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A difícil reinvenção da democracia frente ao fascismo social

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Entrevista especial com Boaventura de Sousa Santos

Ricardo Machado*
boaventura-de-sousa-santosA democracia tornou-se uma daquelas palavras vazias de sentido. Como é usada para descrever tudo aquilo que não é um regime político autoritário, tendemos a não ver os tons de cinza entre o branco e negro. “Para uns, a democracia realmente existente está de tal modo descaracterizada que só por inércia ou distração se pode considerar como tal. Vivemos em regimes autoritários que se disfarçam com um verniz democrático”, aponta Boaventura de Sousa Santos, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Vivemos em democracias de baixa ou muito baixa intensidade que convivem com regimes sociais fascistas. Daí o meu diagnóstico de que vivemos em sociedades que são politicamente democráticas mas socialmente fascistas”, pontua.
O debate de Boaventura se insere na recente publicação de seu livro A difícil democracia. Reinventar as esquerdas (São Paulo: Boitempo, 2016). Para o sociólogo, as esquerdas precisam fazer uma profunda autocrítica e superar um modelo político baseado em conciliações com o grande capital. “Enquanto a esquerda não voltar a ter no horizonte uma alternativa pós-capitalista, chamemos-lhe socialismo ou outra coisa, o seu declínio continuará, dado que a direita é quem sabe gerir este capitalismo”, crítica. Contudo, Boaventura aposta na radicalização da democracia como alternativa para as crises contemporâneas. “Para o Estado, ou algo que o substitua politicamente, poder agir contra o neoliberalismo, terá de passar por uma profunda transformação democrática”. E pondera, “a esquerda não deve aceitar seu poder na condição de esquecer ou renunciar ao que é.”
Boaventura de Sousa Santos é doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973), além de professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e distinguished legal scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também global legal scholar da Universidade de Warwick e professor visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres. É diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. De sua vasta obra, destacamos Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos (São Paulo: Cortez Editora, 2013), A cor do tempo quando foge: uma história do presente – crônicas 1986-2013 (São Paulo: Cortez Editora, 2014), O direito dos oprimidos (2014) e A justiça popular em Cabo Verde (São Paulo: Cortez Editora, 2015).
Confira a entrevista.
Parafraseando a pergunta que abre o prefácio do seu livro A difícil democracia. Reinventar as esquerdas (2016), para onde vai a democracia?

Boaventura de Sousa Santos – O ideal democrático continua a captar a imaginação dos que aspiram a uma sociedade que combine a liberdade com a justiça social, mas na prática a democracia está cada vez mais longe deste ideal. Entre as opiniões que abordam este problema a partir da esquerda, há duas posições principais. Para uns, a democracia realmente existente está de tal modo descaracterizada que só por inércia ou distração se pode considerar como tal. Vivemos em regimes autoritários que se disfarçam com um verniz democrático. É, por exemplo, a posição de Alain Badiou. Para outros, entre os quais me incluo, vivemos em democracias de baixa ou muito baixa intensidade que convivem com regimes sociais fascistas. Daí o meu diagnóstico de que vivemos em sociedades que são politicamente democráticas mas socialmente fascistas.

Ambas as posições partem da mesma ideia de que a democracia liberal, que sempre conviveu com alguma tensão produtiva com o capitalismo, sobretudo desde a segunda guerra mundial, está a deixar desaparecer essa tensão e a acomodar-se cada vez mais às exigências do capitalismo. Estas, como se sabe, pressupõem que a acumulação de capital e a sua rentabilidade devem prevalecer sobre qualquer outro objetivo. A diferença entre as duas posições não resulta apenas de diagnósticos diferentes. Reside também no impacto das biografias dos autores que as propõem. Eu, por exemplo, vivi parte da minha idade adulta em Portugal numa ditadura, o Estado Novo de Oliveira Salazar, e tenho vivido intensamente o período posterior à Revolução dos Cravos em 1974. Os brasileiros e as brasileiras de mais idade viveram uma situação semelhante marcada pelo regresso da democracia em 1985.

