“Os soberbos são os inimigos da liberdade:
os únicos conservadores verdadeiros,
os que juntam e apaziguam, são os liberais.
O que não conservam, é o ódio e a arrogância. […]A justiça, a igualdade do mérito, o tratamento respeitoso do homem,
A igualdade plena do direito: isso é a revolução”.
José Martí, 1894[1]
Já são dez os candidatos devidamente credenciados para as eleições presidenciais que terão lugar no Panamá em maio de 2024. Quatro problemas maiores aguardam por eles: um crescimento econômico incerto; uma iniquidade social persistente; uma degradação ambiental constante, e um deterioro institucional crescente.
Na cultura política do país, culpar é o recurso de primeira instância. Para a maioria dos candidatos, como para os meios de comunicação, a culpa maior radica na corrupção generalizada da gestão pública, e a trajetória sempre interessada daqueles que têm vindo ocupar as funções de governo de 1990 até hoje.
Candidata à presidência do Panamá defende tributação onde “quem ganha mais, paga mais”
Nessa perspectiva, a política tende a tornar-se messiânica: se trata de eleger ao Eleito que expulse os mercadores do templo, e de que os crentes não lhe permitam regressar. Sobram os voluntários para a tarefa, e vão desbordando pouco a pouco os impropérios que intercambiam, e que chegarão a ser maré.
Nesta ocasião, no entanto, há uma novidade que pode ameaçar a trama. Maribel Gordó, uma professora de economia, de origem modesta e vinculada há muito tempo a movimentos sociais, logrou reunir as firmas necessárias para se converter em candidata de livre postulação – que não independente – e escolheu como companheiro de chapa a um distinguido cientista político formado nos Estados Unidos, proveniente de nossas capas médias educadas.
Nomes que, na opinião não necessariamente pública, correram por três vertentes. Uma foi entusiasta, diante da esperança de ver representados na contenda eleitoral, de maneira direta e clara, os interesses e as aspirações dos trabalhadores manuais e intelectuais, do campo e da cidade.
Outra se alegra de que finalmente haja a possibilidade de elevar o nível do debate político, para escolher o melhor dos conservadores possíveis. E então finalmente há os assustados de ofício, e assustadores de vocação, que olham debaixo da cama todas as noites, torcendo para que não haja o fantasma do comunismo escondido ali.
Luis Gonzalez/Unsplash
Interesse geral da sociedade passa a se expressar em termos novos e mais complexos, correspondentes aos novos níveis de desenvolvimento
Realidades
O ponto, em todo caso, é que esta será – em pensamento, palavra, obra e omissão – uma campanha centrada em realidades. Uma dessas realidades consiste em que o país não padece de uma soma de problemas que possam ser enfrentados separadamente.
Esses problemas, com efeito, constituem expressões diferente de uma mesma crise: a que resulta do esgotamento de um modelo de desenvolvimento organizado em torno a um enclave de serviços à circulação de capitais, mercadorias e pessoas – ao qual se agrega outro de mineração metálica à céu aberto nas franjas do Corredor Biológico do Atlântico Mesoamericano.
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Esse modelo seguiu o padrão estabelecido no Istmo pela Coroa espanhola no século XVI. Se trata, em essência, do monopólio do trânsito por um só corredor interoceânico; do controle desse corredor pelo Estado que controle a Istmo; da concentração dos benefícios do trânsito nos setores sociais que controlam o Estado, e de subordinar o desenvolvimento do país às necessidades do trânsito assim organizado.
Assim, o crescimento econômico incerto está diretamente associado à estreita base social do mercado nesse modelo de desenvolvimento. Já é evidente a necessidade de ampliar essa base social mediante o fomento de formas inovadores de organização produtiva – desde Organizações de Base Comunitária até cooperativas –, capazes de atender às demandas de alimento e bens de consumo em mercados locais e regionais, de contribuir à criação de um mercado de serviços ambientais, e de participar na diversificação de nossas exportações. Um banco de desenvolvimento cooperativo não viria mal ao país, mas o essencial radicaria, sempre, em que essas organizações se constituíssem de baixo pra cima, região por região.
Uma economia assim organizada poderia contribuir de maneira importante à luta pela equidade na distribuição da riqueza nacional. Não só se trata de que converteria em produtores organizados a boa parte de nossa enorme multidão de trabalhadores informais, mas de que essas organizações poderão colaborar ativamente na criação e desenvolvimento de modalidades inovadoras de gestão dos serviços públicos e educação e saúde que hoje estão a caminho do colapso.
Além disso, como tais organizações produtivas poderão desempenhar um importante papel na tarefa de salvaguardar a nossa segurança social do risco de uma privatização de cujas consequências dão conta sobrada os resultados dessa medida em países como o Chile.
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A ampliação da base social do mercado, assim entendida, porá as organizações de produtores na capacidade de incidir na produção das condições naturais de produção que garantam a sustentabilidade da atividade econômica – incluída a do Canal do Panamá –, e contribuam a tornar sustentável o desenvolvimento humano de nosso país.
A essa base social ampliada lhe corresponderá, também, a tarefa de contribuir à construção de institucionalidade nova, adequada à renovação cultural e moral de nossa sociedade, e beneficiada em todo momento pelo controle social da gestão pública.
Um obstáculo maior à solução destas necessidades radica no esgotamento da capacidade que possa haver tido o regime político estabelecido depois da intervenção militar estrangeira de 1989 para assumir e expressar o interesse geral de nossa sociedade. Nos grandes momentos de crise da história da sociedade, esse interesse expressa a aspiração de seus setores fundamentais em superar um conjunto de obstáculos que se opõem ao seu próprio desenvolvimento.
Uma vez superada essa crise, o interesse geral da sociedade passa a se expressar em termos novos e mais complexos, correspondentes aos novos níveis de desenvolvimento alcançados – para o bem ou para o mal – pelos distintos componentes da sociedade em seu conjunto. Isso é o que está em curso no Panamá, onde o interesse geral da sociedade já se expressa na demanda de se liberar das causas de origem dos problemas que a afligem.
Nesta perspectiva, cabe dizer que os problemas econômicos, sociais, ambientais e políticos já mencionados atingem de uma ou outra maneira a todos os setores da sociedade. Pelo mesmo, podem e devem ser encarados a partir do interesse geral que todos compartilhem em alcançar uma situação de prosperidade equitativa, sustentável e democrática. Em épocas de mudanças como a que vivemos, o sensato é abrir passo ordenado às mudanças, privilegiando o substantivo sobre o adjetivo.
Bem o dizia o historiador Ricaurte Soler: o substantivo não é o que se chame liberal ou conservador, mas sim o que se aspire a liberar ou a conservar. No Panamá, a criação de uma economia de ampla base social, e uma sociedade capaz de velar pela atenção às necessidades de suas maiorias submetendo ao controle a gestão pública de seus recursos será uma autêntica revolução liberal. Aqui, o que realmente está em questão é o meio mais adequado para alcançar esses fins.
Alto Boquete, Panamá, 1 de agosto de 2023
[1] “Los cubanos de Jamaica y los revolucionarios de Haití”. Patria, 31 de março de 1894. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1975. III, 104-105.
Guillermo Castro H. | Colaborador da Diálogos do Sul
Tradução: Beatriz Cannabrava
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