Cartas de Sensibilidade Ambiental a Derramamentos de Óleo). A maior parte das bacias nordestinas são mapeadas: Ceará e Potiguar (Rio Grande do Norte), em 2004; Sul da Bahia, em 2013; Sergipe-Alagoas/Pernambuco-Paraíba, em 2013; e Pará-Maranhão/Barreirinhas, em 2017. Essas cartas se juntam à Lei 9.966. Mas isso também não aconteceu, e agora o vazamento já atingiu mais de 2 mil quilômetros de costa.
“As Cartas SAO identificam a sensibilidade ambiental que deve ser protegida, os recursos biológicos sensíveis ao óleo. Está tudo lá, cheio de figurinhas, mapa, bichos, atividades socioeconômicas que podem vir a ser prejudicadas”, frisa Yara.
Isso significa, portanto, que o governo federal deveria estar protegendo o que já está mapeado e usando imagens de satélite para prevenção, para saber onde colocar as barreiras de contenção e absorção. “O Porto de Suape, por exemplo, é obrigado a ter essas barreiras. O mesmo vale para a Petrobras no Recôncavo Baiano. E onde elas estão?”, questiona a professora. “Até palha de coqueiro poderia ter sido colocada na praia”, diz ela para provar mais uma vez o quão absurda é a situação.
A Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema) do Governo de Sergipe, que declarou situação de emergência e onde o óleo já atingiu a foz do Rio São Francisco, informou que a Petrobras não tem mais disponíveis as boias absorventes que seriam enviadas para conter as manchas de óleo no Rio Vaza Barris, em Aracaju. O estado precisará investir R$ 100 mil na compra dos equipamentos.
Como se não bastassem a Lei 9966 e as Cartas SAO, ainda existe um Plano Nacional de Contingência, de 2012, que prevê as medidas a serem tomadas pelo governo diante de grandes vazamentos de petróleo no mar e que deveria ter sido ativado desde o início para evitar que problemas maiores acontecessem.
Na época em que foi anunciado, período ainda de início da exploração do pré-sal, o plano tinha um orçamento de R$ 1 bilhão, uma espécie de seguro que funciona apenas em caso de grandes acidentes, nos quais os responsáveis não são identificados imediatamente.
“Será possível que não fizeram nada disso? Eu uma idosa de 76 anos fico sabendo disso e o seu ministro do meio ambiente não sabe? Porque ele não perguntou aos técnicos do ministério, Ibama, ICMBio, que são competentes? E isso eu afirmo e assino embaixo”, ironiza Yara.
“Começo a desconfiar que existe uma ordem superior para que não se manifestem. Essa mudez total, esse silêncio, só podem ser orquestrados. O Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) se calou, mas eles têm oceanógrafos físicos e pessoal especializado em estudo de imagens de satélite de primeira qualidade”. No início de agosto, o diretor Ricardo Galvão foi exonerado do Inpe depois que Bolsonaro contestou os dados sobre o monitoramento do desmatamento da Amazônia.
“Como alguém vê as manchas chegarem às praias e não aciona as imagens dos satélites? Elas dizem onde as manchas estavam ontem, onde estavam antes de ontem… Elas estão aí para isso. Acho impossível não terem feito. Se alguém foi impedido de divulgar, isso é muito sério”, levanta a professora.
“Estou realmente abismada e aborrecida. Estamos passando para os brasileiros que ouvem essas notícias há mais de um mês que a gente pagas aos pesquisadores que não sabem dizer nada. Não posso ver uma coisa dessas e não reagir. Temos obrigação legal e cidadã de tentar contribuir e colaborar. Fomos financiados a vida inteira pra fazer uma devolutiva para sociedade”, comenta a cientista da USP.
Durante a conversa, Yara também comentou que a ação da Marinha de notificar 30 navios de 10 países após a triagem das manchas de óleo é “uma tremenda confusão”. O navio pode ser de um país e ter bandeira registrada em outro. Existem os chamados “países de conveniência”, como por exemplo, a Libéria, pouco exigentes em relação às condições das embarcações. Tanto que algumas delas não têm permissão para entrar em portos europeus, mas entram em portos da América Latina. Isto significa que a embarcação não necessariamente tem a bandeira do país do armador.
Na avaliação de Yara, sem nenhuma imagem para dizer como esse óleo está se deslocando, fica complicado chegar a alguma conclusão. “Não vimos a análise do óleo para dizer de onde ele é. Todo óleo tem uma assinatura. Ninguém mostrou nada”. “É tragicômico” um presidente do Brasil, que tem nomes internacionais de cientistas, “falar em quase certezas”. “Você já viu alguém estar quase grávido?”, ironiza Yara.
“Já vi áreas costeiras em São Paulo impactadas por óleo, é bem diferente dessa quantidade que está chegando ao Nordeste. E imaginar que esse óleo sofreu intemperismo e já mudou muito… Essa mancha quando foi exposta pela primeira vez na superfície do mar, era enorme. Ela vai secando, se dissolvendo na coluna d’água, perdendo componentes, grudando mais e diminuindo o tamanho da mancha”, ensina.
Danos ambientais irreversíveis
Se esse óleo realmente tiver sido despejado em alto-mar, a recomendação era que se tivesse usado tensoativos, como se fossem detergentes que dissolvem o material. Mas agora que o material está na costa, essa ação não é recomendada, porque podem fazer mal aos seres humanos, à fauna e à flora.
A curto prazo, os danos já estão sendo conhecidos: tartarugas mortas, filhotes que não estão podendo ser chegar ao mar nos locais de desova, redes de pesca e corais sujos de óleo. Os tratores que estão sendo usados para a limpeza das praias estão levando uma camada considerável de areia da superfície onde há muita vida, isso sem contar com a compressão da areia. “Isso é uma perda muito grande.
Há animais, crustáceos pequenos, larvas e outros organismos vivos importantes para o início da cadeia alimentar”, mostra Yara. Eles são inclusive alimentos para as aves que se deslocam do hemisfério norte para cá para se alimentar na época de inverno. As algas sujas de óleo tendem a ir para o fundo do mar e lá se decomporem. “Muita coisa é irreversível, um efeito crônico de longo prazo”.
Universidades diferentes, hipóteses diferentes
Se o professor de Oceanografia da UFPE Marcus Silva informou ter descoberto que o óleo teria sido derramado por um navio a 50 quilômetros da costa, entre os litorais de Pernambuco e Paraíba, cientistas do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) sugerem que o óleo que atinge nove estados do Nordeste pode ter sido lançado ao mar em águas internacionais, a até mil quilômetros do litoral brasileiro.
Em Salvador, a equipe da Universidade Federal da Bahia (UFBA) confirmou que o petróleo encontrado nas praias nordestinas teria origem venezuelana. O óleo analisado usado no estudo foi coletado nas costas sergipana e baiana em parceria com a Universidade Federal de Sergipe (UFS) e a Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs).
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