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Primeiro voo do Condor

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Darío Pignotti*

Carteira de identidade do Jefferson Cardim de Alencar Osório
Carteira de identidade do Coronel democrático Jefferson Cardim de Alencar Osório

Como embaixador na Argentina, o chanceler Francisco Azeredo da Silveira (1974-1979), o homem de Kissinger na região, supervisionou o sequestro e tortura do coronel democrático Jefferson Cardim Osorio, perpetrado em Buenos Aires em dezembro de 1970. O primeiro rastro do Condor.

O homem de confiança de Henry Kissinger no Brasil durante os anos da coordenação repressiva sul-americana era o chanceler Francisco Azeredo da Silveira (1974-1979), cargo que passou a ocupar depois de ter sido embaixador na Argentina, onde supervisionou o sequestro e tortura do coronel democrático Jefferson Cardim Osorio, perpetrado em 11 de dezembro de 1970. Um crime no qual tomaram parte espiões, militares e diplomatas de três países, articulados em sua guerra suja sem fronteiras, como ficou registrado no informe 001061, com carimbo do Serviço Nacional de Informações brasileiro, encontrado por este jornal em 2011 e entregue à Comissão da Verdade da presidenta Dilma Rousseff (ver facsímile).

“Graças ao rapto de Jefferson, o subserviente Azeredo da Silveira ganhou a confiança dos militares, pondo a embaixada portenha à disposição dos serviços que perseguiam e às vezes eliminavam opositores prófugos”, afirma o ex preso político Jarbas Silva Marques.

“Azeredo autorizou pessoalmente o sequestro, sei bem disso. Jefferson foi meu companheiro na prisão quando o trouxeram da Argentina; tinham-no torturado terrivelmente”, lembra Marques.

“Azeredo estava no aeroporto quando nos tiraram algemados de um carro da Polícia Federal e nos puseram no avião da Força Aérea brasileira para nos mandar de volta”, confirma Jefferson “Jefinho” Lopetegui de Alencar Osorio, sequestrado junto com seu pai, com quem foi deportado clandestinamente para o Rio de Janeiro.

Contrastando com a bibliografia sobre a participação argentina, uruguaia ou chilena na trama delitiva sul-americana é pouco o que se sabe acerca do capítulo brasileiro, devido ao cuidado de seus diplomatas para evitar deixar rastro. Enquanto o Condor chileno assassinava com estardalhaço o general Carlos Prats na porta de seu apartamento portenho em Palermo, originando uma comoção internacional em 1974, os brasileiros operavam com a discrição das serpentes e, por isso, vários crimes, como o do coronel Osorio, só começam a ser esclarecidos 40 anos mais tarde.

A propósito, a morte do ex presidente João Goulart em sua estância de Corrientes, em 1976, que sua família assegura ter sido por envenenamento, talvez um dia, depois da exumação anunciada pelo governo de Dilma, será incluída no inventário de assassinatos invisíveis da ditadura brasileira. “Durante anos a embaixada foi usada para espionar meu pai”, declarou João Vicente Goulart a este jornal, no ano passado.

Roberto Marcelo Levingston

Operação Condor Latuff“Em 12 de dezembro (de 1970, um dia depois do rapto do coronel Osorio) relatei ao embaixador Azeredo da Silveira os fatos ocorridos… e lhe pedi que os transmitisse ao Ministério de Relações Exteriores… Naquele dia já havíamos recebido a informação de que o presidente (Roberto Marcelo) Levingston assinaria o decreto de expulsão”, o que finalmente ocorreu em um prazo surpreendentemente curto, diz o telegrama confidencial elaborado por um adido militar na embaixada da rua Cerrito 1350.

Este trecho do documento secreto é possivelmente o mais revelador, pois confirma oficialmente que o crime de que foi vítima o militar dado de baixa pela ditadura, um dos homens importantes da resistência brasileira, chegou ao conhecimento das mais altas autoridades do Ministério do Exterior em Brasília e foi autorizado, de próprio punho, pelo efêmero ditador Levingston, ex adido militar em Washington.

Depois de uma leitura cuidadosa do despacho secreto de seis páginas, generoso em datas e nomes, fortalece-se a presunção de que o afrancesado Palácio Pereda, sede da representação diplomática, era na realidade uma base de inteligência e logística a partir da qual teriam sido supervisionados vários sequestros e desaparecimentos ocorridos pelo menos até dezembro de 1973, quando Azeredo da Silveira recebeu o convite do eminente presidente militar Geisel (que tomou posse em março de 1974) para assumir a chefia do Palácio Itamaraty, a partir de onde estabeleceu um vínculo umbilical com Henry Kissinger.

