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Em livro, Mães de Maio contam histórias dos argentinos mortos pelo Estado brasileiro

"Memorial dos nossos filhos vivos" traz depoimentos de mulheres sobre aqueles ‘que saíram dos nossos úteros’, como diz a líder do movimento Mães de Maio, Débora Silva
Maria Teresa Cruz
Ponte Jornalismo

Tradução:

O livro “Memorial dos Nossos Filhos Vivos – as vítimas invisíveis da de democracia”, organizado por Débora Maria da Silva, líder do Movimento Mães de Maio, vai trazer depoimentos de mulheres que perderam seus filhos, mas, em vez de falar de luto, vai falar de vida. São as memórias e histórias de antes de terem o destino interrompido pelo braço armado do Estado.

“Todo mundo sabe quem são as mães, mas pouca gente sabe quem eram nossos filhos. Só sabem o rótulo da polícia, que disse que eles eram suspeitos. Nossos filhos não eram suspeitos. Nossos filhos tinham nome, sobrenome e residência fixa. Esse livro é um grito de que os nossos mortos têm voz. Esse livro foi parido, saiu de nós”, resume Débora. “Cada mãe conta quem eram os filhos, desde a gravidez até o dia do falecimento. Essa memória, esse livro, é o primeiro de três volumes que iremos fazer. Na próxima edição, falaremos dos desaparecidos e de outros estados. É um memorial das vítimas do Estado genocida. O terceiro volume traremos outras mães da rede de mães em resistência que agrega Colombia, México, Estados Unidos”, explica.

As Mães de Maio surgiram após o assassinato de quase 600 pessoas em maio de 2006, em meio ao fogo cruzado entre PCC (Primeiro Comando da Capital ) e a polícia. O primeiro livro que trouxe algumas histórias de mulheres que perderam filhos, filhas, netos e irmãos pela violência policial foi “Do luto à luta – Mães de Maio”, de 2011, feito com recurso do Fundo Brasil de Direitos Humanos. No ano seguinte, foi lançado “Mães de Maio, Mães do Cárcere – a periferia grita“. Em 2016, quando os Crimes de Maio completaram 10 anos, jornalistas da Ponte escreveram 15 perfis de mães que resultaram no livro “Mães em luta: dez anos dos crimes de maio de 2006“, a terceira publicação sobre o tema.

A nova publicação, da editora Nós Por Nós, será lançada oficialmente em evento no próximo dia 16 de maio, a partir das 18h, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), no centro de São Paulo, que terá a participação da Ponte. O livro é dedicado especialmente à memória de Vera Lucia Gonzaga, a Verinha, que morreu em maio do ano passado, sem ver justiça no caso da morte da filha Ana Paula, grávida de 9 meses de Bianca, e do genro Eddie Joey.

O livro é composto de 23 depoimentos das mães e traz no título o nome dos filhos mortos. A organização é assinada por Débora Maria da Silva e as histórias foram coletadas por Aline Rocco, Dayse Oliveira, Ailton Martins, Lidiane Ramos, Ingrid Ramos, Julio Mercuri, Andreza Delgado, Rafael dos Santos Monteiro, as ilustrações são de Carolina Teixeira e o projeto gráfico é de Silvana Martins. Os depoimentos não sofreram qualquer tipo de interferência da edição: é completamente fiel à forma de falar das mães o que torna a obra bastante próxima do leitor.

"Memorial dos nossos filhos vivos" traz depoimentos de mulheres sobre aqueles ‘que saíram dos nossos úteros’, como diz a líder do movimento Mães de Maio, Débora Silva

Ponte.Org
O livro é composto de 23 depoimentos das mães e traz no título o nome dos filhos mortos

A Ponte divulga, com exclusividade, um dos capítulos do livro, justamente o que traz o depoimento de Vera Lúcia Gonzaga, a Verinha:

Ana Paula, Eddie Joey e Bianca

“Então, a Ana foi uma gravidez tumultuada. Ela nasceu prematura de 7 meses. Não tinha 7 meses completos, ficou na neonatal quase 4 meses para ganhar peso e depois apareceu um problema cardíaco, que diz que toda criança prematura sempre tem algum probleminha. Aí, nós viemos descobrir que ela era cardiopata congênita. Ela tinha um sopro muito grande e ela ficava roxinha quando mamava. Virava e mexia ela tava internada. Então, até os 5 anos da Ana Paula foi mais hospital do que casa.