Para mim, há diferenças significativas entre uma ditadura e uma democracia de baixa intensidade. Mesmo assim penso que a democracia liberal, para sobreviver à agressividade do capital global dos dias de hoje e ao modo como ele arrasta consigo novas formas de colonialismo e de patriarcado, terá de ser refundada a curto prazo, para o que se necessita de uma Assembleia Constituinte originária. Esta necessidade é hoje cada vez mais evidente quando vemos o que está a suceder no país que sempre se auto designou como a democracia mais antiga e mais consolidada da nossa época, os EUA. É cada vez mais evidente que a fraude eleitoral é constitutiva desse país, tal como o é a influência do dinheiro no processo político, algo que está para além da corrupção porque está totalmente legalizado. O fenômeno Donald Trump é apenas um sintoma de algo muito mais profundo e mais perigoso.

Sem uma profunda refundação da democracia, poderemos chegar à conclusão a curto prazo de que não é possível corrigir por via democrática as distorções cada vez mais grotescas dos processos democráticos reais, como, por exemplo, o golpe parlamentar-midiático-judicial no Brasil que fez descer a qualidade da democracia brasileira de maneira dramática. Se era antes de baixa intensidade, é agora de baixíssima intensidade.

Quando se chegar à conclusão de que por via pacífica e democrática não é possível corrigir tais distorções, teremos chegado ao grau zero da democracia. Espero vivamente que tal nunca aconteça, mas isto tem mais a ver com o meu otimismo da vontade do que com o meu pessimismo da razão.

Como a União Europeia entende o conceito de democracia?

Boaventura de Sousa Santos – A União Europeia – UE enquanto sistema político e institucional é uma democracia de baixíssima intensidade. Primeiro, há um déficit democrático constitutivo na medida em que os órgãos com mais poder (Comissão, Eurogrupo, Banco Central Europeu) não foram eleitos pelos cidadãos europeus, nem estão sob qualquer controle democrático. O Parlamento Europeu, com os seus limitados poderes, é a outra face desta moeda. Só muito restritivamente se pode falar de cidadania europeia. Segundo, a UE é hoje um antro de neoliberalismo (que o digam os países latino-americanos que têm estado em negociações para tratados de livre comércio com a Europa) frontalmente hostil ao que foi a democracia de mais alta intensidade (mais equilíbrio entre liberdade e igualdade social) da Europa no pós-guerra e até o ano 2000. Se tivéssemos algumas dúvidas, elas seriam dissipadas ao vermos como o presidente da Comissão que conduziu a viragem neoliberal da Europa, o português [José Manuel] Durão Barroso, foi nomeado para presidente da Goldman Sachs quando terminou o seu mandato. Como sabemos, a Goldman Sachs é o patrão mundial do neoliberalismo a que ingenuamente chamamos “mercados”. Terceiro, a crise financeira de 2008, ao repercutir na Europa, fez com que se gerasse uma pulsão anti democrática nas relações entre os países mais ricos da UE e os mais pobres. As exigências do capitalismo neoliberal vieram dar azo ao colonialismo interno na Europa, o que, não sendo novo, assumiu agora uma forma mais chocante por ter lugar no seio de uma comunidade política que se diz assentar na igualdade política dos parceiros.

Não devemos confundir a democracia da instituição UE com as democracias existentes a nível nacional nos países que a compõem. Aqui as diferenças são enormes e a vigência do neoliberalismo é mais matizada. A nível nacional vigora ainda em muitos países o modelo da social-democracia, ainda que muito descaracterizado. Entendo por social-democracia o modelo que vigorou na Europa, sobretudo depois de 1945, assente numa combinação entre altos níveis de produtividade e altos níveis de proteção social, com base numa regulação forte do capitalismo, uma tributação progressiva, nacionalização de setores estratégicos, direitos econômicos e sociais universais que permitiram às famílias trabalhadoras, pela primeira vez na história do capitalismo, planejarem a sua vida (mandar os filhos à universidade, comprar casa, pensar numa aposentadoria digna). Este modelo continua a vigorar com alguma intensidade nos países nórdicos; assume a forma de economia social de mercado na Alemanha; tem pouca vigência nos países do Leste Europeu; é uma total ruína na Inglaterra e na Grécia; está em sérias dificuldades na França e na Itália; nunca teve um pleno desenvolvimento na Espanha e em Portugal; e tem estado sob ataque por parte das instituições da UE.

De que forma os países europeus periféricos, como Portugal, Espanha e Grécia, se tornaram ameaças àquilo que a União Europeia entende como democracia?

