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Nos fizeram crer que somos o bagaço da sociedade, mas somos a sua essência

Oxalá regressemos à nossa origem para lutar junto aos nossos para recuperar tudo o que nos arrebataram
Ilka Oliva Corado

Tradução:

Fizeram com que acreditássemos que o progresso está no cimento, que o cimento é o progresso. Fizeram com que acreditássemos que a industrialização é a prosperidade das sociedades. Que para industrializar há que desmatar impiedosamente e acabar com povos inteiros: roubando-lhes a água, a terra, a comida e qualquer meio vital de subsistência. Nos disseram que esses povos não importam e que se resistem há que acabar com eles com repressão pura, e é por isso que os genocídios enlutam a memória coletiva.

Nos disseram que a civilização é um conceito necessário para a sobrevivência da humanidade, que nós, os dóceis, somos seres civilizados; em troca os que resistem à imposição, não são. Os Povos Originários e a plebe devem ser o inimigo a ser vencido. Nos disseram também que nessa humanidade que conformamos só cabem os escolhidos e que é exclusiva, por que está formada pelo creme e pela nata. O soro deve ser descartado.

Para isso utilizaram um coador ao qual chamaram educação superior e que foi saturada de classismo, racismo, homofobia, patriarcado, misoginia, dupla moral, estereótipos e insensibilidade. E a alicerçaram na desmemoria. Nos tiraram da seiva do soro e nos fizeram acreditar que somos o creme e a nata. Sim, a nós os submissos.

Oxalá regressemos à nossa origem para lutar junto aos nossos para recuperar tudo o que nos arrebataram

Wikimedia Commons
Os “incivilizados” conhecem as ervas que curam a nostalgia da alma, o abraço irmão, o olhar que abraça, a voz que acaricia, a solidariedade"

Nos fizeram memorizar que um título universitário nos separa da manada e nos torna únicos e laureados: inalcançáveis. Nos fizeram esquecer nossa origem. E memorizamos que não somos mais plebe e que pelo contrário: somos os exclusivos diplomados, doutores, arquitetos, catedráticos, jornalistas, empresários em uma hierarquia à qual jamais poderá aceder a multidão. Nos fizeram acreditar que somos o creme e a nata daquele bagaço transformado em soro. Chamaram de bagaço a seiva de nossa origem e durante séculos nós o permitimos e gravamos; nos convertemos em cúmplices laureados solapadores do abuso.

Com um título universitário, o creme e a nata podem explorar sua própria classe, podem explorar a multidão de onde provêm. E a reproduziram e a amontoaram sobre o pavimento de urbes que foram criadas para sua reclusão. Um centro de encarceramento com aparência de progresso, sucesso, triunfo e estabilidade econômica.

E nós nos acreditamos celebridades: intocáveis e imortais. E depois começamos a ser parte da repressão à plebe que resiste. Com nossa passividade de vassalos, enquanto nos distraímos pintando nossos cárceres e enchendo nossas masmorras de móveis, sapatos, um montão de comida, colecionando títulos e diplomas para viver das aparências necessárias aos seres de sucesso.

E com isso aprovamos as companhias mineradoras que vão desaparecendo com povoados interior, longe da urbe porque queríamos ter joias dentro de nossos cárceres para exibi-las entre os prisioneiros e competir entre nós para ver quem é capaz de acumular mais. Porque disso se trata: de uma competição de acumulação de tudo o que não é necessário para viver; o consumismo como extensão do capitalismo. Somos essa veia neoliberal e fascista da destruição em massa. Sim, tão fascistas como o que dá a ordem e o que aperta o gatilho.

Lá fora, longe da urbe banhada de cimento, do cárcere com aspecto de progresso, estão os povos em resistência lutando por sua liberdade, sem se dar por vencidos, defendendo sua identidade e sua origem milenar. Defendendo seu direito à terra, à alimentação e a uma vida em liberdade.  Apesar de que com nossa aprovação e silencio de insensibilidade e dogma, desde a comodidade do creme e da nata foram implementadas ditaduras buscando exterminá-los em desaparecimentos forçados, torturas e genocídios que aprovamos com a frieza dos traidores por conveniência. E muito convenientemente também, muitos de nós pretendemos desconhecer para não nos meter em problemas, problemas do tamanho de perder contatos que nos podem servir de degraus.

