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A pequena Amelia e o neoliberalismo na saúde do Chile

Roney Rodrigues
Outras Palavras

Tradução:

Como no Chile a morte de Amelia -uma garota de apenas dois anos de idade- despertou a consciência popular sobre a perversidade de um sistema de saúde em que o lucro está acima da vida.

Uma criança de um ano e nove meses morreu na cidade litorânea de Valparaiso, Chile, vítima de uma cruel enfermidade: falta de assistência médica adequada do Estado. A chilena Camila Jorquera, 24, assistente social, mãe em luto há menos de três semanas e que veio a São Paulo para participar de uma atividade da SeLVIP (Secretaria Latino Americana de Vivenda Popular), abre seu tablet. Ela está acompanhada de seu marido, Maurício Salazar, 30 anos, educador popular e líder comunitário do bairro periférico de Las Cañas, que sofreu, em abril de 2014, o maior incêndio urbano da história do Chile, onde quase três mil casas foram destruídas – matando 15 pessoas e desabrigando outras 12.500. Camila dá play em um vídeo no Youtube.

Um apresentador engravatado da TV chilena, desses de programas sensacionalistas (uma espécie de José Luiz Datena ou Reinaldo Gottino dos Andes), com voz sóbria, olhar que pretende penetrar emcorações e mentes dos telespectadores, afiança:

“Essa é uma daquelas histórias que nos partem o coração. Uma menor de um ano e nove meses morreu, em Valparaiso, esperando atendimento. Amelia Salazar Jorquera, esse é o nome dessa menor. Seus pais estão essa noite conosco”.

Fotos dos pais com a criança em momentos descontraídos da vida doméstica, somadas a notas melancólicas de piano, são exibidas com uma narração em off carregada de emotividade e indignação, explicando a “tragédia pessoal” antes da sorumbática entrevista com os pais de Amelia.

“A televisão quer que a gente chore em frente às câmeras. Fazem perguntas como: ‘olha o que aconteceu com sua filha, que tragédia, não é mesmo?’; ‘o que vocês sentem com tudo?’; ‘como é a dor de perder uma filha tão pequena, tão linda?’. Exploram a nossa dor. Mas aceitamos dar entrevistas como essa para denunciar o que aconteceu com nossa filha. Porque de uma coisa temos certeza: não é só uma tragédia pessoal”, conta Camila.

Um caixão infantil branco que mede menos que um metro de comprimento é algo que pode apunhalar até o coração dos mais insensíveis. Principalmente quando se trata de uma família humilde. Pobre começa a ser enterrado em vida, se diz aqui no Brasil. Mas essa história poderia se encerrar apenas em consternação e apatia.

Não para Maurício e Camila. Seus companheiros de ativismo os enviaram ao Brasil como representantes do bairro Las Cañas – que teve de se reconstruir depois do incêndio de 2014 – esperando que, assim, relaxassem um pouco de todo o drama que têm vivido nas últimas semanas. Uma pequena pausa, dado o turbilhão que enfrentam. Mas o casal está imprimindo folhetos com a foto da filha e distribuindo nas ruas de São Paulo. Explicando o caso para outras lideranças de movimentos sociais. Procurando jornalistas. Pedem: justiça para Amelia, saúde digna para todas e todos, palavras de ordem da mobilização que encabeçam.

“Sim, viemos para participar da SeLVIP, mas também viemos para contar sobre os efeitos do neoliberalismo contra o povo. Contar como a privatização de setores importantes gera riquezas para poucos e aprofunda a desigualdade social. Viemos evidenciar o que é o Chile com Piñera e todo seu grupo político. Viemos contar a nossa história e o que aconteceu com nossa filha”, responde Camila, quando comento que a estratégia de seus companheiros chilenos não havia funcionado muito bem. Ligo o gravador e pergunto: o que aconteceu com Amelia?

O caso Amelia

Camila: Amelia é nossa filha de um ano e nove meses. Sempre foi saudável. Frequentava o jardim de infância. Um dia se resfriou e a levamos ao médico, que a diagnosticou com rinofaringite. Depois, o diagnóstico mudou: disseram que era bronquite. Mas deram alta para Amelia e prescreveram medicamentos para ela tomasse em casa. Cuidamos muito bem dela, afinal, é nossa primeira filha, entende? Um dia, depois que já havia terminado o tratamento, a febre subiu. Havíamos contratado um serviço de ambulância que vai até a casa do paciente. Privado, claro. Ligamos.

Maurício: Eles não diagnosticaram bem nossa filha. Antes de tudo isso, é importante contar também que eles deveriam ter vacinado Amelia contra a Influenza A [ou H1N1, mais conhecida como gripe suína, que se propagou na primavera de 2009, uma gripe provocada por um novo tipo de vírus, ou seja, a população não tem nenhuma imunidade contra ela]. Mas a vacinação não estava disponível. Depois, ela se enfermou e não pode mais ser vacinada.

