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Os marines do século XXI

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Em meados de maio, durante apresentação de meu livro mais recente, falava da maneira como os meios de comunicação, fazendo uso da “pós verdade”, geram cenários de conflito e dão diferentes interpretações de acordo com os interesses imperiais.

Sérgio Rodriguez Gelfenstein*
Mídia tóxica3Aqui mostro o afã de políticos oligárquicos associados com os poderes transnacionais em manipular os desejos da cidadania em favor de obscuros benefícios de grupos que se mantêm à sombra e que são os verdadeiros usufrutuários das ações derivadas das situações criadas. Reviso a imprensa e encontro, por exemplo, essas três notícias:

  1. “Os agentes policiais utilizaram armas de fogo na Esplanada dos Ministérios para dispersar manifestantes. Pelo menos 49 pessoas ficaram feridas nesta quarta-feira (…), por receber disparos da polícia, informaram os meios locais. Os manifestantes estavam na Esplanada dos Ministérios num movimento de protesto (…) quando os policiais começaram a disparar contra eles. Meios locais dizem que os manifestantes quebraram janelas e atacaram os edifícios na Esplanada. O presidente ordenou nesta quarta-feira enviar as Forças Federais às ruas (…) durante uma semana. Segundo decreto presidencial ficou autorizado a utilização das Forças Armadas para garantir a lei e a ordem no Distrito Federal no período de 24 a 31 de maio de 2017. Os manifestantes marcharam em direção ao Palácio presidencial para exigir a renúncia do presidente e exigir eleições diretas imediatas, mas a polícia os dispersou com bombas de gás lacrimogêneo”. 
  2. “Uma das promessas de campanha (…) foi não convocar de novo a Lei Antiterrorista. Porém, depois dos sete caminhões incendiados à noite de ontem, o Ministério Público decidiu adotar a polêmica medida para investigar os fatos. A informação foi confirmada pelo governador da província (…). Ontem, sete caminhões foram queimados, (…) um dos veículos era da empresa Transcol, que transportava gás propano e butano. No local estenderam uma faixa que dizia: “Basta de repressão e justiça para nossa líder, liberdade para os presos políticos. Cartazes faziam alusão a três polêmicos casos de violência: a estudante Fabíola Antiqueo Toro, que perdeu o olho esquerdo pelo impacto de uma bomba de gás lacrimogêneo lançada pela polícia; Lorenza Cayuhán, que encarcerada deu à luz sua filha Sayén; e Macarena Valdés, morta em circunstâncias estranhas enquanto liderava a oposição à instalação um uma hidrelétrica em Tranquil”. 
  3. “O governo (…) decretou toque de recolher e mantém militarizada a comunidade de Buenaventura, contra os protestos e distúrbios desencadeados desde sexta-feira. Depois de reunir o Conselho de Segurança em Buenaventura as autoridades confirmaram que o toque de recolher, entre as 6 da tarde e às 6 da manhã (hora local) será mantido por tempo indefinido com o objetivo de evitar saques e preservar a ordem pública. A governadora (…) indicou que a segurança em Buenaventura foi reforçada com 1.500 policiais e mais de 700 militares, enquanto que o ministro do Meio Ambiente (…) disse que o porto (…) está sob controle. …O funcionário designado para o diálogo com os habitantes da região reiterou que diante dessa situação -que levou a uma greve geral durante seis dias- é necessário uma mesa de negociação que permita resolver os problemas. Por essas ações, que o presidente qualificou de vandálicas, resultaram 11 policiais feridos e 80 pessoas detidas, suspeitas de envolvimento com os saques, além de perdas materiais que estimam equivale a 1 milhão e 300 mil dólares. Os habitantes de Buenaventura denunciam que no lugar de atenção do Executivo recebem repressão do Esquadrão Móvel Anti-distúrbio (Esmad). Os agentes do Esmad utilizaram gás lacrimogêneo para dispersar os manifestantes que protestavam apesar de estarem no local pessoas idosas e crianças. “A situação transbordou e é necessário uma mediação internacional que sirva como intermediário entre a força pública e a comunidade”, assegurou uma organização social em um comunicado em que solicita uma ação urgente para resolver a situação de maneira que não haja mais repressão.

