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“Eu tenho o número dela de memória, 3472…”, diz uma criança. Ao fundo, outras choram desesperadamente, enquanto passam pelo brutal processo de separação de suas famílias na fronteira sul dos Estados Unidos. Esse é um dos áudios que vazaram nas últimas semanas, expondo a administração de Donald Trump como causadora de uma tragédia humana que chocou o mundo.
Lu Sudré, no Brasil de Fato
Ao todo, a polícia fronteiriça estadunidense separou 2,3 mil crianças imigrantes de seus pais nos últimos dois meses. Segundo dados do The Intercept, desde outubro do ano passado, são mais de 3,7 mil crianças imigrantes separadas de suas famílias, muitas das quais chegaram ao país em busca de asilo e foram mandadas para instalações precárias em ao menos 17 estados.
Até crianças com menos de um ano de idade estão sendo detidas em quatro lugares do sul do Texas, no que está sendo chamado pela imprensa americana de baby jails (prisão para bebês, em tradução livre). Já o governo Trump utiliza a expressão “abrigos para a tenra idade”. Segundo oficiais mexicanos, uma das crianças retiradas de seus pais é uma garota de 10 anos com Síndrome de Down.
Nesta terça-feira (19), Trump soltou virulentos comentários no Twitter dizendo que os Democratas querem imigrantes “não importando quão maus sejam, para que eles cheguem e infestem nosso país”. Os comentários dividiram inclusive o partido próprio mandatário, o Republicano, e fez com que mesmo vozes conservadoras, como o jornalista Bill Kristol, comparassem Trump a Hitler. “As declarações dele provavelmente soam melhor em alemão”, disse Kristol na rede social.
De acordo com informações da Folha de S.Paulo, uma nova lista compilada pelo governo estadunidense foi enviada nesta quarta-feira (20) às autoridades do Brasil, mostrando que ao menos 49 crianças brasileiras foram separadas de seus pais e estão em abrigos para menores. Desse total, 21 menores estão localizados em um abrigo em Chicago.
No mesmo dia também ocorreu um ato contra Trump em frente ao Parlamento Europeu, em que manifestantes ergueram cartazes com as frases: “Parem Trump” e “Não somos perigosos, estamos em perigo”, sobrepostas a fotos de crianças imigrantes.
Para comentar a ação do governo norte-americano, condenada internacionalmente, o Brasil de Fato entrevistou Kathryn Johnson, coordenadora de advocacia da American Friends Service Committee, organização que atua pela paz e justiça social nos Estados Unidos e ao redor do mundo.
Na opinião da especialista, se a política de Trump continuar, os pais seguirão sendo deportados sem suas crianças, que irão continuar nos EUA. “Quando isso acontece, não há nenhuma garantia de que os Estados Unidos irão ajudar essa criança a ver sua família novamente”, afirma Kathryn, que atua com problemas relacionados à imigração internacional, mas também em relação a questões das políticas americanas na América Latina.
“Está claro que os Estados Unidos não têm interesse em ajudar essas crianças a se reunirem com suas famílias e se não nos mobilizarmos para pará-lo, pais podem ser deportados, e suas crianças podem ser colocadas em famílias americanas permanentemente”, complementa.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: No que a política de imigração de Donald Trump se baseia?
Kathryn Johnson: Desde 1996, pessoas podem ser processadas por entrar nos Estados Unidos sem documentação. Antes apenas algumas eram, mas agora todas são. A mudança principal na política que Trump instituiu é que agora ele está processando criminalmente todo mundo que entrou nos Estados Unidos, e muitas dessas pessoas são pais que estão viajando com suas crianças.
Isso significa que os pais estão sendo presos, estão na cadeia, enquanto suas crianças são tiradas deles e estão sob custódia do serviço de assistência social. Essa é a política oficial anunciada pela administração de Trump.
Além disso, muitos estão se apresentando nas portas de entrada e pedindo asilo, o que não é ilegal, mas muitos desses pais estão ficando detidos na imigração e também têm seus filhos retirados deles.
O que está por trás dessas políticas?
Essa atitude vem certamente de uma política racial que já é discriminatória. Nossas políticas de imigração, no geral, são baseadas em uma visão supremacista branca e de discriminação racial. Essa extensão particular da política não está necessariamente mirando um grupo ou outro, mas nós sabemos pela gestão do presidente que todas essas decisões vêm de um lugar de discriminação racial e supremacia branca, porque são feitas por muitas pessoas da administração de Trump que fizeram comentários racistas.
Eu também acho que essa política vem de um olhar de desumanização dos imigrantes, especialmente imigrantes que não são brancos, como os imigrantes africanos, latino-americanos e caribenhos. Eles são vistos como os últimos dos humanos, que não merecem o respeito dos direitos humanos e das leis internacionais.
O que podemos esperar da reforma da imigração de Trump? Acredita que será aprovada?
Eu acho improvável que a Casa dos Representantes [o equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil] e o Senado dos Estados Unidos aprovem propostas que não receberão a sanção do presidente.