Com 6 anos ela começou dar uma melhoradinha. Eu já coloquei ela na escola, na creche, para ter contato com outras crianças porque era muito manhosa… O pai dela a chamava de Formiga Ruiva, por ser loirinha dos olhos azuis né? Então, ela aprontava todas. Ela era muito agitada. Segundo dizem, toda criança prematura é assim mesmo.

E aí ela cresceu. Até os 15 anos a Ana era muito pequena, muito franzininha. Quando fez 15 anos ela explodiu, virou um mulherão. Dos 14 para os 15 anos cresceu, pegou corpo, ficou um mulherão mesmo. Ela gostava de dançar, ela tinha um grupo de funk né? No que ela dançava era “As Pepitas”. Jogava futebol, tinha um time de futebol que jogava que era até do Valdico. E aí ela foi… Era uma menina alegre, amiga de todo mundo, ninguém nunca viu a Ana assim, com muito problema de tristeza.

Aonde chegava ela fazia festa mesmo. Não só em casa como em qualquer lugar que chegava. Tinha muitos amigos. Aí, ela teve um namorado, um relacionamento onde nasceu a Ana Beatriz (Bia), a filha dela que hoje tem 12 anos, mas na gestação ela se separou.

O Joey era amigo de creche, depois da escola ele sumiu. Aí, se encontraram de novo, e com muito jeito dele, começaram a namorar. E foram acho que os melhores 5 anos da vida dessa menina. Ela aproveitou muito. Que aos 15 anos foi o primeiro baile.

Em cinco anos ela fez coisas da vida toda. Ela dançava, ela ia para baile, adorava ir ao baile funk… Quando ficou grávida da Bianca, uma gestação planejada, a Bia ia fazer dois anos. Foi uma gestação muito boa nos 9 meses. Só que ela engordou acho que uns 30 kg, muito grandona… Até que chegou dia 15 de maio de 2006. Ela, a gente, foi no hospital logo cedo. Ela pegou encaminhamento, que ia se internar na terça-feira, isso foi numa segunda. Nós fomos comprar algumas coisinhas que estavam faltando, que não faltava nada, mas para ela sempre tava faltando alguma coisa. Inclusive, o carrinho, o berço, foi tudo montado naquela segunda-feira, depois do almoço. O marido dela tava de folga, que ele trabalhava no restaurante na Ponta da Praia, e passamos o dia assim, muito bem, dentro do apartamento. Veio umas amigas dela visita-la, que não deu para vir no chá de bebê, que foi no domingo.

No chá de bebê ela já estava com tudo pronto porque ia se internar no dia seguinte. E quando foi as vinte para as sete ela teve vontade de tomar uma vitamina, de frutas. Aí foram para a geladeira e não tinha leite. Só tinha um pouquinho e eu tenho outro meu neto também da mesma idade que tomava mamadeira. Aí eles inventaram de ir à Seara, a panificadora que ficava aberta 24 horas.

Foram comprar leite, só que eles subiram. Saíram, ela chamou o irmão para ir, o irmão não quis ir, tava dando uma pontada na cabeça dele. Aí foi ela, o marido, o padrinho da neném, o outro meu genro e um amigo. Só que quando eles chegaram à rua, o amigo falou “ah, eu não to com vontade de ir” e foi-se embora. Então foram os quatro. Eles viram quando esses camaradas saíram de dentro do bar, entraram no carro, e os seguiram. Aí eles passaram na frente deles. Eles paravam: eles passavam. Davam distância e os seguiam de novo. Até que chegou numa esquina, que é um cruzamento ali do canal do Extra, eles já desceram atirando. Um tiro pegou na perna do Joey, ela entrou na frente do marido, achou que a barriga daquele tamanho pudesse proteger o marido. Dois desceram do carro e saíram correndo atrás e atirando de um genro meu e do padrinho da neném, que ia nascer. E dois ficaram com eles. Segundo as testemunhas houve um diálogo muito rápido, aonde o Joey pediu para que o prendessem e fizessem o que tivessem que fazer e a deixassem ir embora, porque ela tava grávida, que ela ia ganhar neném no dia seguinte.