Boaventura de Sousa Santos – É fácil de ver pelo que disse acima. O entendimento autoritário da democracia vigente na UE é de que não há qualquer solidariedade entre os países que a compõem e que só os países ricos da Europa se podem dar ao luxo de se beneficiar da proteção possibilitada pela social-democracia. A crise financeira da Grécia ter-se-ia resolvido muito facilmente se a coesão da UE fosse um valor mais importante que os créditos dos bancos alemães e franceses. Bastava mutualizar a dívida soberana da Grécia, que era coisa pouca comparada com o que veio depois. Portugal e Espanha sofreram o impacto por arrasto da Grécia (especulação financeira abutre do tipo da que se abateu no início do milênio na Argentina).

Como os fatos estão a mostrar, esses países, longe de serem uma ameaça para a democracia europeia, são sua garantia. Se tivesse tido êxito o que a Grécia pretendeu fazer e a UE proibiu, não teríamos o Brexit e o crescimento da extrema direita por toda Europa, uma vertigem política, oxigenada pela eleição de Trump, que põe em causa todos os princípios políticos que orientaram as democracias na Europa no pós-guerra.

Portugal é hoje a experiência política democrática mais brilhante da Europa dos últimos vinte anos. Um governo moderado de esquerda está a tentar mostrar que a vertigem neoliberal é destrutiva para o projeto europeu e para a democracia em geral e que há ainda na UE alguma virtualidade para travar o movimento suicida em que a Europa se deixou enredar. Este governo foi possível devido a uma união das forças de esquerda sem precedentes na história recente do país. Perante o descalabro reacionário que o país viveu entre 2011 e 2015, com um governo revanchista apostado em destruir tudo o que o país tinha conquistado depois de 1974, o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda, que sempre consideraram o Partido Socialista um partido de direita, resolveram dar-lhe apoio parlamentar para tornar possível uma inversão, mesmo que limitada, nas políticas de austeridade. Esta experiência política inédita de unidade das forças políticas de esquerda pode ser um exemplo a ponderar no Brasil neste período difícil que atravessa. O governo português tem estado sempre sob ataque da UE, mas, em face do Brexit, começa a ser reconhecido como uma via possível para salvar o projeto europeu.

Como a lógica colonialista se mantém na perspectiva política da União Europeia?

Boaventura de Sousa Santos – O colonialismo interno na Europa tem uma longa duração histórica, como analisei no meu livro Portugal: Ensaio contra a Autoflagelação (São Paulo: Cortez, 2011). Em tempos mais recentes, a Grécia, Portugal e a Espanha foram autênticos protetorados alemães na medida em que o governo alemão interveio diretamente na política destes países com o objetivo de influenciar os eleitores. Quando a intervenção não foi direta, exerceu-se através da Comissão ou do Banco Central Europeu, liderado por um ex-CEO da Goldman Sachs. Mais do que imposição antidemocrática de disciplina financeira, trata-se de ver estes países com lentes colonialistas, como sejam os estereótipos — inferiores, descuidados, preguiçosos, pouco produtivos — os mesmos que os portugueses e espanhóis usaram para estigmatizar as populações sob o seu domínio colonial. Esta divisão entre um centro europeu e as suas periferias vem desde o século XIV e dura até hoje. A única periferia que conseguiu juntar-se ao centro foi a periferia nórdica. Todas as outras (leste, sul, sudoeste) continuam tão periféricas quanto antes.

Do que se trata o “projeto europeu como ruína”?

Boaventura de Sousa Santos – Desde o seu início, o projeto europeu teve dois impulsos e duas concepções: a do economista [Friedrich] von Hayek, para quem a UE era apenas um mercado comum, e a de [Charles] De Gaulle, para quem a UE era um projeto político destinado a criar uma paz duradoura e manter a Alemanha sob controle. Durante muito tempo parecia tratar-se de duas dimensões do mesmo projeto. Com o tempo a primeira concepção foi-se impondo ainda que a retórica fosse a do projeto político. Isto tornou-se evidente quando, com os novos países candidatos a entrar na UE, pôs-se a questão se se devia dar prioridade ao aprofundamento ou à extensão da UE. A opção foi sempre pela expansão, o que foi um sinal de que a prioridade era afinal o mercado interno e não a criação de uma comunidade política coesa. Os tratados que consolidaram esse mercado, sobretudo o que estabeleceu o euro, têm um recorte neoliberal muito claro, ainda que tal fato tivesse passado despercebido à maioria dos partidos políticos.

