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Atílio Alencar*
Até bem pouco tempo atrás, os temas mais correntes entre nós brasileiros quando se falava no vizinho Uruguai eram ou suas praias paradisíacas para turistas remediados, ou a lembrança amarga da derrota na Copa de 1950, em pleno Maracanã lotado – façanha uruguaia que adiou o sonho brasileiro do primeiro título mundial no futebol. Aqui no Rio Grande do Sul, província famosa por seu bairrismo arraigado e delírios separatistas, um chiste corriqueiro desdenhava o pequeno país (a República Oriental do Uruguai é o segundo menor país da América do Sul), reduzindo-o a uma mera ‘fazenda’ extensiva ao território rio-grandense.
Entretanto, nos anos recentes o tom da conversa mudou substancialmente, em grande parte por conta da chegada ao poder de José Alberto Mujica, ou simplesmente Pepe Mujica para seus simpatizantes. Eleito sob a sigla da Frente Ampla – emaranhado de agrupamentos políticos de esquerda e centro-esquerda do Uruguai -, Pepe demonstra um modo simples e despretensioso no que diz respeito às pompas reservadas ao líder máximo da nação, abrindo mão de luxos como residência oficial e veículos opulentos em suas atividades cotidianas. Num tempo em que a assimetria entre os honorários dos governantes e o salário médio da população é escandalosa, o velho Mujica posa para as fotos todo risonho no volante de um modesto fusquinha, e destina a maior parte do salário presidencial para organizações de combate à pobreza. Sujeito de vida simples e falas memoráveis, sua figura projeta em nosso imaginário a antítese do político corrupto, deslumbrado com o poder e apartado dos populares pelo pressuposto da superioridade incondicional das classes governantes sobre as massas.
É justo e compreensível que Mujica goze atualmente de popularidade global e de uma simpatia quase unânime – mesmo em meios mais reticentes com mudanças sociais, como a grande mídia brasileira – em relação a algumas medidas adotadas em sua gestão. Afinal, a oficialização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a legalização da maconha como política de saúde social substituta à guerra cega contra as drogas – apenas para ficar em duas medidas de dilatação das liberdades individuais no país – são mesmo decisões governamentais que contribuem para consolidar o Uruguai na vanguarda de algumas questões urgentes do século XXI. A repercussão de seus acertos é tanta, que até montagens fotográficas associando o presidente uruguaio com o Papai Noel tem circulado nesse período, exaltando as virtudes do primeiro em contraponto ao engodo publicitário do segundo.
No entanto, há de se ficar atento para um processo bastante comum de esvaziamento político de certas figuras públicas, no que diz respeito às suas aspirações mais transformadoras, em benefício de uma construção caricata que reduz a busca por justiça e igualdade em atos isolados de bondade e abnegação. Com Mandela, principalmente após sua morte, assistimos esse espetáculo em sua forma mais bem-acabada: é mais conveniente (e menos perigoso) para a mídia de massas sustentar a ficção de um líder obstinado, um exemplo de superação individual que manteve-se dentro dos limites do tolerável pelas instituições, do que reconhecer-lhe a radicalidade que desafiou as estruturas profundas do sistema de segregação entre negros e brancos na África do Sul.
Com Mujica, algo parecido pode estar acontecendo.
O próprio presidente do Uruguai reconhece que as medidas levadas a cabo até agora não interferem na estrutura econômica do país, mantendo-se intacta a desigualdade abissal entre ricos e pobres. Mas essa insatisfação histórica é eclipsada pela enxurrada de fotos e reportagens que preferem ver o Pepe da maconha e do fusquinha ao guerrilheiro do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros, o homem que pegou em armas para lutar contra a ditadura em seu país e também contra a lógica e os interesses que a subsidiaram, o jovem idealista que por certo constava nos arquivos da CIA como um terrorista a ser eliminado.
O presidente Mujica eleito pelo povo uruguaio não é mais o revolucionário que comandou a ocupação de uma cidade inteira nos anos 60 e amargou, por isso, mais de uma década na prisão – e nem deveria sê-lo, dados os contextos extremamente distintos. Mas também não cabe na fantasia do ‘bom velhinho’ das analogias natalinas, nem nos artigos que o pretendem absolutamente inofensivo.
Aliás, Pepe Mujica – que é ateu e não acredita em presentes caindo do céu – vem sinalizando com uma regulamentação dos meios midiáticos no Uruguai, um tipo de reforma que há anos vem sendo protelada no Brasil. Já pensaram em como os grandes editoriais podem mudar de ideia sobre a generosidade do velhote frente a tamanho mau-exemplo?
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