Eles foram dar outro tiro no Joey, ela entrou na frente e pegou no braço dela. Ela caiu. Quando caiu, o que estava com a arma a levantou e deu uma gravata. O Joey dialogou de novo, falou: “deixa minha mulher embora, ela tá grávida, você faz o que quiser fazer comigo, ela não vai falar nada”. Nisso, ela arrancou o capuz de um deles. Ela conseguiu. Só que com isso veio o óbito dela. Eles atiraram na cabeça dela, o único tiro na cabeça e soltaram. Segundo quem viu da janela em cima, gente que tava atrás de cortina, atrás de porta fitando, viu que ela já caiu morta. O Joey se jogou em cima dela, gritando, chamando, pedindo para ela ficar com ele e que olhasse a filha, “olha nossa filha”. Eles metralharam o Eddie pelas costas. Os tiros do Eddie foram: na perna, que foi a hora que eles desceram do carro; outro parece que pegou de raspão no braço, e os outros foram tudo pelas costas. Foi muito tiro pelas costas dele. Veio uma viatura, o carro saiu… O pessoal saíram tudo de trás das portas. Não queriam deixar tirar os corpos dali. O policial apontou a arma dizendo que eles estavam vivos e que iam socorrer sim. Mas eles já estavam mortos. Jogaram na viatura que nem cachorro atropelado e levaram para Santa Casa.

Quando nós chegamos ao local tinham umas dez viaturas em volta e a gente questionou o tempo que eles estavam ali. Porque eles não foram atrás do carro? Porque dá tempo de pegar… Só que ninguém fez nada, tinha policial rindo. Minha filha entrou em uma viatura e falou “o senhor vai levar nós na Santa Casa?” e ele falou que não podia carregar civil sem ser preso. Ela falou “mas o senhor vai levar”. Ela me empurrou dentro da viatura entrou e bateu uma porta e eles tiveram que levar.

Quando nós chegamos lá, para mim, a Ana estava viva. Porque eu tentei entrar várias vezes, eles me empurravam para fora, mas eu vi, teve duas vezes que eu vi um braço dela estendido. Para mim tava tirando a pressão, tomando uma injeção e soro né? Porque é gestante, o susto né? Mas para minha surpresa, quando o médico veio falar comigo, eles queriam que eu tomasse remédio de qualquer jeito. Não tomei, não quis injeção. Quando eu entrei já estava feita a porcaria. Tava todo mundo morto. Muitos meninos mortos chegando. Era uma viatura atrás da outra. Não era resgate, não tinha ambulância nem resgate trazendo a molecada. Você só via viatura chegando e saindo. Lembro-me de uma enfermeira, uma morena, depois nunca mais eu a vi, ela gritou com eles se eles não iam parar de matar os meninos. E o primeiro andar no dia, tinha polícia em volta da Santa Casa que tava ameaçando invadir o primeiro andar, que era só os meninos baleados, sobreviventes.

E daí começou a via sacra. Eu os reconheci já no Hospital. A Bianca não sobreviveu. Parece que tinha dois ou três projéteis na Bianca, porque eles atiraram na barriga e falaram que filho de bandido, bandido era!

Eles foram para o IML, era para estar lá às 10h da manhã, cheguei as sete, não estava aberto ainda, era muito corpo chegando… Parece que era desfile de óbito. E não era para ter velório. Eu falei “não, ela vai ter! Ela tem família, ela tem um RG, ela tem um endereço, ela tem um nome sobrenome, ela não é indigente!”. Aí veio a dúvida cruel: a criança ia na barriga ou no braço dela? Seria mais deprimente a criança no braço da mãe né? Num caixão. Disseram que ela não nasceu! Não podia ter um caixão e que não podia ser registrada. Conversei com o pessoal lá, a gente liberou o corpo deles. Vieram com uma conversa que não era para ter velório, era para levar para Santa Casa, pôr no caixão e enterrar. O médico que atendeu eles, inclusive, ninguém mais entrava para reconhecer. Ninguém, por causa do casal. A menina estava com a barriga aberta, a filha metade pra dentro e metade para fora. Ninguém podia entrar. Era só por fotos que estavam fazendo reconhecimento. E o médico falou: “olha, o que eu posso fazer para a senhora é segurar até 5h30 para não dar tempo de enterrar”. Ele segurou até às 5h15, 5h20, porque dali até chegar à Santa Casa era uma distância de 15 a 10 minutos, não daria tempo de pôr no caixão, arrumar a família, e levar para o cemitério.

O velório abriu umas oito horas. Quando foi 9h30, atravessou uma viatura na entrada, pegando RG e endereço dos meninos que estavam saindo e dos que estavam entrando. Chegou um menino em mim e falou: “Tia, a polícia tá querendo nossos endereços, pedindo RG, por quê?”. Falei: “não sei”. Saí lá fora e discuti com esse policial. Perguntei, ele tava em ordem de quem? A mando de quem? Ele falou: “a senhora sabe que tá perigoso, alguém pode entrar fazer um atentado”. Falei para ele: “para quem tenho que ligar para saber quem é que vai entrar e fazer um atentado? Vocês também não querem entrar para ver o que os parceiros de vocês fizeram? Não querem entrar para ver a merda que tá lá dentro? Mas parabéns para vocês, vocês conseguiram!”.