A criação da moeda única foi paralela à liberalização dos mercados, o que abria uma porta para os produtos da China, os quais não concorriam com os produtos alemães, mas certamente concorriam com os têxteis portugueses. A partir daí (cerca de 2000) estavam criadas as condições para a estagnação econômica dos países periféricos, o que veio a suceder. Quando a crise da Grécia eclodiu, passou a ser evidente que a coesão política era um verniz que estalava facilmente ante a lógica do mercado e do neoliberalismo. O modo como foi “resolvida” a crise grega (uma diminuição do PIB da ordem dos 25%) mostrou que a partir daí o projeto europeu era uma inércia mantida viva apenas pelo temor do caos do fim do euro.

Bruxelas, sede da UE, passou a ser o centro de uma disciplina financeira cega e autoritária, guiada pela Alemanha e pelos milhares de lobistas neoliberais que pululam como uma praga em redor das instituições (só a Google tem ao seu serviço 600 lobistas). Nenhum europeu comum se identifica com esta ditadura financeira que vai destruindo o que resta das classes médias europeias para alimentar os lucros dos bancos. O Brexit veio mostrar a fragilidade dessa inércia. E já se fala do Frexit, se a extrema direita ganhar as eleições na França, do Austrexit pelas mesmas razões na Áustria. Podem não ocorrer agora, mas se nada for feito para criar uma flexibilidade financeira interna que tome em conta o fato de estarmos perante economias nacionais muito diferentes com a mesma moeda, o euro colapsará e com ele a UE. Isto não quer dizer que outro projeto europeu não possa surgir, mas eu tenho certas dúvidas pelo menos enquanto os ventos continuarem a soprar a favor das bandeiras nacionalistas.

De que maneira sociedades politicamente democráticas se transformam, ao mesmo tempo, em sociedades socialmente fascistas?

Boaventura de Sousa Santos – As situações de fascismo social ocorrem sempre que pessoas ou grupos sociais estão à mercê das decisões unilaterais daqueles que têm poder sobre eles sem se poderem defender em termos práticos invocando direitos que efetivamente os defendem. Exemplos de fascismo social: quando uma família tem comida para dar aos filhos hoje mas não sabe se a terá amanhã; quando um trabalhador desempregado se vê na contingência de ter de aceitar as condições ilegais que o patrão lhe impõe para poder matar a fome da família; quando uma mulher é violada a caminho de casa ou é assassinada em casa pelo companheiro; quando os povos indígenas são expulsos das suas terras ou assassinados impunemente por capangas ao serviço dos agro negociantes e latifundiários; quando os jovens negros são vítimas de racismo e de brutalidade policial nas periferias das cidades. Em todos esses casos estou a referir situações em que as vítimas são formalmente cidadãos, mas não têm realisticamente qualquer possibilidade de invocar eficazmente direitos de cidadania a seu favor. A situação agrava-se quando se trata de imigrantes, refugiados etc. Por exemplo, a situação de trabalho escravo de milhares de imigrantes bolivianos nas fábricas de São Paulo. As vítimas de fascismo social não são consideradas plenamente humanas por quem impunemente as pode agredir ou explorar.

Mas o fascismo não tem apenas a face violenta. Tem também a face benevolente da filantropia. Na filantropia quem dá não tem dever de dar e quem recebe não tem direito de receber. Em tempos recentes, a classe alta e média alta do Brasil se ressentiu muito porque as empregadas domésticas ou os motoristas já não precisavam dos favores dos patrões para comprar um computador para os filhos ou fazer um curso. Ressentiam-se com o fato de os seus subordinados se terem libertado do fascismo social. Quanto mais vasto é o número dos que vivem em fascismo social, menor é a intensidade da democracia.

O que pode explicar o declínio das esquerdas na Europa e na América do Sul?

