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O macho branco europeu, com sua cultura, se autointitulou o modelo mundial, diz Sueli Carneiro

Fernanda Pompeu

Tradução:

Entrevista com Sueli Carneiro, filosofa e ativista do movimento de mulheres negras.

Fernanda Pompeu*
Não é que a fila anda? Sueli Carneiro, filosofa e ativista do movimento de mulheres negras, foi uma das ganhadoras do Prêmio Itaú Cultural 30 Anos, neste 2017. Abaixo você pode ler uma entrevista dada por ela para mim em 2010. Foi originalmente publicada no livro Mulheres Fazendo Pazes, editado pela Associação Mulheres pela Paz. Apesar da passagem do tempo, as questões seguem atuais e a clareza da expressão de Sueli irretocável. Aproveite

A Entrevista

Sueli Carneiro1A filosofa negra Sueli Carneiro é uma das mais importantes intelectuais brasileiras. Sua expertise é a questão racial no país. Também é grande conhecedora da cultura e religiosidade afro-brasileiras. É uma das fundadoras do Geledés – Instituto da Mulher Negra, tradicional ONG de ativistas negras com sede na cidade de São Paulo e referência nacional.
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Diversidade é uma palavra que caiu no gosto popular. Afinal, o que é diversidade?

Sueli Carneiro: O conceito de diversidade tem tido múltiplos usos e abusos na nossa tradição cultural. Não é um conceito do qual eu goste muito, porque historicamente ele se presta a nivelar contradições sociais de natureza, alcance e magnitude distintos. Na prática, diversidade se transforma em uma lista de lavanderia: negro, indígena, mulher, gay, idoso, pessoa com deficiência. É um conceito que descontextualiza as diferenças socialmente construídas, pois as trata como ambivalentes. No entanto, há questões estruturais na conformação das desigualdades.

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Trocando em miúdos?

Sueli Carneiro: Por exemplo, a subjugação da mulher é um fato milenar e internacional. A opressão do gênero feminino é estruturante das desigualdades sociais. Ela afeta no mínimo metade da população do mundo. Se você pegar a questão racial, encontra outro eixo estruturador das desigualdades. No Brasil, o negro foi usado para construir a acumulação primitiva do capital. Foi usado por meio da escravidão, para construir a riqueza nacional. Ou seja, riqueza amparada no processo de opressão. O militante negro Edson Cardoso costuma dizer: Em nenhum momento da história, os gays foram arrancados em massa do seu habitat para servir de força de trabalho escrava. Já para metade da população brasileira o processo foi esse. Essa desigualdade estrutural constrói dois Brasis, pois o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano dos brancos é parecido com o da Bélgica, e o IDH dos negros é inferior ao de muitos países africanos, por exemplo, o da África do Sul. Em resumo, a magnitude, a natureza e o impacto social de determinadas diferenças são radicalmente distintos de outras. O que não significa que as outras não sejam importantes. É claro que todas as desigualdades precisam ser sanadas. Mas para resolvê-las é necessário mensurar e contextualizar.

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As empresas têm incluído o item diversidade no seu menu de responsabilidade social?

Sueli Carneiro: Em termos. Observando, dialogando ou monitorando o comportamento da maioria das empresas, a gente percebe que uma empresa incluiu uma pessoa com deficiência e acha que fez a lição de casa. Grande parte das empresas brasileiras não usa o quesito cor. Ela não declara quantos negros estão em seus quadros. Justifica dizendo que o quesito cor é discriminatório. Mas no fundo esse expediente serve para escamotear o número mínimo de empregados negros fora das funções básicas. Às vezes, a empresa não tem um negro sequer fora da cozinha, da portaria ou da garagem.

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E no mundo da publicidade?

Sueli Carneiro: A publicidade se comporta de maneira similar ao mundo empresarial. A propaganda põe um negro e um japonês no meio de uma multidão de brancos e tudo resolvido. Clientes e publicitários acreditam que um indivíduo negro é suficiente para representar cinquenta por cento da população. E, se pôs o negro, põe o oriental – que representa um por cento dos brasileiros. O problema é que para contemplar a diversidade seria necessário pensar com menos preguiça e desconstruir a hierarquia social fundamentada em raça, gênero e outras discriminações.

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Explique melhor

Sueli Carneiro: O que aconteceu na história do Ocidente, a partir do século 16, foi que os europeus se auto intitularam o modelo da humanidade. Notadamente o macho branco europeu. Eles se instituíram ser universal, isto é, parâmetro pelo qual todos os demais seres humanos seriam medidos e avaliados. A cultura europeia, uma cultura particular, se mascarou de universal. Leia-se, cultura superior. Suas formas de conhecimento, suas técnicas, sua religião, sua estética tornaram-se a representação plena do universal humano. Ao se auto proclamar superior, essa cultura determinou que os não brancos – como suas manifestações culturais e religiosas – eram inferiores. É bom não esquecer que a hegemonia ocidental foi conseguida com uso descarado da força. Isto é, por meio da destruição, rebaixamento, desqualificação e todas as culturas e povos não brancos.

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Uma receita que deu em tragédia?