Uma menina chegou perto de mim: “tia entra, entra”… Eu falei: “pega o celular lá dentro de qualquer um que vou ligar”. Eles entraram na viatura e saíram. Quando foi a noite, mais madrugada, era muito menino chegando e muitos indo embora. Que Graças a Deus, a minha filha tem um bom relacionamento. O Eddie, a Ana também era amigos de todo mundo. In clusive, tinha até o lugar do ônibus para acompanhar o velório dela. Tinha muita gente. Os meninos saíram, eu falei: “olha, vocês vão todos juntos, vão contramão para vocês verem o carro que vem de frente, não vão para o escuro, procure ruas claras”. Só que eles sofreram atentado em frente a casa deles.

Um dos meninos ficou na cadeira de rodas e veio falecer bem mais tarde. Outros meninos morreram, e por aí foi. Eles não param mais. Até hoje! Já são dez anos de impunidade e eles não param”.

– A senhora nunca imaginava que podia acontecer isso?

“Não, nunca imaginei que ia enterrar um filho. Não a enterrei quando nasceu. Não fiz um aborto que os médicos queriam, porque era gravidez de risco, poderia morrer eu e ela. Pra vim quatro ‘abençoados’ e fazer o que eles fizeram com uma mulher grávida? E depois queriam jogar a culpa no tráfico. Falei para vários delegados: “gente, conversei com muita gente, nenhum bandido mata uma mulher grávida. Nenhum! E outra, por que iriam matar se ela não devia nada e era amiga de todo mundo?”. Acho que se fosse uma festa, ou um casamento num tinha tanta gente, tanto adolescente como tinha no enterro para a menina… Fiquei assim de longe, não tinha coragem de entrar. Fiquei de longe olhando aquele monte de adolescentes, jovens, gente idosa, gente que nunca vi na minha vida! As 7h horas da manhã, parou um caminhão, os garis, vieram e perguntaram para mim: “tia, a gente tá indo para o trabalho agora, é o único horário que deu para a gente vir dar um adeus a nossa amiga. A gente pode entrar?”. Falei: “com certeza!” Eles entraram e fizeram oração. Veio grupos de evangélicos adolescentes que fizeram oração. Então quer dizer, ela não tinha inimigos, nem ela, nem o Joey.

Se tu andar pelo bairro, todo mundo se lembra da Ana Paula como se tivesse viva ainda hoje! Ontem mesmo eu encontrei uma: “olha, a mãe da Paulinha!”. Todo mundo pergunta da menina, se já foram presos… Não! Em 10 anos nada aconteceu. A nossa luta taí.

Por ela, por ele, pela minha neta, não posso fazer mais nada… Mas a gente ainda tenta manter esses outros adolescentes vivos. Acho que cada um deles que a gente vê na televisão é um filho nosso que tá indo de novo. É uma mãe que vai passar por todo esse estágio novamente. É uma mãe que vai estampar camiseta, é uma mãe que vai chorar o filho.

Cadê nossos governantes? Cadê nossas autoridades? Tem, tem autoridade sim! Se eu entrar no mercado e roubar uma lata de leite para uma neta minha, que no caso, ela (Beatriz) ficou com 2 aninhos, eu ia presa! Como fui sem dever. Então a justiça é para nós. Porque pro grupo de extermínio, pro estado, isso é uma vergonha! Quantos adolescentes por ano que são mortos na mão da polícia? Só aqui, se você pegar o patamar desses meninos… Ana fugiu totalmente do currículo deles. A Ana não era negra. Ana não morava em favela, Ana não morava em morro. A Ana morava no centro da cidade. Loira e de olhos verdes. O Joe é filho de Filipino. Não vivia em bairro perigoso, fugiu totalmente do plano deles. A Ana pode ser que tenha morrido por tentar defender o marido. Porque ali, foi um defendendo o outro. Ele não correu porque ela não podia correr. E ela não saiu fora, também com a barriga daquele tamanho! O marido estando ali em perigo ela não ia deixar. Eu conheço meus filhos. Ninguém fica para trás! Nenhum!

Então aonde digo: tudo que foi feito com esses meninos, a gente não vê justiça não! Então é como costumo dizer: “a gente não quer vingança, a gente quer a justiça”. Mas a justiça não vem pra nóis! Se a gente afirmar que quem matou nossos filhos foi policial, ou a gente morre, ou a gente vai preso, como aconteceu comigo e outra mãe. Fiquei 3 anos e 2 meses, Ailton, presa. Ninguém pagou por isso. Eu que paguei por isso. Então tem mães aí morrendo de câncer, de depressão. Mães que andam travadas, dopadas de remédios, por saber que o filho foi assassinado e nada foi feito.

