A presença dos militares no governo do presidente Jair Bolsonaro chama atenção se comparada às gestões presidenciais anteriores desde a reabertura, e tem sido motivo de euforia e preocupação entre diferentes setores da sociedade desde a campanha eleitoral, quando esse cenário já era anunciado. Independentemente dos sentimentos da população sobre a participação dos militares no governo Bolsonaro, o fato é que “as Forças Armadas de hoje não são mais as da ditadura” e “muita coisa mudou”, assegura Maurício Santoro, professor de Relações Internacionais, à IHU On-Line.
De acordo com Santoro, os militares continuam nacionalistas, “mas no campo da economia muitos oficiais passaram a apoiar uma visão mais liberal, criticando o tamanho do Estado brasileiro e defendendo medidas de austeridade”. O limite dessa crítica, adverte, “são seus próprios privilégios corporativistas”, mas a tendência é a de que os militares “apoiarão as reformas de Guedes, mas apresentarão ressalvas em medidas que prejudiquem empresas que considerem estratégicas, como a Petrobras ou o complexo de defesa, que depende de subsídios e contratos com o Estado”. Do mesmo modo, exemplifica, “a fusão da Embraer com a Boeing, por exemplo, provoca controvérsias”.
Santoro é um dos professores que foi responsável na década passada pela elaboração do currículo da disciplina de Relações Internacionais da Academia Militar das Agulhas Negras – Aman.
Segundo ele, a visão dos militares sobre a geopolítica é parecida com a dos diplomatas. “Ressaltam a importância da ONU e de outras organizações multilaterais, destacam os temas ligados à América do Sul e, no caso da Marinha, também uma atenção grande ao Atlântico Sul, inclusive a costa ocidental da África. Em contraste com o Itamaraty, nas Forças Armadas há uma visão mais crítica sobre os governos de esquerda latino-americanos e às vezes certa cautela com a China, em especial entre oficiais mais velhos, formados na Guerra Fria”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele também comenta os primeiros movimentos do novo governo na política externa e as disputas internas pelo seu controle. “Vejo três grandes grupos disputando o controle da política externa do governo Bolsonaro: os antiglobalistas, que são a vertente brasileira da onda global de nacionalismo-populismo; os militares, que defendem uma versão um pouco mais conservadora do consenso diplomático das últimas décadas; e os liberais, que querem implementar uma agenda de reformas de abertura da economia brasileira ao comércio internacional”. Os pontos de confronto, explica, são como lidar com os acordos internacionais, qual será a relação do Brasil com os países orientais e qual será o peso da América Latina, da China e dos países árabes para a diplomacia. Já a explícita intenção do Brasil de aproximar as relações com Israel, diz, “atende a dois objetivos principais. Um é reforçarem a posição do Brasil como aliado dos Estados Unidos, trazendo para essa aliança também o apoio ao principal parceiro americano no Oriente Médio. A outra razão é religiosa: atender às demandas da base evangélica e reforçar uma mensagem judaico-cristã na política externa”.
Maurício Santoro Rocha é doutor e mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj. Atualmente leciona no Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio Janeiro – Uerj, onde integra a cátedra Sergio Vieira de Mello, parceria da instituição com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – Acnur.
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Confira a entrevista.
IHU On-Line – Desde os anos 1990, o currículo da Academia Militar das Agulhas Negras – Aman tem sido alterado. Por que houve uma mudança na formação dos militares da Aman nos últimos anos e em que consiste essa mudança?
Maurício Santoro – O currículo da Aman muda ao longo do tempo conforme mudam as necessidades do Exército e a própria sociedade brasileira. Minha participação mais expressiva na academia foi ajudar na criação da cadeira de Relações Internacionais para os cadetes. Isso refletiu a percepção por parte dos militares da importância crescente do tema, sobretudo por uma participação mais frequente e numerosa do Exército em operações de paz da Organização das Nações Unidas – ONU. A Aman forma os cadetes para serem líderes de pequenas frações — pelotões ou esquadrões, com cerca de 40 pessoas. E a ideia era já desde esse momento inicial prepará-los para lidar com temas internacionais.
Outra transformação significativa é que acontece agora, com a entrada de mulheres na Aman. Embora haja mulheres nas Forças Armadas desde a década de 1980, elas em geral estavam restritas a funções auxiliares, como administração e serviços médicos. A Aeronáutica foi a primeira que começou a treiná-las também como pilotos combatentes, seguida da Marinha, e agora é a vez do Exército. Em alguns anos teremos mulheres oficiais comandando navios de guerra ou blindados.
Que diferenças existem na formação dos militares que hoje compõem o governo com relação aos militares que estiveram no poder no período militar?
As Forças Armadas de hoje não são mais as da ditadura. Muita coisa mudou. No Exército, por exemplo, os cadetes têm boa formação na área de ciências humanas e sociais, com aulas de Direito, Geografia. Há um contato maior com estrangeiros, por conta de muitos alunos da América Latina e África que fazem sua formação na academia. O aspecto profissional da formação militar, com as diversas especializações em infantaria, artilharia, cavalaria, intendência etc. também é muito sólido, de alta sofisticação técnica.
