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O surgimento do Partido dos Trabalhadores – PT, há mais de 30 anos, representou um poderoso sopro de vitalidade em um panorama político global marcado, à época, pelo iminente colapso do bloco soviético, a ascensão do neoliberalismo e os desafios postos ante o ocaso do regime militar no Brasil. Em paralelo, a esquerda tradicional vinha sendo profundamente questionada, desde os anos 1960, por suas práticas unidirecionais de direção e comando, sem espaço para crítica e a livre manifestação de novas demandas e movimentos sociais.
Ricardo Carlos Gaspar*
O PT abrigou, desde seu começo, segmentos sociais representativos da juventude, da igreja de Roma, da intelectualidade, dos trabalhadores da cidade e do campo, com o protagonismo de estratos sindicais radicalizados no berço da indústria de transformação no Brasil, o ABC, na região metropolitana de São Paulo. Sua organização traduzia os anseios de renovação e participação da época. Malgrado a fraqueza de suas definições programáticas (ao contrário dos partidos comunistas tradicionais), o PT pautava sua atuação pela democracia interna, a qual, à época da eleição de seus primeiros prefeitos, no final da década de 1980, cunhou a expressão “modo petista de governar”, caracterizado pelo orçamento participativo, conselhos populares e inversão de prioridades. A repercussão popular dessa conduta foi, a princípio, muito positiva, e se traduziu em avanços eleitorais significativos.
Contudo, a vaga definição do socialismo almejado, a falta de enlaçamento do partido e suas encarnações com as lutas históricas da população brasileira e com o trabalhismo recente e a ausência – e mesmo certo desprezo – pela construção teórica (isto é, a escassa preocupação com um diagnóstico mais preciso da situação presente e das possibilidades de mudança social, bem como acerca do papel do Estado nesse processo) debilitava a consistência estratégica do projeto petista. Se, por um lado, essa imprecisão conferia maior dose de flexibilidade e plasticidade às alianças políticas, por outro, fragilizava progressivamente o partido na medida em que a conquista do poder passava a ocupar o primeiro plano de sua prática política.
Embora reconheça que a analogia seja exagerada e fora de contexto, pois aqui o objetivo revolucionário jamais foi posto em cena, não resisto chamar à lembrança a célebre afirmação de Lenin: “sem teoria revolucionária não há prática revolucionária”.
O que importa ressaltar é que, no curso da trajetória do PT, o objetivo do poder foi ficando mais nítido, sem que se elaborasse um programa coerente de reformas e a visualização mais concreta de um projeto de nação. Este, por sua vez, jamais pode ser obra de iluminados, mas fruto de um esforço coletivo de reflexão, sob parâmetros (aí sim) de estudos e prospecções políticas calcados em um conhecimento científico da realidade e suas perspectivas de transformação.
À falta disso, as políticas efetivamente praticadas pelo PT no exercício do poder , que passaram a abranger não somente prefeituras importantes, como também governos estaduais e, a partir de 2003, o poder federal, ficaram perigosamente indeterminadas, podendo comportar desde laivos esquerdistas (minoritários) até pragmáticas guinadas liberais (e neoliberais também), estas crescentemente adotadas.
Mais problemático ainda: a necessária e inevitável aliança com setores a direita do espectro político nacional (dada a exiguidade dos grupos de esquerda representados no Parlamento) ficou inteiramente desprovida de políticas balizadoras, capazes de permitir convergência e negociação em torno de ações consistentes. Os programas de governo de Luis Inácio Lula da Silva e, principalmente, de Dilma Roussef, foram pífios. Desse modo, carentes de uma clara articulação entre meios e fins, os “acordos para a governabilidade” ficaram a mercê de arranjos espúrios com personalidades e forças de índole no mínimo duvidosa, indefesos frente a práticas espúrias tão usuais do establishment da política brasileira e das artimanhas históricas da elite econômica do país. Indefesos face à corrupção, enfim.
Deu no que deu… Com a economia internacional favorável e a aposta bem sucedida na expansão do gasto interno, tudo se afigurava um jogo de ganhos mútuos. Enquanto esse quadro persistiu, muito bem. Porem, com a reversão do ciclo, ao longo do primeiro mandato de Dilma Roussef (2011-14), a elite resolveu descartar o aliado indesejável e quebrou, quase sem resistência do partido, sua espinha dorsal; e aplicar, ela mesma, sua plataforma antinacional e antidemocrática. Das poucas lideranças novas e promissoras do PT, como o prefeito de São Paulo Fernando Haddad, não houve registro de manifestações de peso ao longo dos meses de massacre midiático. A qual, ademais, foi competente, a seu modo, ao construir um discurso com ampla repercussão em parcelas conservadoras da sociedade brasileira. Como eventual saldo positivo dessa derrota fica a mobilização intensa de expressivos setores da população que expressaram, nas ruas, nas redes sociais e com reflexo em setores minoritários do parlamento, seu decidido repúdio ao golpe. É a partir daí que recomeça a difícil reconstrução de uma frente de esquerda, que terá o PT como integrante, porem certamente não mais como protagonista.
(*) Professor do Departamento de Economia da PUC-SP e colaborador de Diálogos do Sul