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Nesta quarta-feira (13), o Congresso argentino vai discutir se aprova ou não a despenalização do aborto até as 14 semanas de gestação. Atualmente, a lei permite a interrupção da gravidez apenas em casos de estupro e de risco para a vida ou a saúde da mãe. Nos últimos meses, milhares de mulheres, em sua maioria jovens, foram às ruas do país exigir o direito de escolher sobre suas vidas e corpos.
Nos últimos dez anos, cerca de três mil mulheres argentinas morreram vítimas de complicações por abortos clandestinos. A cada ano, estima-se que 500 mil abortos clandestinos sejam realizados no país. Apesar de o tema ter gerado um amplo debate na sociedade, uma pesquisa realizada pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA) revela que 57% dos argentinos são favoráveis à despenalização e legalização do aborto.
Sobre a questão, a revista Diálogos do Sul traz o artigo de Julia Burton, que foi uma das expositoras sobre o tema no Parlamento. Confira:
Nos primeiros meses de 2018, o feminismo transbordou em diferentes espaços da arena pública argentina demonstrando, uma vez mais, a capacidade que este movimento político tem para pautar o debate político.
Julia Burton*
Este “pautar o debate político” está configurado por uma rede que se compõe, entre outras coisas, pelos seguintes acontecimentos: a multiplicidade de assembleias que organizaram a Paralisação Internacional de Mulheres em várias localidades do país; o aparecimento de diferentes feministas no programa televisivo Intrusos, do canal AmericaTV
Assim, sem lentidão ou preguiça, o governo nacional soube ler as particularidades deste momento e, na abertura das sessões ordinárias do Congresso da Nação, o presidente Mauricio Macri afirmou que o aborto é um debate adiado que “como sociedade devemos fazer”. Desta maneira, foi habilitada a discussão em um espaço que até agora estava proibido.
Com a assinatura de 72 deputadas e deputados, em 6 de março foi apresentado, pela sétima vez no Congresso Nacional, o projeto de lei de aborto elaborado pela Campanha, que promove a despenalização e legalização desta prática considerada, pelo marco legal vigente, um crime.
Em 10 de abril começaram as reuniões informativas em comissões onde diferentes pessoas (desde pesquisadoras e pesquisadores, profissionais da saúde, ativistas, personalidades da cultura, até coordenadores/as das ONGs autodenominadas “pró-vida”) apresentaram argumentos a favor e contra a despenalização e legalização do aborto. Estas reuniões, celebradas às terças e quintas-feiras, duraram até o fim de maio e nesta quarta-feira, 13 de junho, o Congresso vai apreciar a medida.
Reivindicação histórica
A reivindicação pelo aborto legal é uma demanda histórica do movimento feminista que, pela primeira vez, e devido à insistência nas ruas, nas redes sociais e em alguns meios de comunicação, cruzou as margens nas quais estava confinada em pelo menos dois sentidos.
Por um lado, e como mencionei anteriormente, nos aspectos relacionados ao debate parlamentar até então negado. Por outro lado, esse limite foi ultrapassado no sentido de se poder falar sobre isso: aquilo que era segredo explodiu a plenos pulmões nas ruas, nos pontos de ônibus, nas escolas, nas reuniões familiares, nas praças e, agora também, no Congresso.
Quero ressaltar a importância da insistência. Parece-me fundamental dizê-lo uma e outra vez: sem a mobilização feminista este momento histórico não poderia ser imaginado.
O que acontece hoje é resultado de uma genealogia de lutas feministas que já tem pelo menos 30 anos.
Esta urgência de ações coletivas se nacionalizou em 2005 quando surgiu a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Ao longo destes anos, e mediante uma diversidade de estratégias, as feministas centralizadas na Campanha instalaram o debate em diferentes âmbitos, apostando não só em avançar no debate legal do aborto, mas também no que chamaram de “despenalização social”: tirar o aborto do lugar de estigma e silêncio, defini-lo como uma questão de saúde pública e de direitos, de autonomia, de soberania sobre o corpo.
Ação direta
Desde este espaço, em 2012 um grupo de coletivos que realizavam acompanhamentos de mulheres que abortam com medicamentos integram o grupo Socorristas em Rede (feministas que abortamos). O socorrismo vai um passo além do debate legislativo, é ação direta que põe o corpo na urgência do aborto. No meu entender, trata-se de uma ação coletiva de tomar as armas: consiste em dar informação sobre os usos seguros de medicamento para abortar e gerar uma diversidade de estratégias de acompanhamento das decisões das mulheres e pessoas com capacidade de gestar. Essa ação está determinada pelos corpos, emoções e paixões colocadas em jogo. As mulheres que vão às socorristas põem em ato a potência de seus desejos, de suas decisões, de seus corpos. Mas não são as únicas. As socorristas também o fazem quando acompanham essas mulheres rebeldes que tomam na marra os direitos negados.
As reuniões informativas realizadas na Câmera de deputados e deputadas desde 10 de abril mostram como o feminismo, além de empurrar o debate para dentro do Congresso, tem elaborado uma série de argumentos com grande solidez e respaldo científico para configurar o aborto como um problema público ao qual o Estado deve dar resposta.
As intervenções de quem se pronunciou a favor, desde diferentes pontos de vista, de áreas temáticas e profissionais, dão conta de que o aborto tem que ser despenalizado e legalizado. Fica claro — ao escutá-los — que se trata de um problema de saúde, de uma questão de autonomia e soberania sobre o próprio corpo e de uma questão de direitos das mulheres e pessoas com capacidade de gestar.
Mas esses limites também se expandem e geram outra série de argumentos e sentidos sobre o aborto, assentados no desejo, na rebeldia aos mandatos, na resistência às maternidades forçadas e impostas por uma ordem simbólica que consagra e sacraliza a maternidade.
Em resumo, o feminismo apresenta novos relatos sobre as práticas e as experiências de abortar e a aprovação da despenalização e legalização do aborto condensa duas questões substantivas. Em primeiro lugar, mediante a sanção da lei, o Estado define como um direito uma prática que tem sido considerada como um crime. Em segundo lugar, a lei constrói uma narrativa estatal que legitima a prática das pessoas que abortam e que não estigmatize os desejos e decisões reprodutivas e não reprodutivas das mulheres e outras corporalidades com capacidade de gestar. A revolução já começou, é feminista e é irreversível.
*Socióloga feminista, estudante do Instituto Patagónico de Estudios de Humanidades e Ciências Sociais (Ipehcs) – Universidad Nacional do Comahue (UNCO).
** Publicado originalmente em [8300 Web]. Tradução: Diálogos do Sul