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Toggle“A colônia continuou vivendo na república;
E nossa América se está salvando de seus grandes erros
– da soberba das cidades capitais,
Do triunfo cego dos camponeses desdenhados,
Da importação excessiva das ideias e fórmulas alheias,
Do desdém inócuo e impolítico da raça aborígene –
Pela virtude superior, adubada com sangue necessário,
Da república que luta contra a colônia.”
José Martí, 1891[1]
Estes são tempos em que todos esperam explosões sociais. O que ocorre, no entanto, quando a ordem social e política não explode, mas se esmigalha sob o peso acumulado das contradições que as corroem? Ocorre uma implosão – que como todo o processo de decomposição gera seu próprio calor –, de consequências mais imprevisíveis que as da grande desordem contra o que nos advertem cada dia os arautos do Estado, seus partidos políticos e aqueles que antanho se chamavam a si mesmos “as forças vivas” do país.
Tal é o caso em curso no Panamá. Aqui, a restauração conservadora imposta pelo golpe de Estado de dezembro de 1989 veio desembocar 33 anos depois em sua situação de crescimento econômico incerto; iniquidade social persistente; degradação ambiental; disfuncionalidade institucional crescente, e uma desesperança cada vez mais ampla na capacidade da ordem vigente para encarar os problemas que essa ordem tem criado.
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A mais cômoda e versátil das explicações a estes males por parte dos grandes beneficiários do que então foi promessa e hoje vai sendo desengano é de uma simpleza exemplar. Tudo se deve, dizem, à corrupção, que por sua vez se deve à perda de valores cívicos que resulta do deterioro mal da família e da educação, e se consolida com o desperdício de recursos públicos no subsídio à pobreza e ao clientelismo político.
Desde outra perspectiva, ainda em formação, setores políticos emergentes percebem, e vão ganhando em capacidade para expressar, que esses cinco problemas maiores constituem em realidade expressões distintas e interatuantes de um mesmo problema maior; o do esgotamento do modelo de desenvolvimento imperante no país desde século XVI. Este modelo combina hoje, para dizer como Marx, os problemas que gera o capitalismo com os que derivam do caráter desigual e combinado desse desenvolvimento. Assim,
Ademais das misérias modernas, nos sufoca toda uma série de misérias herdadas, resultantes de que seguem vegetando modos de produção vetustos, meras sobrevivências, com sua corte de relações sociais e política anacrônicas. Não só padecemos a causa dos vivos, mas dos mortos.
Le mort saisit le vif! [ o morto apanha ao vivo!][2]
Foto: Geoff Gallice
O próprio sentido de cidadania se vê erodido pelo ciclo de incompetência e corrupção gerado pelo regime político instalado em 1989
Histórico
Os mortos que apanham os vivos aqui e nutrem das raízes de uma precoce inserção no desenvolvimento do mercado mundial como centro de serviços à circulação de pessoas, mercadorias e capitais. Em sua versão inicial, ainda de caráter pré-capitalista, essa função foi organizada a partir do interesse da Coroa espanhola em garantir o controle comercial e político sobre o Istmo que a vinculava às suas posses do Pacífico sul-americano. Já no século 20 esse controle ingressou à modernidade mediante o protetorado militar imposto ao Panamá pelos Estados Unidos com o tratado Hay-Bunau Varilla, de 1903.
Aquele tratado, como sabemos, tratado, como sabemos, endossou a separação do Panamá da Colômbia; outorgou aos Estados Unidos o monopólio do trânsito marítimo pelo Istmo mediante a construção de um canal interoceânico ao amparo de um enclave conhecido com a Zona do Canal, e concedeu e outorgou o direito a intervir manu militari para preservar a ordem nas cidades de Panamá e Colón. A Constituição de 1904, por sua vez, ampliou a todo o país o alcance desse direito à ingerência, por iniciativa dos políticos que a redigiram.
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Mesmo quando esse regime de protetorado, depois de seu golpe maior em dezembro de 1989, se viu formalmente cancelado em dezembro de 1999, ao culminar a execução do Tratado Torrijos-Carter, deixou um legado cultural e político que se renova com a crise em curso. Isto tem sua importância quando o enclave de serviços transnacionais criados de então para cá em torno ao Canal parece ter dado tudo de si, e o modelo transitório só pode garantir o crescimento sustentado da economia panamenha por conta do sacrifício da população trabalhadora, dos ecossistemas do Istmo, de uma democracia eternamente frágil, e do desencontro constante entre a soberania popular e a nacional.