Camila: Quando a levamos pela segunda vez ao médico, disseram que estava tudo bem, que ela precisava, na verdade, de um especialista. No dia seguinte, ela estava melhor. Porém, durante a madrugada, a febre subiu e a levamos ao hospital Carlos Van Buren de Valparaiso. Tiraram radiografia e disseram: ‘sua filha não tem nada grave, fiquem tranquilos, vão para casa e sigam com o tratamento’. Só depois, com uma denúncia anônima, soubemos que essa máquina de radiografia estava com problemas. Fomos para casa. No dia seguinte, fui trabalhar e Maurício ficou em casa cuidando da menina. No final da tarde, fomos ao especialista, que analisou a radiografia do dia anterior e diagnosticou: ‘aqui tem pneumonia’. Ele nos deu alguns papeis e nos mandou para casa com um novo tratamento, para pneumonia. À meia-noite, ela já não conseguia respirar. O peitinho dela arfava: huf, huuuff, huuufff. Chamamos a ambulância e fomos para o Hospital, onde não havia nenhum leito na Unidade de Cuidados Intensivos [UCI – o equivalente, no Brasil, à UTI]. Amelia precisava de um respirador não invasivo, uma máquina que faz a função do pulmão enquanto ela não conseguia respirar.

Maurício: Para que você saiba: no Chile há uma unidade que faz a gestão de leitos. Eles buscam por toda a região, sejam públicos ou privados. Se não há no hospital público, eles pagam no setor privado – três vezes mais, mas isso é outra história, já-já falamos disso. A lógica seria fazer mais leitos no hospital público, mas para eles é mais interessante alugar em hospitais privados.

Camila: E, então, às quatro da manhã, nos avisam que, em toda a região, não havia nenhum leito disponível. Perguntaram se poderiam procurar em nível nacional. Claro que dissemos que sim. Mas também não havia. Uma doutora realizou, então, o procedimento de entubação e nesse procedimento – em que acreditamos ter havido negligência médica, pois a drogaram demais – Amelia morreu. Nos deram uns papeis e falaram: tchau. Ninguém nos explicou nada. No dia seguinte, soubemos que havia sim um leito disponível, mas estava “bloqueado” por um neurocirurgião…

Maurício: Muito, muito poderoso…

Camila: … do hospital e que a doutora que entubou nossa filha decidiu, portanto, não dar esse leito para Amelia, mas levá-la para outro lugar.

Maurício: E assim ela morreu, no dia 4 de julho de 2018, por Influenza A, depois de uma série de erros em procedimentos simples – no mínimo, uns quatro erros – nas mãos do perverso sistema de saúde do nosso país. Morreu como muitas outras crianças na América Latina, por consequência da desigualdade social que limita o acesso à saúde e a outros direitos. É disso que queremos falar!

Saúde como mercadoria

O ditador Augusto Pinochet, que comandou com mãos de ferro o Chile entre 1973 e 1990, instalou um modelo neoliberal que sofreu poucas reformas nas últimas décadas. O sistema de saúde do país, que o caso Amelia expôs, é um exemplo: não é um direito, mas uma mercadoria.

“Nossa Constituição é a Constituição da ditadura de Pinochet e não garante direitos básicos como saúde, educação ou aposentadoria”, explica Camila, didática, quando pergunto sobre o modelo que propiciou sua lastimável perda. “Nenhum dos diferentes presidentes que passaram por nossa história conseguiu mudá-la – até porque não lhes convém, são representantes de grandes grupos econômicos e políticos. Somente conseguimos acessar esses serviços por meio de empresas privadas, ou seja, a qualidade de serviços para um chileno depende do quanto ele pode pagar.

Durante todas essas décadas, reduziram a capacidade de atendimento do Estado para, assim, empresários serem contratados como prestadores de serviços para o Estado”, complementa ela.

O povo chileno, para utilizar o sistema de saúde – seja por meio de hospitais ou centros de saúde controlados pela administração pública (oferecido pelo Fundo Nacional de Saúde, também conhecido como “Fonasa”) ou de clínicas e consultórios privados (chamadas de “isapres”) – precisa ter um plano de saúde. Para utilizar o “Fonasa”, o cidadão deve destinar 7% da sua renda mensal para financiar seu seguro de saúde. Evidentemente, nem todos têm dinheiro para custear esse modelo de plano de saúde e, por isso, foram criadas quatro categorias diferentes dentro do próprio sistema público. A chamada categoria A atende aqueles que não têm como pagar mensalmente a “Fonasa”. Ou seja, para além da diferença entre hospitais públicos e privados (que, dependendo do plano “isapres”, têm melhores profissionais, equipamentos e atendimento), o sistema de saúde público absorve a desigualdade social que existe no país – hoje, segundo o Banco Mundial, 1% dos chilenos mais ricos concentra 33% da renda nacional. Dessa forma, como acontece na educação, muitos dos hospitais públicos ou centros de saúde comunitários são administrados por entes privados, fundações ou cooperativas. Isto significa um obstáculo – quase intransponível – na hora de fazer com que a cobertura alcance toda a população, especialmente os mais pobres.