Ambos compartilhavam o princípio segundo o qual Washington devia delegar ao Brasil parte de suas responsabilidades na América do Sul, entre elas a desestabilização dos governos democráticos que ainda permaneciam de pé, como o argentino (outros papéis mostram que o sucessor de Azeredo, o embaixador Pinheiro, manteve uma agenda conspiratória de encontros com Videla e Massera em 1975) e aceitar as articulações entre os órgãos de repressão.

Desde o final dos anos 1990, os Estados Unidos liberaram milhares de documentos com informações sensíveis sobre a repressão no Chile e um número apreciável sobre a Argentina, mas evitaram o quanto puderam, desclassificar documentos sobre operações que contaram com o apoio do Palácio Itamaraty por meio de seu Centro de Informações no Exterior, o CIEX, criado em 1966, antecipando-se quase uma década ao surgimento do Condor.

Será que ao manter na sombra os crimes brasileiros Washington preserva a si mesmo e confirma o preceito de que os crimes de Estado nunca chegam a ser esclarecidos?

Apesar da escassez (por ocultamento) de informações, é sensato supor que o Brasil, cuja sociedade com Washington transformou-se em cumplicidade delituosa especialmente a partir de 1970, foi uma peça crucial na engrenagem terrorista e possivelmente tenha sido pioneiro em desenvolver uma estrutura internacional, como ilustra o rapto do coronel Cardim Osorio, no qual se percebe o beneplácito do sistema.

Condor brasileiro

Operação Condor InformeEm sua primeira página, o texto confidencial elaborado pelo adido militar na embaixada indica que o militar dissidente Cardim Osorio, seu filho de 18 anos e um sobrino, partiram em uma balsa, de Colônia, em 11 de dezembro de 1970 às 11:30, e três horas mais tarde já tinham sido detidos por elementos da Coordenação Federal da Polícia Federal em um cais de Buenos Aires, de onde transportaram-nos para a Subdelegacia de Assuntos Estrangeiros para interrogatórios.

O texto indica que dois adidos militares brasileiros – um vindo do Uruguai – foram até a subdelegacia, onde conversaram como bons camaradas de armas com seus pares argentinos e ali analisaram o que fôra dito pelos prisioneiros. (Nas sessões de tortura, claro, ainda  que o documento não o diga.)

Em seguida menciona-se que, depois da deportação do coronel e de seu filho houve outro encontro com o coronel argentino Cáceres, do exército, que demonstrou interesse em dar continuidade à joint venture terrorista. “O coronel Cáceres falou-me da necessidade e da conveniêencia de que mantenhamos um contato mais próximo frente a casos similares… e também conversamos sobre a necessidade de manter segreto com relação ao destino dos elementos embarcados” para o Brasil, diz o telegrama em sua página 6.

“Quando li esses documentos fiquei surpreso, mas não muito, porque eu sabia que por trás de tudo o que nos aconteceu estava o Itamaraty. Senti um frio na barriga porque, pela primeira vez, havia um papel oficial, escrito pelos militares, com o carimbo do SNI, demonstrando que além do Itamaraty, os funcionários mais graduados da ditadura argentina, como o presidente Levingston, tinham estado por trás do sequestro de meu pai e do meu”, conta Jefferson “Jefinho” Osorio Lopeteguy.

O Plano Condor foi instituído em novembro de 1975, no Chile, sob a cobertura de Augusto Pinochet, e os enviados brasileiros a esse conclave não assinaram as atas, alimentando a interpretação de que a “ditabranda” brasileira nunca esteve à vontade nessa confraria. Uma lenda que Jefinho não compartilha.

“Em 1970 a operação Condor ainda não tinha esse nome; não sei como se chamava a organização que nos sequestrou e torturou em Buenos Aires, e que nos seguiu durante anos em Montevidéu. O que eu digo é que quem nos sequestrou era igual ao Condor, porque no Brasil isso já existia. Meu pai sabia disso: em 1970 ele me disse que eles estavam em vários países e que às vezes matavam os exilados, e atiravam os presos no mar dos aviões da Força Aérea. Ele chegou a me falar de tudo isso antes de ser preso.”

*Original de Página 12, Buenos Aires


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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