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O Mensalão em três atos – Mensalão III: O Teratológico

Victor Neiva

Tradução:

 

(Foto: Flickr/Ric?rdo)

Victor Mendonça Neiva*
TE-RA-TO-LÓ-GI-CO! A primeira vez que tive contato com esta palavra, perdido no estudo de processo civil, tive uma certeza e um espanto: só podia ser um palavrão e como é que poderia ser usada em um processo?
Depois vi que seu significado era muito pior. Teratológico é aquilo que nos faz lembrar que a injustiça que tanto nos revolta é fato cotidiano, quase banal. É o absurdo ao quadrado, a indignidade ao extremo, enfim, o que faz conhecer o máximo de indignação que podemos suportar. Trata-se de um termo utilizado dentro do juridiquês como a única alternativa para justificar o cabimento do mandado de segurança contra ato judicial.
Já vi, no cotidiano forense, várias decisões teratológicas que, apesar disso, jamais justificaram o cabimento daquele remédio extremo contra arbitrariedades. Percebi então que não bastava a existência de uma teratologia praticada por magistrado. Era necessário que, além dela, existisse um juiz ou um órgão judicial capaz de reconhecê-la.
Ao tratar do mensalão, todos os acusadores e boa parte da opinião pública o exaltaram com um nível de excepcionalidade semelhante. Era “o maior escândalo de corrupção que existiu na história do país”, “o mais atrevido esquema de corrupção” e assim por diante.
Ao presenciar algumas das condenações, entretanto, fiquei absolutamente pasmo, mais que isso, embasbacado! Foram baseadas em regras de análise da prova que determinam que a avaliação do conjunto probatório ocorra segundo o que “ordinariamente acontece”.
E assim, aplicando-se ao que foi considerado o máximo do extraordinário (perdoem-me o pleonasmo vicioso), o que, segundo a maioria dos ministros do STF é o que normalmente ocorre, foram condenadas pessoas sem qualquer prova.
Digo isto porque o depoimento de um co-réu, inimigo declarado de um dos condenados jamais, em nenhum outro processo que se tenha conhecimento, é tido como “prova”. De fato, testemunhas são as pessoas desinteressadas que prestam juramento. Os parentes, amigos, inimigos e demais interessados, quando muito, são informantes e não servem, por si só, como prova.
Além disso, a testemunha deve falar de fatos por ela presenciados e não de opiniões. O que normalmente se dá em depoimentos, e até estagiários sabem disso, é que, se a pessoa não presenciou o fato, dele não pode depor, ou seu depoimento não serve.
Neste caso, a versão do co-réu prevaleceu à das verdadeiras testemunhas do fato, simplesmente por uma avaliação de “verossimilhança”, mais atrelada à qualidade retórica do informante que a aparência de verdade do que disse.
Como se não bastasse, vimos serem inocentados os marqueteiros da campanha por, independente do que ordinariamente acontece, não terem conhecimento da origem ilícita dos 11 milhões de reais que receberam pela campanha presidencial.
É isto mesmo: sujeito, brasileiro, por um serviço prestado no Brasil, exige que o pagamento seja feito na conta de uma off-shore em um paraíso fiscal e não supõe que os recursos sequer fossem de caixa 2!
E eu pensando cá com os meus botões: se os recursos fossem lícitos, necessariamente teriam que estar na prestação de contas a ser feita perante o TSE. Como isto é feito? Há precedente deste tipo de depósito aceito como algo regular em uma análise de contas pelas cortes eleitorais? Isto, mais uma vez, “ordinariamente acontece”?
E assim, o que se viu assemelhou-se mais ao restabelecimento da “oligarquia dos sofistas”, que propriamente um julgamento. Enfim, subverteu-se as mais elementares regras da democracia e dos direitos fundamentais, fazendo com que a nossa corte suprema se prestasse ao linchamento sem provas e a absolvição com elas.
Ora, dentro do que ordinariamente acontece, a onisciência e onipotência são poderes divinos. Na prática, instituições, quando crescem, têm funções delegadas. Por exemplo, a Casa Civil da Presidência da República é a responsável pelo controle administrativo do governo, pela condução das políticas gerais, pela elaboração das minutas de todas as normas e por todas as nomeações de um governo gigantesco. Assim, a afirmação de conhecimento e controle do extraordinário de relação de varejo entre partidos, o tal esquema de corrupção, não pode ser presumido. Tem que ser provado. E não foi.
Ademais, é evidente que os recursos são recebidos desta forma para elisão fiscal e, portanto, não são declarados e, desta forma, dentro das regras de uma campanha eleitoras, só podem ser feito com “recursos não contabilizados” e, portanto, ilícitos. Como entender o desconhecimento desta origem para absolver nestas circunstâncias.
Aprendemos, desde muito cedo na faculdade, que democracia não é, necessariamente, o regime da maioria, mas o regime político que reconhece a existência de direitos fundamentais e tem no Estado não o destinatário da ação dos súditos, mas uma organização política voltada ao atendimentos destes direitos dos cidadãos.
Daí que, paulatinamente, no processo de amadurecimento da democracia, fortaleceu-se o papel das cortes constitucionais, como órgãos necessários a impedir o aviltamento destes direitos, principalmente em situações de crise. E isto se deu, fundamentalmente pelo reconhecimento de que a maioria também pode oprimir.
Eis o porquê de, em muitos casos, a decisão de uma corte prevalecer sobre a de órgãos legitimados pelo voto. Também a justificativa para que os juízes destas cortes não sejam sujeitos ao sufrágio, eis que os tornaria mais suscetíveis à opinião pública, pois seriam dependentes do voto.
O que vimos, entretanto, foi a completa subversão destes valores ontológicos de uma ordem democrática. Isto é evidentemente te-ra-to-ló-gi-co!
Pois é, a maioria oprimiu. O problema é que foi uma maioria que variou de seis a oito pessoas. E, com isso, comecei a suspeitar que o máximo de indignação que podemos suportar tenha como sentimento correspondente a repugnância visceral.
*Advogado, Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/DF


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Victor Neiva Advogado, Bacharel em Direito graduado pela Universidade de Brasília em 1999 e pós graduado, em Direito Ambiental, pela mesma instituição em 2006. Compôs a banca de advogados atuante na Associação Brasileira de Anistiados Políticos, matéria que tem atuação marcante e reconhecida.

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