Eu acredito que tem duas propostas avançando na Casa que o presidente apoia. Elas são propostas conservadoras que limitam significativamente e reduzem a imigração legal. Inclusive, são os pilares daqueles que querem se ver livres do Diversity Visa Program [Programa bastante criticado por Trump que oferece vistos anuais para países com poucos imigrantes nos EUA], que emite mais de 50 mil vistos por ano nos Estados Unidos.
Os projetos também reduzem e cortam certo tipo de famílias imigrantes, o que torna mais difícil que imigrantes legais e cidadãos tragam os membros de sua família para junto deles. As propostas querem aumentar o muro da fronteira.
Agora, em resposta à separação das famílias, as propostas adicionais que estão na trâmitando na Câmara incluem anular o Ato de Proteção às Vítimas do Tráfico, que requer que crianças não acompanhadas de qualquer país, com exceção de México ou Canadá, se apresentem a um juiz de imigração antes de serem deportadas, o que quer dizer que leva muito tempo para deportar crianças não acompanhadas, porque os reconhecemos como muito vulneráveis.
Há uma lei que afirma que crianças não podem ficar detidas mais do que 20 dias. Elas não podem ficar detidas com os pais, quando os pais são presos. E, então, a proposta também quer mudar essa lei para que se possa prender crianças imigrantes por tempo indeterminado.
Tem outro projeto nesse sentido no Senado, mas os democratas já disseram que não irão apoiá-lo, e os republicanos precisariam do apoio deles para que fosse aprovado.
Trump criou essa política de intolerância contra os imigrantes ou ela apenas está se intensificando?
A lei para criminalizar quem entra no país passou em 1996, sob o presidente [democrata Bill] Clinton, mas até hoje eles não processavam todos que passam pela fronteira. Então ele [Trump] está reforçando essa lei. Mas a separação de crianças dos seus pais em pontos de entrada é uma nova política, é mais um reforço de uma lei que já existia.
Quais são as perspectivas para essas crianças? Elas retornarão aos seus pais?
Não sei. Se a política continuar como está, vamos continuar vendo os pais sendo deportados sem suas crianças, que irão continuar nos EUA. E, quando isso acontece, não há nenhuma garantia que os EUA irão ajudar essa criança a ver sua família novamente.
Está claro que os Estados Unidos não têm interesse em ajudar essas crianças a se reunir com suas famílias, e se não nos mobilizarmos para pará-lo, pais podem ser deportados, e suas crianças podem ser colocadas em famílias americanas permanentemente.
Nós provavelmente não vamos ver nenhuma reforma séria de imigração passar esse ano, não com o congresso atual. Eles já tentaram no Senado e falharam em passar qualquer reforma significativa, até mesmo reformas mais moderadas falharam. Então, com certeza, até o fim das eleições não vamos ver nenhuma mudança nas políticas.
Então eu acho que vamos ver uma continuidade, enquanto essa administração atual estiver no poder, que eles vão tentar deportar e deter pessoas o mais rápido possível. Vamos continuar vendo centros de detenção lotados, pessoas sendo deportadas mais rapidamente e famílias vão continuar a ser separadas.
O que a comunidade internacional pode fazer para ajudar essas pessoas?
Quando vemos uma condenação da ONU [Organização das Nações Unidas], mesmo os EUA não reconhecendo isso, ela causa um impacto e nos dá mais forças para lutar contra essa política, então por exemplo a condenação da ONU da separação dessas famílias ajudou. Acho que declarações de líderes são certamente úteis. Infelizmente, vemos a administração Trump ignorar a opinião internacional.
Os norte-americanos concordam com as políticas de Trump?
A maioria dos americanos não concorda com a política de separar famílias, e a maioria dos americanos acredita que precisamos de uma reforma compreensível de imigração, que precisamos criar passos legais para a cidadania para as pessoas que estão no país, mesmo para as pessoas que não têm documentos, e que precisamos ser mais receptivos com a maioria dos imigrantes, isso é o que maioria dos americanos acredita.
Infelizmente, a opinião republicana está muito mais dividida na questão de separar famílias, e há muito mais para ser feito, enquanto a administração Trump alega não ser culpa dela.
O que é possível fazer de imediato?
Acho que o principal movimento que podemos fazer para cortar essas políticas é cortar dinheiro. Estamos pressionando muito o Congresso, e qualquer membro do Congresso que se oponha a essas políticas tem que votar contra os fundos de patrulhamento das fronteiras e contra as prisões dos imigrantes.
Se eles aprovam o envio de fundo para essas agências, eles também são culpados por essas políticas, de separar as famílias nas fronteiras e as outras contínuas atrocidades no nosso sistema de imigração.
Além disso, outras agências de reforço de lei que colaborem com essas agências e políticas são culpadas por essas atrocidades. Cadeias que estão detendo pessoas, polícias locais que estão colaborando com eles. Também é importante reforçar que não vamos acabar com a crise de separação de famílias detendo mais crianças ou deportando pessoas mais rápido, isso é uma solução inaceitável.
O que nós precisamos é de uma reforma humana de imigração, e receber bem os que vem ao nosso país, principalmente os que vêm procurando refúgio.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira e Diego Sartorato