Não se distraia. O debate não é moral, embora seja essa a cortina de fumaça que encobre as eleições presidenciais no Brasil.
Com frase chocantes sobre tortura e direitos humanos, apelo às armas, declarações racistas e de menosprezo às mulheres, o candidato a presidente do PSL, Jair Bolsonaro, logrou visibilidade. A conhecida máxima “falem mal, mas falem de mim” parece ter sido bem compreendida pelo núcleo da campanha do capitão reformado. Em um país majoritariamente conservador nos costumes, o que soa tão dolorido aos ouvidos de uma parcela intelectualizada da população soa apenas como “zoeira” e brincadeira para a maior parte dos seus 50 milhões de eleitores, difusamente indignados com a corrupção (discurso único dos conglomerados midiáticos nos últimos 13 anos) e preocupados com seus valores morais ameaçados, segundo lhes contam as “denúncias” que chegam às centenas, todos os dias, há anos, pelas redes sociais.
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Reprodução/ Facebook
Li alguns comentaristas que respeito afirmando que “todo eleitor de Bolsonaro é fascista”. Compreendo o desespero de quem pensa assim, as declarações do candidato nos doem fundo na alma, mas é uma ideia falsa. Há ali um percentual “militante” com forte inspiração fascista, o núcleo duro da campanha. O eleitorado, contudo, está preocupado com seus valores e acredita no que dizem as correntes do submundo do Whatsapp. Acreditam, ainda, nos líderes religiosos, geralmente meros mercadores da fé, porém extremamente eficazes, que assumiram para si o projeto do candidato protofascista e colocaram nas ruas, nas últimas semanas da campanha, um verdadeiro exército a ir de casa em casa buscar os votos para o candidato a presidente mas, também, para seus deputados, senadores e governadores. Isso, aliás, é o que explica o fracasso das pesquisas de intenção de voto para deputados e senadores e a “surpresa” dos cientistas políticos acostumados ao formato eleitoral tradicional.
Por trás de uma campanha moralista, baseada em memes e fofocas difundidas por Whatsapp está o que quase nenhum dos quase 50 milhões de eleitores do PSL (que elegeu 51 deputados federais!) conhece: seu programa econômico ultraneoliberal. Um programa privatista, desnacionalizante e profundamente concentrador que faz brilhar os olhos dos investidores internacionais.
O candidato do PSL não têm nenhum compromisso com os direitos trabalhistas, pelo contrário, está sendo assessorado por empresários e economistas francamente avessos à toda regulação do mercado de trabalho. Inspirados no “modelo americano”, onde não há legislação que garanta férias pagas, décimo terceiro salário ou licença maternidade, propagam esse tipo de mudança como modernização. Em termos de política externa (já exploramos isto em outro artigo publicado neste mesmo espaço), a candidatura do PSL está alinhada ao “antiglobalismo” de Donald Trump, com a diferença fundamental de que, em Trump, o “antiglobalismo” leva ao protecionismo econômico e em Bolsonaro leva à aceitação dócil do programa de Trump para a América Latina.
Isso significa, em outras palavras, a abertura comercial do Brasil aos EUA sem barreiras, a diminuição do perfil do Mercosul e a extinção de práticas diplomáticas soberanistas, as quais nos levaram, por exemplo, a compor os BRICS e liderar disputas na Organização Mundial do Comércio a favor das pautas dos países em desenvolvimento e a venda indiscriminada do patrimônio do povo brasileiro – petróleo, minérios, água doce – para grandes multinacionais.
No plano interno, a pauta “secreta” ultraneoliberal de Bolsonaro prevê a extinção dos mecanismos de proteção da biodiversidade, que poderia ser nosso passaporte para o futuro se combinada ao investimento em tecnologia. Não haverá, contudo, investimento em tecnologia, com o fim já anunciado do MCTI. E com o fim previsto do Ministério do Meio Ambiente, espera-se a liberalização do desmatamento, da caça aos animais silvestres e a consequente perda irreparável de biodiversidade – além da ameaça às nossas reservas de água doce, que dependem da existência de cobertura vegetal. O programa de Bolsonaro prevê ainda a extinção do Ministério da Cultura e a redução da responsabilidade do Estado na Educação em todos os níveis, além de não mencionar qualquer tipo de solução efetiva para o financiamento da saúde.
Na questão distributiva, além do fim dos programas sociais, a fixação de uma alíquota única de imposto de renda fará com e os menores salários passem a pagar impostos extorsivos, enquanto as grandes fortunas e os grandes rendimentos seguirão pagando relativamente pouco, intensificando a concentração da renda e piorando rapidamente as condições de vida do povo trabalhador.
Tudo isso está no programa do candidato que diz ter Deus e a Pátria acima de tudo e está também difusamente reafirmado nas falas de seu boquirroto candidato a vice-presidente. O povo brasileiro precisa conhecer esse programa, inclusive os eleitores do capitão, que o desconhecem em sua imensa maioria.
Os 30 milhões que não votaram e os 11 milhões que votaram em Branco e Nulo precisam saber disso. Estão autorizando, com seu silêncio, a vitória de um programa de lesa pátria.
Os 30 milhões de eleitores de Haddad, os quase 14 milhões de eleitores de Ciro Gomes e os 12 milhões de eleitores de outros candidatos também precisam saber.
É preciso combater a pauta econômica de Bolsonaro. Explicá-la à população. Mostrar que a pauta moral é a cortina de fumaça de uma candidatura que não pode mostrar ao povo o que defende, porque se mostrar, perderá as eleições.
* Rita Coitinho é socióloga, doutora. em Geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz.