Quando a gente olha para baixo do alto de uma ladeira se observa: o esgoto, o subúrbio, a periferia, as favelas, como são conhecidas a partir das urbes de cimento e das casinhas de bairros nobres: são os infernos vizinhos das metrópoles. Tugúrios escuros onde habitam sem piedade os sete pecados capitais, cortiços onde se reproduzem a luxúria e a profanação. Esconderijos de onde se propagam as famílias disfuncionais que envenenam a culta e casta sociedade dos pulcros. Ninhos de criminosos sorvendo água fermentadas de promiscuidade e sexo obsceno.
É assim que pintam do alto da ladeira aqueles que jamais pisaram em um subúrbio. Aqueles que desconhecem suas necessidades, suas súplicas, suas dores, seus sonhos e suas contradições. O subúrbio é visto por esses impecáveis como o pior da sociedade, como o rebotalho de uma população com valores morais e boas maneiras.
Sindicato Bancários de Santos
Não, ao subúrbio não chegam as sinfônicas, nem as obras de teatro, nem os recitais
Ali não chegam a cultura e a arte da burguesia, não chega o esporte, a saúde, a educação, não chega a infraestrutura nem a inclusão. Para lá é enviada a violência institucional: os golpes, as violações sexuais, os desaparecimentos forçados, as limpezas sociais, as migrações forçadas, a fome, o frio, a morte.
Não, ao subúrbio não chegam as sinfônicas, nem as obras de teatro, nem os recitais. Não chegam as exposições artísticas de mentes brilhantes e sensibilidades reconhecidas da burguesia para a burguesia. Não, tudo isso fica no limite do esgoto. Fica na urbe, perto das casinhas dos bairros nobres, onde dizem que estão as almas cultas, com boas maneiras e conhecimento magistral.
Para o subúrbio, pelo contrário, envia-se a angústia, a insônia, a desnutrição, o impedimento, a prisão, a tortura, o insulto, os golpes: a exclusão. O vermelho azulado da ira, o vermelho fogo da adversidade. E se tenta estabelecer violentamente o silêncio, a ignorância, o medo, a psicose, a culpa e a crueldade. Para que aqueles que vivem desse lado limítrofe das urbes sejam os que sempre carregam em seus ombros as sociedades cultas, com bons modos e moral pulcra. Para que sempre sejam os serventes dessas almas sensíveis que lutam por “um mundo inclusivo”.
No entanto: apesar da violência, das limpezas sociais, dos caldos de sexo obsceno e dos sangues ferventes da promiscuidade e da menstruação; apesar da droga, das facas, da cola, dos abortos clandestinos, das camas de papelão, da exclusão e da fome, nesses tugúrios escuros e impudicos se fermenta milenarmente a beberagem dos extramuros que jamais poderão possuir aqueles que em sua erudição, pulcritude e preguiça enxergam tudo desde seu cômodo lugar no alto da ladeira; sem pronunciar-se, sem indignar-se e sem rebelião porque a passividade e o dissimulo os mantêm a salvo em sua bolha de conforto.
Essa beberagem que é própria dos tugúrios do esgoto se chama dignidade e resistência. Os subúrbios são a mostra cultural e sociopolítica da fortaleza daqueles que vivem do outro lado dos limites das urbes e das casinhas dos bairros nobres. São por excelência a poesia da arte do esgoto. Não necessitam museus, recitais, sinfônicas, teatros, são simples como as flores silvestres e os pastos verdes do fim de maio que renascem sempre apesar das secas.
*Colaboradora de Diálogos do Sul, de território estadunidense