E com uma dose de dignidade e memória a seiva de nossa origem continua nos dignificando apesar de tudo. Os “incivilizados” os que não conhecem “o progresso”, os livres, selvagens e bravios continuam lutando por nós mesmo que estejamos contra. Sabem que são a seiva do soro de que estamos feitos, embora acreditemos que somos creme e nata.

Aqueles que não conhecem a famosa “civilização” e que não conhecem as prisões de cimento e as competições pela imortalidade, conhecem o campo, o ar puro, o frescor dos rios, a fertilidade da terra, o canto da coruja, o vento antes da chuva.

Os “incivilizados” conhecem as ervas que curam a nostalgia da alma, o abraço irmão, o olhar que abraça, a voz que acaricia, a solidariedade que abriga. Sabem da unidade, de compartilhar, da dignidade, da honra. Da identidade. Conhecem o respeito ao ser superior que é a terra e seus frutos. Sabem que os oceanos e rios, como as abelhas são indispensáveis. Sabem que tudo neste universo está entretecido e que está aí por uma razão fundamental para a existência dos ecossistemas e da sobrevivência de todas as criaturas que o conformam, nenhuma com superioridade diante da outra.

Isso não ensinam na universidade porque então formariam seres pensantes que analisariam e questionariam as imposições e o engano daqueles que durante séculos fizeram com que acreditassem ser o creme e a nata. Descobriríamos que somos marionetes. Alavancas. Fortes muralhas de vidas humanas doutrinados para a traição. Saberíamos então que o cimento não é superior ao musgo das montanhas e às folhas da goiabeira. Saberíamos então que o ouro e os diamantes não são mais importantes que a água e a vida das pessoas.

Saberíamos que os que subsistem somos nós, dentro de uma enorme prisão e que respondemos a padrões previamente estudados para nosso condicionamento e nossa reação dogmática e insensível diante do abuso, mesmo aqueles ao que somos submetidos sem perceber, porque o disfarçam de progresso e triunfo. Formamos quantidades exorbitantes de massa amorfa que manobram ao seu bel prazer.

Mas enquanto nós sigamos adormecidos na avareza de quem tem mais, sendo as marionetes daqueles que se creem donos do mundo, a seiva continua resistindo como tem feito milenarmente, lutando para que o bagaço não continue sendo utilizado como ferramenta de contenção diante da luta intempestiva dos povos por sua liberdade.

Oxalá um dia as massas que vivem encarceradas na urbe de cimento saibam que as credenciais de universidade não lhes devolverão a água dos rios quando as mineradoras os sequem, e que o frescor dos tomates não poderá ser superado pelo ouro, pelas loções finas nem pelos contatos “importantes”. Oxalá saibam que os contatos importantes também são uma ilusão de ótica da vida de falsidades que oferecem as urbes de cimento.

Oxalá algum dia tenham a capacidade de pensar por si mesmo e unir-se à seiva que com raiz de guaiaca e flamboyant se nutre da dignidade e da memória para levantar-se cada dia para seguir resistindo à deslealdade, ao abuso e à repressão dos traidores.

Oxalá chegue o dia em que saibamos que somos a medula, a jugular, a origem, a inerência e a brasa viva. Oxalá que o despertar seja como uma tempestade, como um enorme trovão, como um terremoto do centro da terra, como um grito que retumbe nas entranhas dos cerros; um despertar que faça tremer aqueles que acreditaram ser donos do mundo e de nossas vidas,  e regressemos à nossa origem para lutar junto aos nossos para recuperar tudo o que nos arrebataram. 

Oxalá …

 

*Colaboradora de Diálogos do Sul, desde território dos Estados Unidos


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Ilka Oliva Corado Nasceu em Comapa, Jutiapa, Guatemala. É imigrante indocumentada em Chicago com mestrado em discriminação e racismo, é escritora e poetisa

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