O que eu gostaria que acontecesse são duas mudanças. Primeiro, deveria haver por parte das Forças Armadas a autocrítica das violações de direitos humanos da ditadura, com a posição de que foi ruim para o país e para a instituição. Segundo, creio que deveria haver maior cooperação e integração das academias militares com as universidades civis.
Um dos propósitos da Aman é formar líderes. O que a Academia compreende como formação de líderes? Como essa formação tem sido trabalhada e por que os militares apostam nessa via?
Todo oficial do Exército precisa liderar grupos de subordinados que vão de algumas dezenas a centenas de milhares de pessoas. A Aman prepara o cadete para a primeira etapa dessa trajetória, que é comandar uma pequena fração, de até 40 militares. Depois, ao longo da carreira, terá novos cursos na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (frequentada pelos capitães) ou, se for selecionado para comandos mais elevados, a Escola de Comando e Estado-Maior. A Aman quer formar os cadetes dentro de uma tradição de valores caros aos militares, como disciplina, autocontrole, dedicação. A ideia é que aprenderão pelo exemplo, no convívio com oficiais mais experientes, adquirindo conhecimento especializado e os hábitos da vida militar.
O senhor é um dos professores que ajudou a criar a disciplina de Relações Internacionais na Aman e já lecionou na academia. Qual é o foco dessa disciplina na formação dos militares e no que essa formação se diferencia da formação em universidades civis?
Na década passada, fiz parte do grupo que ajudou a elaborar o currículo da disciplina e a treinar em pós-graduações civis os oficiais do Exército que iriam ministrá-la. Seguimos o padrão das universidades civis, expondo as teorias mais importantes da área e com discussões sobre história da política internacional e da política externa brasileira.
Qual é a visão dos militares hoje sobre a geopolítica e qual é a orientação deles acerca de como o Brasil deveria se movimentar internacionalmente?
Os militares brasileiros de hoje têm com frequência boa experiência internacional, por conta de operações de paz, intercâmbios no exterior ou serviço como adidos. O longo período em que o Brasil esteve à frente da Minustah no Haiti aprofundou bastante essas vivências.
A visão dos militares é parecida com a dos diplomatas: ressaltam a importância da ONU e de outras organizações multilaterais, destacam os temas ligados à América do Sul e, no caso da Marinha, também uma atenção grande ao Atlântico Sul, inclusive a costa ocidental da África. Em contraste com o Itamaraty, nas Forças Armadas há uma visão mais crítica sobre os governos de esquerda latino-americanos e às vezes certa cautela com a China, em especial entre oficiais mais velhos, formados na Guerra Fria.
No passado, os militares ficaram conhecidos pelo seu projeto nacionalista de desenvolvimento. Hoje, como os atuais militares que compõem o governo enxergam o nacionalismo?
Os militares são, evidentemente, nacionalistas. Mas no campo da economia muitos oficiais passaram a apoiar uma visão mais liberal, criticando o tamanho do Estado brasileiro e defendendo medidas de austeridade. O limite dessa crítica são seus próprios privilégios corporativistas, como seu sistema de previdência muito generoso, para o qual sempre estão dispostos a abrir exceções nas posições liberais de controle de gastos públicos.
De outro lado, como eles reagem às propostas econômicas do ministro da Economia, que tem entre os pilares da sua política econômica a privatização acelerada? Os militares que compõem o governo compartilham dessa posição e apoiam a abertura econômica nos dias de hoje?
De maneira geral apoiarão as reformas de Guedes, mas apresentarão ressalvas em medidas que prejudiquem empresas que considerem estratégicas, como a Petrobras ou o complexo de defesa, que depende de subsídios e contratos com o Estado. A fusão da Embraer com a Boeing, por exemplo, provoca controvérsias.
Qual é a visão de desenvolvimento e de projeto de país que os militares têm para o Brasil no século XXI?
Não creio que tenham um projeto abrangente e coerente sobre o tema. Nas minhas conversas no Exército e na Marinha, o mais comum é lamentarem justamente a falta de grandes projetos de desenvolvimento nacional, que tenham uma visão de longo prazo para o Brasil.
Recentemente o senhor disse que a “guinada ideológica brasileira tem custo para relações exteriores”. Qual será o custo? Já é possível prever se e como a posição ideológica do novo governo pode influenciar as relações do Brasil com outros países?
Sim. Haverá muita cautela e certo isolamento de governos estrangeiros com o Brasil. Nenhum presidente ou primeiro-ministro da Europa ganha em ser visto ao lado de Bolsonaro, com exceção do premiê húngaro, Orbán. Pesam questões de direitos humanos e da proteção do meio ambiente. Na América Latina também haverá incômodo com um Brasil grande e importante demais para ser ignorado, mas cuja proximidade ideológica traria prejuízos expressivos. É o caso, por exemplo, de Maurício Macri na Argentina. E ainda temos os problemas com a Liga Árabe e a China por conta de várias posições de Bolsonaro. São muitos pontos de tensão. Não houve nada parecido desde a redemocratização.