O curioso destas informações é que nenhuma delas se refere a Venezuela como se poderia pensar. Elas pertencem ao Brasil, Chile e Colômbia, países governados pela direita. Também é notável que tais informações passaram como que inadvertidas para os meios transnacionais e inclusive para a grande mídia dos países onde ocorreram esses fatos, que preferem informar sobre Venezuela em suas primeiras páginas. Tampouco surpreende que para a OEA, tais acontecimentos não têm a importância necessária para convocar uma reunião de consulta ou sequer tão somente para motivar uma declaração do secretário geral. O governo dos Estados Unidos, por sua vez, no caso do Brasil, limitou-se a expressar sua preocupação pelos fatos, “motivados pelas denúncias de corrupção” que envolvem o presidente de fato Michel Temer. Michael Fitzpatrick, subsecretário adjunto de Estado para América do Sul (inclui os três países mencionados) expressou que “nós nos preocupamos pela violência, pedimos a calma, mas temos fé nas instituições democráticas do Brasil”.
É evidente o impacto nocivo gerado pelo uso interessado dos conceitos quando por exemplo chama de ditadura o governo do presidente eleito da Venezuela, enquanto ao contrário qualifica o governante de fato do Brasil, justifica como normal que nesse país a polícia use armas de fogo para dispersar manifestantes que não agrediam a autoridade, ao mesmo tempo que qualifica como repressão a resposta com armas não letais no marco da lei da polícia venezuelana para repelir ataques diretos de grupos terroristas que utilizam indumentária e armamento de combate em suas ações políticas. Da mesma maneira, a militarização e o toque de recolher em uma importante região da Colômbia é minimizada diante da generalização e sobreposição da violência na Venezuela, numa situação que afeta só a 19 dos 333 municípios do país, precisamente aqueles que são governados pela oposição.
Enquanto qualificam de descontrole e destruição causados por manifestantes no Chile ou Brasil, assumem como válido que na Venezuela os ativistas opositores violentos apliquem o terror cotidiano atacando instalações públicas, inclusive hospitais e escolas ou impeçam durante semanas o livre acesso da cidadania a seu trabalho ou centros de ensino. Na Colômbia se dá como legítimo que as forças da ordem atuem para evitar saques e manter a ordem pública, enquanto que na Venezuela esse objetivo é demonizado pelos meios. Da mesma maneira se aceita que na Colômbia seja válida buscar a via do diálogo e negociação, da mesma maneira que na Venezuela o caminho pacífico é rechaçado e manejado como não aceitável pelos meios de comunicação.
A poderosa bomba que significa a fusão da “pós verdade” como referência falsa da realidade com a massificação das redes sociais e meios de comunicação alheios à qualquer responsabilidade social com a verdade, está criando um instrumento muito perigoso sobre o que se fundamentam as decisões políticas. Na atualidade, é suficiente emitir um tweet, uma afirmação irresponsável no facebook, publicar uma foto em outro contexto, lugar e data para que qualquer rumor se transforme num fato real. A partir disso, os cidadãos que desconhecem a verdade daquilo que escutam, vêem ou lêem, tomam decisões sem fundamento. Pior ainda, dirigentes políticos inescrupulosos valem-se disso para manipular sem o mínimo apego à ética e a necessidade de decência inerente à função pública.
Este é o ambiente propício para a instrumentalização de políticas que submergem os indivíduos numa condição de objeto inconsciente das decisões de outros, geralmente grupos de poder que nunca aparecem mas que são os grandes geradores do caos e os principais ganhadores pela manipulação de milhões de cidadãos. Os meios de comunicação e as redes sociais constituem hoje o que ontem foram os marines ianques: principal ferramenta da intervenção e agressão.
*Original de Barómetro
Ilustrações: Vanderlei dos Santos Catalão (tt Catalão)*


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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