Sueli Carneiro: Foi um processo brutal de colonização. Além de vários genocídios, a colonização destruiu possibilidades de conhecer os saberes dos outros povos. Empobreceu nossa experiência humana, dilapidou nossa experiência civilizatória. Impediu que pudéssemos trocar conhecimentos de maneira igualitária e respeitosa. Então essa é uma dimensão trágica. Fora toda a dominação, há tudo o que perdemos de possibilidades de diálogo e intercâmbio entre grupos humanos de distintas experiências civilizatórias. Mas no Brasil há um viés interessante. Todo o esforço das elites para embranquecer o país, traduzido em violências econômicas e simbólicas, não foi capaz de apagar a força das marcas da resistência cultural negra. Pois é a cultura negra quem dá a identidade nacional. É a negritude que faz o Brasil ser interessante para um europeu ou um americano.

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É a marca negra para além do futebol, da culinária e do Carnaval?

Sueli Carneiro: Exatamente. Tudo de grande excelência no Brasil é eivado de negritude, só que embranquecido. Uma vez eu li uma entrevista do João Gilberto. Ele dizia que, sempre que perguntavam para ele: Que música é essa que você faz? Ele respondia: Eu faço samba. Até que o empresário dele disse: Pare de falar em samba. Daqui para frente o que você faz se chama bossa nova. Desnecessário dizer que a bossa nova tem origem no samba e no jazz americano, que são expressões do patrimônio cultural negro. No mundo inteiro, artistas de vanguarda têm bebido na nascente da cultura negra. Verdade que, na sequência, trata o produto como algo novo e destituído da sua negritude. Novamente, o embranquecimento. É um processo de expropriação, transformação e negação da origem.

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Machado de Assis?

Sueli Carneiro: Pois é. O maior escritor brasileiro é negro. Mas historicamente a cultura branca hegemônica se incumbiu de embranquece-lo. Nós, do movimento negro, vamos nos incumbindo de enegrecê-lo. Houve alguém que chegou a dizer, se não me engano Olavo Bilac, que Machado de Assis não é um negro, é um grego. Outro exemplo é do Milton Santos (1926-2001). Esse geógrafo negro tem reconhecimento internacional. Recebeu prêmios importantíssimos. Só que, quando se fala de Milton Santos, omitem sua cor. É um expediente para ocultar a negritude desses expoentes. É como se só fosse permitido exaltar o negro nas manifestações folclorizadas e folclorizantes. Essa situação é outra dimensão importante da negação da diversidade. Se o Brasil tivesse reserva moral, disposição e vontade política para respeitar e valorizar a diversidade, as crianças aprenderiam nas escolas a reconhecer a contribuição dos negros brasileiros em todas as áreas.

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O Brasil está preparado para ter um Barack Obama?

Sueli Carneiro: Ainda estamos muito longe de eleger um presidente da República negro. Obama foi resultado de uma construção histórica. O racismo brasileiro foi e é mais nefasto do que o apartheid sul-africano e a segregação americana. Explico: nos Estados Unidos, mesmo num contexto de segregação legal, o Estado americano assegurou que os negros pudessem ter escolas e universidades próprias, hospitais próprios, igrejas próprias. Ou seja, criaram equipamentos sociais, eram de pior qualidade, mas existentes. Semelhante ao apartheid sul-africano. Nos dois países proliferaram líderes políticos, empresários e intelectuais negros. Enquanto no Brasil o abandono social dos negros no pós-abolição foi completo, livres para morrer à míngua nas sarjetas do país, sem trabalho, sem direito à educação, sem moradia, sem liberdade de culto etc.

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Estamos na segunda década do século 21. O Brasil avançou na questão racial?

Sueli Carneiro: Avançamos. A prova disso é a questão racial estar na agenda pública nacional. Sabe por que avançamos? Porque avançou a consciência negra. E por que avançou a consciência negra? Porque avançou o movimento negro. Por outro lado, o debate público acerca da questão racial se faz sem os negros. Mesmo aí o sujeito político negro é mais um ocultado, desqualificado. Parece que ainda estamos no século 19, em um embate entre abolicionistas e escravocratas. Mas, mesmo com todos esses senões, digo que avançamos, sim. Outro ganho maravilhoso para os negros é que a hegemonia branca teve que sair do seu conforto histórico da reiteração da democracia racial. A partir da discussão de cotas, do Estatuto da Igualdade Racial e que tais, foi instaurado um conglomerado midiático, um verdadeiro pelourinho eletrônico contra as ações afirmativas e políticas de promoção da igualdade racial. Por que são contra as cotas raciais nas universidades? Porque a universidade sempre foi um elemento estrutural no processo de reprodução das elites nacionais. Democratizar o acesso à universidade põe em risco iminente essa reprodução.Então, pau nas cotas. O lado positivo? Os racistas perderam a máscara.

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Qual a importância do 20 de Novembro – Dia Nacional da Consciência Negra?

Sueli Carneiro: Há heróis e fatos históricos mortos e esquecidos. E há heróis e fatos históricos vivos e renascidos pela memória popular. É o caso da saga de Palmares e seu líder Zumbi. O 20 de Novembro, que foi uma data proposta pelo intelectual negro Oliveira Silveira (1941-2009), homenageia um herói, o Zumbi dos Palmares, que segue sendo festejado. Ele é um símbolo de resistência. É reconhecido pela maior parte dos brasileiros. Em torno dessa data, tem atividades no país todo, se mobilizam prefeituras, escolas. Em qualquer estado do país tem alguma atividade, por mais modesta que seja. É o único feriado, fora o de Nossa Senhora Aparecida – que, aliás, é preta – com poder de mobilização.

 
*Colaboradora de Diálogos do Sul


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Fernanda Pompeu

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