Agora você me diz, essa menina tinha 20 anos. Hoje ela teria 30, uma filha com 12 e uma com 10. Uma vida inteira pela frente. Que história essa filha dela tem para contar? Nenhuma! Quando ela crescer mais, casar e tiver os filhos, vai olhar para trás e vai ter um buraco negro!

Ela não tem como falar para o filho: “a mãe foi em tal lugar com vovô, com a vovó, à vovó fez isso, a vovó fez aquilo” ou “Vamos à casa da vovó?”. Ela não tem essa história para contar para os filhos. Ela não tem nada! O que ela tem? Ela tem eu, tem a tia dela que a cria, e que por sinal cria muito bem. Ela é uma menina muito bonita, muito inteligente, não tem reclamação. Na escola é uma benção! Mas que história essa menina vai ter na vida dela? Nenhuma! Nenhuma! Entra um presidente, sai outro, entra um vereador sai outro, entra um prefeito sai outro e o grupo de extermínio continua no mesmo lugar. Agindo, nos mesmos lugares que agiram lá em 2006.
E se a gente parar para pensar, esses policiais do grupo de extermínio, também são vítimas do sistema deles. Eles acatam uma ordem, recebem ordem, porque de graça ninguém vai matar ninguém. Se não tiver ordem, eles não vão. A partir do momento que derrubar aquela merda daquele Romeu Gomes, derruba aquilo. Matou? Tem prova? Tem testemunha? Porque as câmeras da cidade só servem para nós, para eles nunca? Tira essa farda e põem num cadeião comum. Então, é assim. Aí, tu me diz… Se jogar eles no Cadeião comum, vão contar até dez antes de atirar num menor. Ou num adulto que seja. Por que você faz um levantamento, você não vê Gonzaga, Gonzaguinha, divisa de São Vicente. Você não vê o bairro da Vila Nova, da Vila Rica aqui atrás do hospital. Você vê que é só morro, bairros mais pobres e favela. A gente tá cansado de ver: lá no asfalto a bala é de borracha. Na favela não! Na favela e no morro a bala é de verdade.

Quantos não estão morrendo nessa hora que nós estamos aqui? Lá fora, nos Estados Unidos, se resolve fácil. Porque que se resolve? Por que o povo vai para cima. Até a sociedade vai para cima quando se mata um negro. Não interessa se ele é pobre, se ele é rico.

Aqui não. Aqui a sociedade banca a morte de nossos filhos! A sociedade banca a morte dos pobres! É uma faxina ética (étnica). “Tira o pobre da rua, o negro, favelado de morro que não tem assalto.” Só que os maiores assaltantes, tá lá em cima, tá lá em cima em Brasília. Tá roubando nóis dia a dia. E ninguém faz nada. Os que vão preso, vão preso! Mas saem de lá, tem uma boa grana lá fora e daí? Eles não devolvem mesmo. Então a justiça foi feita pra nóis. Não pra eles.

E a partir do momento que a pessoa usa um manto da impunidade, ele pode fazer o que quiser. Tanto se é: que agora querem anular o julgamento dos policiais do Carandiru. Que eles mataram em “legítima defesa”. Falam que são 111, mas todo mundo sabe que foi muito mais. Agora se esse procurador, esse juiz e promotor fizer isso, a gente pode desistir da vida, desistir de tudo, porque foi assinada a carta branca para matar. Que eles já têm! Mas se for assinado, aí não tem mais jeito. Agora a gente tá com fé na denúncia que foi feita lá fora, para OEA. Que o nosso país sofra uma sentença, pra eles aprenderem a não matar filho dos outros. Que filho de juiz, deputado, esses filhos não morrem. Por que só os nossos? Por que só os de baixa renda? Por que só os negros?

Então, a gente pode perder a esperança. Mas tá aqui, minha filha, minha neta, meu genro foram embora. Dez anos se passaram, nunca foi investigado, nunca sequer passou um investigador procurando saber, ouvir… Quem perdeu fomos nós, que perdemos nossos filhos!

E, ninguém perdeu emprego, ninguém perdeu o serviço, ninguém perdeu farda, ninguém perdeu nada. Quem perdeu fomos nós!

E essa era a Ana Paula… Inclusive, quando fez, acho que um ano da morte dela, foi feito um baile funk em homenagem a eles…”.

 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Maria Teresa Cruz

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