Boaventura de Sousa Santos – O fato de terem aceitado que o capitalismo era eterno, que o neoliberalismo era uma fatalidade e que não havia qualquer alternativa pós-capitalista. A queda do Muro de Berlim significou tanto a queda do socialismo de Estado como da social-democracia, que se julgou, na altura, triunfante. Pelo contrário, a partir daí o capitalismo deixou de ter medo da concorrência, e o ataque aos direitos sociais e econômicos acentuou-se e tem vindo a acentuar-se, na Europa e em todo o mundo.

Enquanto a esquerda não voltar a ter no horizonte uma alternativa pós-capitalista, chamemos-lhe socialismo ou outra coisa, o seu declínio continuará, dado que a direita é quem sabe gerir este capitalismo. Na América Latina, o avanço da esquerda na primeira década do milênio pareceu desmentir esta tendência histórica. Foi possível devido a uma conjuntura excepcional que não se repetirá nos anos mais próximos: a subida dos preços dos produtos primários, agrícolas e minérios, devido à explosão da China. Este fato, ao mesmo tempo que remetia estes países para a continuidade com o colonialismo (fornecedores de matérias-primas, e que agora chegou a provocar a desindustrialização do Brasil), permitiu aos governos de esquerda efetuar uma impressionante redistribuição de riqueza sem alterar o modelo de desenvolvimento ou o sistema político. No momento em que tal deixou de ser possível, o capitalismo quis manter a sua rentabilidade a todo o custo e conseguiu o seu objetivo facilmente precisamente porque não tinha havido mudança no sistema político (e na prática política), nem reforma tributária, bancária ou dos media.

Como o senhor vê o caso brasileiro, em que as esquerdas sofreram um profundo revés nas eleições para as principais prefeituras do país?

Boaventura de Sousa Santos – Revés nas eleições municipais foi uma consequência direta do processo político iniciado com o impedimento da presidente Dilma Rousseff. Foi um processo bem orquestrado de demonização do PT que aproveitou ao máximo os erros de governo do partido, apoiado por uma impressionante manipulação das grandes mídias e a atuação cúmplice do sistema judicial que incluiu violações flagrantes da legalidade. As forças do grande capital não tiveram paciência para esperar mais quatro anos e contaram com um apoio muito mais importante do que se pensa do imperialismo norte-americano. Um dia se saberá até que ponto essa intervenção foi decisiva. O Brasil era uma peça importante nos BRICS e esta aliança era importante para projetar a posição da China, o grande inimigo e grande credor dos EUA. Era preciso neutralizar o Brasil como se tem feito com a Rússia. Só assim se poderá isolar a China que em 2030 pode ser já a primeira potência econômica mundial.

Numa sociedade racista e oligárquica como é a brasileira o preconceito classista é sempre misturado com o preconceito racista e sexista. O governo Temer mostrou isso à sociedade e as políticas que têm vindo a ser propostas confirmam as mais pessimistas previsões. Mas o racismo e o sexismo não são infelizmente um monopólio da direita. O modo como no governo Dilma foram tratados os povos indígenas sempre que se atravessaram no caminho do agronegócio foi chocante.

Perante esta demonização, o PT pouco podia fazer a curto prazo a menos que tivesse decidido fazer uma profunda refundação política. Isso implicava rupturas e não era possível dada a decisão de o ex-presidente Lula se manter como garante da política de esquerda. Uma decisão totalmente compreensível, sobretudo por todos acreditarmos demasiado nas armadilhas das sondagens que fazem dele o político mais popular do Brasil precisamente para o manter no ativo e assim impedir uma renovação profunda das forças de esquerda. Tal como estão as coisas parece que as forças de direita poderão liquidar politicamente Lula como quiserem e quando quiserem. É este o estado a que chegou grande parte da esquerda brasileira.

Não é um paradoxo, pelo menos na experiência brasileira, a esquerda conquistar o poder e adotar práticas típicas de forças políticas mais conservadoras e alinhadas ao pensamento de direita?

Boaventura de Sousa Santos – É, mas explica-se pelas razões acima. Enquanto não houver uma reforma do sistema político e o poder do dinheiro e dos grandes media for retirado do processo eleitoral, a esquerda só pode governar em aliança com a direita e enquanto isso lhe convier.

O que sobrou dos ideais de esquerda do século XX? A igualdade continua sendo o grande ideal de esquerda?