“A lógica de todas essas áreas – como aposentadoria, educação, saúde, moradia – é privatizar e baixar a qualidade dos serviços prestados pelo Estado para que terceiros, inclusive estrangeiros, lucrem. Mais de 50% dos recursos investidos pelo país em saúde vão para o sistema privado, sem considerar que a população, quase 80%, utiliza os serviços públicos. Os contratos assinados são muito lucrativos. Este é um sistema pensado para favorecer o mercado”, conta Maurício.

“Há poucos hospitais públicos e muitas clínicas privadas”, constata Camila. “Em Valparaíso, por exemplo, só há um. Imagine: uma das principais cidades do país com somente UM hospital público! Ao invés de investir em leitos, o que poderia ter salvado a vida de Amelia, o Estado compra leitos em clínicas privadas por um preço três vezes maior. Diretores de hospitais públicos são acionistas de clínicas privadas – e o diretor do Hospital Carlos Van Buren é um exemplo disso. Para eles, não interessa mudar o sistema”, denuncia a jovem mãe.

Mudar o modelo

Maurício e Camila concederam inúmeras entrevistas, organizaram manifestações contra o modelo do sistema de saúde chileno e até se reuniram com o ministro da Saúde, Emilio Santelices, que prometeu investigar o caso

Desde o fatídico dia quatro de julho, quando Amelia morreu, o casal não parou. Maurício e Camila concederam inúmeras entrevistas, organizaram manifestações contra o modelo do sistema de saúde chileno e até se reuniram com o ministro da Saúde, Emilio Santelices, que prometeu investigar o caso. Uma equipe está entrevistando os envolvidos e revisando os procedimentos médicos. O resultado preliminar saiu no dia 9 de agosto. Alguns dias depois, após intensa pressão popular dos moradores da periferia de Valparaíso, o ministro fez uma visita ao Hospital Carlos Van Buren de Valparaiso e constatou o sucateamento da instituição: afirmou que as instalações e equipamentos estão em estado precário. Anunciou, também, um investimento de 1,6 bilhão de pesos chilenos (o equivalente a cerca de 2, 5 milhões de dólares ou 10 milhões de reais).

O diretor do hospital, David Gutiérrez, disse que “lamentamos profundamente o falecimento da menor, produto de um quadro respiratório grave; sem dúvidas nos dói que isso tenha acontecido, nunca gostaríamos de ter que informar isso”. Também prometeu investigar se houve algum erro médico. Um grupo de advogados, com experiência em negligência médica, se interessou pelo caso e representará o casal sem cobrar honorários.

O senador Francisco Chahuan e Alis Catalán, diretora assistente do Serviço de Saúde de Valparaíso-San Antonio, solicitaram ao reitor da Universidade de Valparaíso, Aldo Valle, que inicie um plano de desenvolvimento de infraestrutura para melhorar, a curto prazo, a situação que em que encontra o centro médico. Mas Camila e Maurício não querem somente uma reparação. Querem mudanças. “Queremos discutir cogestão de hospitais públicos e de investimentos com o município e maneiras da comunidade fiscalizar”, anuncia Camila.

Maurício complementa: “quando fizemos uma manifestação, muitas pessoas diziam: ‘meu filho de cinco anos também morreu por falta de atenção médica’, ‘minha mãe também’, ‘minha filha também’ – e assim, calados, por muitos anos, iam embora. Não entendem que o problema é maior: é a desigualdade. Que o sistema de saúde chileno existe para financiar o sistema privado”.

O pai enlutado já fala com mais consternação sobre a insólita lógica política de seu país: “como é possível que o Congresso Nacional, por exemplo, gaste mais dinheiro em armas para reprimir os mapuches [povo originário do sul chileno que sofre inúmeras violações de direitos humanos do Estado] do que com saúde?”, indaga Maurício. E complementa: “antes, as pessoas se conformavam: ‘sou pobre e foi isso que o destino reservou para mim’. Hoje vemos nos olhos do povo algo diferente: ‘não mais! ’. Temos consciência de que há um novo Chile, um Chile popular, de gente que acorda horas mais cedo para ter que tirar licença médica. Um Chile que trabalha o dia inteiro e se vê como trabalhador – e não classe média. Temos mais força que essa minoria que concentra a riqueza do país”


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Roney Rodrigues

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