Ante esse deterioro, a solução invocada pelos administradores da coisa pública no aspecto econômico consiste em agregar aos ingressos que gere o Canal aos que gere a exploração de uma grande mina de cobre e ouro a céu aberto, localizada na vertente atlântica do Istmo, que já devastou milhares de hectares do bosque tropical. E isso ademais é promovido como o despegue do projeto de fazer do Panamá uma “nação mineira”.
Para os setores aqui dominantes, essa combinação de enclaves de serviços transnacionais e extrativismo resulta sumamente atraente em sua capacidade para gerar ingressos sem correr os riscos de uma transformação social. Assim a transferência do Canal ao Estado panamenho, depois de gerar entre 2000 e 2020 ingressos ao Tesouro Nacional de 18 bilhões e 700 milhões de dólares, permitiu à Autoridade do Canal do Panamá investir 5 bilhões na ampliação da via interoceânica entre 2009 e 2016, ademais dos ingressos gerados por esse investimento. A grande mineração, por sua parte, investiu cerca de 6 bilhões de dólares entre 2012 e 2019, que para o ano de 2021 gerariam renda por aproximadamente 2 bilhões. [3]
Contudo, a outra cara desta economia é muito menos satisfatória. No limite entre o aspecto econômico e o aspecto social, a metade da força de trabalho do país está na informalidade, e os índices de pobreza permanecem contidos por quantiosos subsídios financiados com dívida externa, enquanto os serviços públicos de educação, saúde, gestão de resíduos e segurança social atravessam por um deterioro sustentado. Nestas circunstâncias o próprio sentido de cidadania se vê erodido pelo ciclo de incompetência e corrupção gerado pelo regime político instalado em 1989, que sumiu o país em uma situação de incerteza e deterioro, que por momentos recorda à que padeceu em fins da década de 1960.
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Esta situação se vê agravada pelo baixo nível de organização dos setores populares e de capas médias, pelo prolongado empantanamento de nosso pensamento político no dogmatismo neoliberal, e pelo peso do legado cultural e político do protetorado. Ainda assim – e talvez em reação a esse empantanamento – o ciclo que se fecha inaugura uma crescente convergência de agrupamentos de políticos e intelectuais contestatários, que inclui o ingresso à vida política e cultural de um relevo geracional, que anuncia uma inovação como o mostrada por José Martí ao saudar sem seu ensaio Nuestra América, de 1891 que
Os jovens de América arregaçam as mangas, afundam as mãos na massa, e a levantam com a levedura de seu suor. Entende que se imita demasiado, e que a salvação está em criar. Criar é a palavras de passe desta geração.[4]
Essa capacidade de criação se expressa hoje na construção de uma visão de país que transcende a cultura da transição e alenta a formação de uma política nova, que rechaça aquela “importação excessiva de ideias e fórmulas alheias” para encarar a partir de nossa realidade o conjunto dos problemas do país. Promove-se agora o exercício de nossas capacidades para passar da denúncia de nossos males ao estudo das manifestações de nossos problemas econômicos, sociais, ambientais, culturais e políticos mais relevantes, para encará-los em seu conjunto – não por partes, nem mediante iniciativas dispersas e exercícios de postergação de decisões que possam afetar o modelo de transição.
Essa passagem da denúncia à análise facilita o que vai da proposta ao programa de luta política necessária para encarar a crise em suas causas. Com isso, começa a se tornar possível o exercício das capacidades de nossa gente para iniciar, ao calor gerado pela implosão em curso da sociedade que fomos, a forja em nossa terra de uma sociedade na qual a soberania popular e nacional coincidam, e cujo desenvolvimento seja sustentável pelo humano que chegue a ser.
Referências
[1] “Nuestra América”. El Partido Liberal, México, 30 de janeiro de 1891. VI, 19.
[2] El Capital. (1867) Prólogo à primeira edição. Marx, Karl (2019: 268)): Antología. Selección e Introducción de Horacio Tarcus. Siglo XXI editores, Buenos Aires.
[3] Chapman Jr., Guillermo: Hacia una nuevas visión económica y social de Panamá. Una propuesta para la reflexión. Panamá, 2021.
[4] “Nuestra América”. El Partido Liberal, México, 30 de janeiro de 1891. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1975. VI, 20.
Alto Boquete, Panamá, 3 de maio de 2023
Guillermo Castro H. | Colunista da Diálogos do Sul
Tradução: Beatriz Cannabrava
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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