Boaventura de Sousa Santos – Os ideais da esquerda do século XX continuam vivos porque afinal vêm do final do século XVIII e não são mais que os grandes objetivos da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. O problema está na vigência dos pressupostos e na eficácia dos processos que presidiram as lutas para que esses valores tivessem alguma realização, o que para uns só era possível numa sociedade socialista e para outros numa profunda regulação do capitalismo. Tais pressupostos e processos assentaram na centralidade do Estado e na organização nacional do capitalismo. Foi assim possível fazer do Estado um agente de intervenções não mercantis (nacionalizações, e políticas sociais no domínio da saúde, educação e previdência). Ora, hoje o capitalismo é global e está a pôr o Estado na sua estrita dependência. O Estado é agora um agente de intervenções mercantis (privatizações, parcerias público-privadas, terceirização). Tendo sido “proibido” pelo capitalismo financeiro global de tributar os ricos, tem de se endividar nos mercados financeiros onde não tem nenhum privilégio soberano (o cinismo da designação “dívida soberana”). Para o Estado, ou algo que o substitua politicamente, poder agir contra o neoliberalismo terá de passar por uma profunda transformação democrática.

Falta autocrítica à esquerda?

Boaventura de Sousa Santos – A autocrítica evoca processos menos democráticos, mas tem de ser feita de modo democrático e ir ao mais fundo possível. Tenho escrito muito sobre este tema. Eis algumas ideias para o debate. Primeiro, nas atuais circunstâncias, a esquerda será sempre uma contracorrente que não pode governar como a direita governa nem fazer alianças contra natura com a direita. Se tiver de o fazer deve renunciar a ser governo. Por exemplo, pode voltar a centrar-se no governo municipal onde é possível uma política de proximidade e onde o impacto no quotidiano das pessoas é decisivo. Segundo, a democracia representativa perdeu a luta contra o capitalismo e não tem futuro se não for complementada com genuína democracia participativa a todos os níveis de governação. Esta complementaridade entre democracia representativa e democracia participativa deve estar presente nos partidos políticos. Só assim se poderá decidir participativamente quais são as políticas e quem são os candidatos.

Terceiro, os partidos deixam de ter o monopólio da representação política de interesses e os cidadãos organizados devem poder participar. Quarto, sempre que tiver oportunidade a esquerda deve criar ou apoiar a criação de zonas livres do capitalismo neoliberal por mais circunscrito que seja o seu âmbito. Funcionarão como pedagogia de um futuro pós-capitalista, a tal alternativa sem a qual a esquerda perde o sentido de existir. Quinto, nas próximas décadas, e dada a escandalosa concentração de riqueza e a alarmante destruição da natureza, a política só em parte se vai exercer nas instituições democráticas; a outra parte será extrainstitucional pacífica (ações diretas, greves, marchas, protestos, ocupações). A esquerda vai ter de saber estar nos dois lados sem contradição e maximizar os contributos de cada tipo de prática política para a democratização da sociedade. Sexto, nada disso será possível sem uma profunda transformação do sistema judicial, político, de comunicação social e tributário. É preciso isolar o mercado das ideias políticas do mercado dos valores econômicos. A esquerda não deve aceitar ser poder na condição de esquecer ou renunciar ao que é. Deve construir uma alternativa pós-capitalista apostando em que o capitalismo, como qualquer outro fato histórico, teve um princípio e há de ter um fim.

Estaria nas ocupações secundaristas o embrião de uma nova esquerda?

Boaventura de Sousa Santos – Estive reunido com alguns deles recentemente em Brasília. São jovens maravilhosos precisamente porque não se deixam convencer pela ideia de que não há alternativa às políticas em curso. Sempre mantive que os jovens nunca estão despolitizados. Apenas não se interessam pelo tipo de política que tem vindo a dominar. A prova está aí mesmo. Em vários países do mundo estamos a assistir a um novo tipo de movimento estudantil no Chile, México, Índia, África do Sul, Inglaterra e agora também no Brasil. É difícil de prever como evoluirá. Uma coisa é certa, ele mostra que a política não morrerá e as alternativas não deixarão de estar nos horizontes e sonhos dos mais jovens enquanto vivermos em sociedades tão repugnantemente injustas, tão destrutivas da natureza e tão mediocremente democráticas como aquelas em que vivemos. 

Original da Revista do Instituto Humanitas Unisinos


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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