Poucas delegações vieram para a posse do presidente em comparação com as posses dos governos petistas. O que isso sinaliza? Que leitura é possível fazer a partir da vinda de chefes de Estados que estiveram presentes na posse de Bolsonaro?
Com FHC, Lula e Dilma, houve entre 110 e 130 delegações estrangeiras nas posses presidenciais. Com Bolsonaro foram apenas 46. E nenhum chefe de Estado ou de governo das 20 maiores economias do mundo. A estrela internacional da festa foi o primeiro-ministro de Israel, que deve ser o aliado externo mais importante de Bolsonaro, caso consiga escapar dos processos de corrupção e se reeleger em abril. A ânsia do presidente brasileiro em conseguir o apoio de Trump me causa ceticismo, pois até agora o mandatário americano não demonstrou qualquer interesse em alianças profundas com ninguém, muito menos na América Latina, região que ele parece desprezar. Creio que haverá aproximações para uma linha mais dura contra a Venezuela, mas dificilmente algo a mais do que isso.
Como o senhor analisa os primeiros movimentos do governo Bolsonaro no que diz respeito à política externa?
Vejo três grandes grupos disputando o controle da política externa do governo Bolsonaro: os antiglobalistas, que são a vertente brasileira da onda global de nacionalismo-populismo
Por quais razões o presidente Jair Bolsonaro propõe uma aproximação das relações entre Brasil e Israel? Motivações religiosas, especialmente por conta do apoio dos neopentecostais ao presidente, podem estar influenciando as posições dele sobre as relações do Brasil com Israel?
A aproximação com Israel atende a dois objetivos principais. Um é reforçarem a posição do Brasil como aliado dos Estados Unidos, trazendo para essa aliança também o apoio ao principal parceiro americano no Oriente Médio. A outra razão é religiosa: atender às demandas da base evangélica e reforçar uma mensagem judaico-cristã na política externa.
Bolsonaro tenta imitar Trump com Israel, mas o cenário brasileiro é distinto. O comércio brasileiro com os países árabes é mais de 10 vezes superior ao que o Brasil tem com Israel, que não está sequer entre os 30 maiores parceiros comerciais nacionais. As exportações para os árabes são concentradas em carnes, o que torna o agronegócio um ator importante nas discussões sobre política externa para o Oriente Médio.
Além disso, há o fato de que os evangélicos, embora importantes, são minoria religiosa no Brasil, que é majoritariamente católico. A Igreja não reconhece Jerusalém como capital israelense e o Vaticano e Israel têm uma relação por vezes difícil, que inclui negociações sobre o controle dos locais sagrados cristãos em Jerusalém.
Um dos pontos polêmicos do governo Bolsonaro, em especial dos pronunciamentos do ministro das Relações Exteriores, é o combate ao que se chama de globalismo. Como o senhor compreende esse conceito e como avalia que ele aparece nos discursos do novo governo?
Do modo como o termo é usado pelos antiglobalistas no governo, ele significa um projeto de uma elite cosmopolita para moldar a globalização de acordo com valores progressistas. Os populistas se opõem a esse suposto projeto e defendem os valores locais, nacionalistas, que segundo eles são a real encarnação da vontade popular.
Nos primeiros discursos do novo governo é possível observar que, de um lado, o ministro das Relações Exteriores critica o globalismo, de outro, o ministro da Economia aposta numa maior abertura econômica no país e, como o senhor mesmo já afirmou, a política externa defendida pelo ministro das Relações Exteriores e a do vice-presidente parecem divergir. Que tipos de conflitos poderão ocorrer no governo por conta de visões divergentes acerca da política externa?
Em resposta anterior mencionei o que vejo como as três correntes que disputam a influência sobre a política externa de Bolsonaro. Os pontos de confronto estão sobretudo em como lidar com acordos globais (mudança climática, migrações) ou com países e regiões não Ocidentais: qual deve ser o peso da América Latina, China e países árabes para a diplomacia brasileira. É interessante observar que a bancada evangélica, embora comungue de parte das posições religiosas dos antiglobalistas, apoia as reformas dos tecnocratas liberais. Tem inclusive análises bastante detalhadas de suas propostas para políticas de comércio exterior.
Enfim, será uma política externa marcada por confrontos e controvérsias. Minha tendência é achar que ao fim as mudanças serão menos bruscas do que se anuncia. O Brasil não é uma superpotência, sua capacidade de ação nas relações internacionais é marcada por limites e restrições oriundas de seus recursos escassos. Ainda mais neste momento de dificuldades econômicas que tornam o país muito frágil diante do risco de retaliações comerciais.