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Fundamentalismo é o avesso da democracia

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

O caso Feliciano e seus desdobramentos políticos tem suscitado comentários, alguns não livres de paixão ou de pré concepção e muito pouca reflexão. O caso transcende a esfera da mera disputa política e precisa ser visto e meditado no contexto da crise civilizatória em que está mergulhada a humanidade para que se possa traçar caminhos de superação.

Paulo Cannabrava Filho*

A decisão -majoritária- dos Deputados Federais que, por indicação das lideranças partidárias, compõem a importante Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados de escolher o Pastor e Deputado Federal, Marcos Feliciano (PSC), para exercer a presidência da acima referida Comissão, provocou fortes reações em setores da sociedade que discordam de suas posições e pregações reconhecidamente homofóbicas, racistas e incitadoras ao fortalecimento do ódio entre os diferentes. Seus críticos e opositores defendem sua imediata renuncia à presidência da Comissão e, até mesmo, ao mandato sob a alegação de quebra do decoro parlamentar.

Ele defende teses que, por exemplo, afirmam categoricamente que todos os descendentes de africanos são “amaldiçoados”, e todos aqueles que não rezam por sua cartilha fundamentalista “são filhos do demônio”.te  que não renuncia porque foi eleito com 200 mil votos e a bancada evangélica já é a quarta bancada em número no Legislativo e está em linha ascendente. Nos marcos da democracia formal seu argumento soa como irrepreensível, e semeia confusão. Muita gente, entre os evangélicos principalmente, acha que ele tem todo o direito de se expressar, pois representa parte do eleitorado. Sabemos que o problema não é a questão formal sim a questão de fundo: princípios e direitos. 

A primeira reflexão que o caso suscita é sobre qual o maior problema: o de Feliciano na presidência da Comissão, ou de um Congresso que elege a um conhecido racista e homofóbico, incitador de ódio, para presidir uma comissão relacionada com a defesa dos direitos humanos? Esse mesmo Congresso elegeu o senador Blairo Maggi, conhecido como Rei da Soja, um grande predador da região amazônica, para a comissão de Agricultura e Reforma Agrária. O que se pode esperar desse Congresso?

A Constituição em vigência oferece muitos argumentos para que se defenda e se mantenha o respeito aos mais elementares direitos humanos. Direitos e deveres estão bem explicitados. A laicidade do Estado é um desses princípios constitucionais. Este e os demais princípios basilares da nossa democracia em construção precisam ser explicados, entendidos para serem preservados.

São violados esses princípios quando se impõe uma única verdade (verdade de quem, cara-pálida?). Política, claro está, não é teologia. Política é entendimento, é construção do bem comum.

Aceita-se que o consenso é burro, além de autoritário, ditatorial, portanto, incompatível com a democracia. É preciso que haja equilíbrio. Se não há equilíbrio há o desmoronamento e ruinas. A democracia é um processo contínuo de busca do equilíbrio que é o mesmo que dizer em busca do entendimento. Entendimento se alcança no respeito as diferenças, no ordenamento jurídico e moral – leis e costumes – na solidariedade…

Há múltiplas formas de rompimento do equilíbrio: hegemonia, fundamentalismo, concessões, renúncias, exclusão social. A intolerância e o desentendimento são inimigos mortais da democracia como é também a disputa do poder pelo poder, poder como degrau de ascensão social e enriquecimento. O projeto de genocídio dos excluídos (jovens negros principalmente) é produto da intolerância. Não se olha o excluído como a um ser humano, sim como um lixo a ser jogado fora, ou um demônio para ser exorcizado.

O desequilíbrio e, portanto,  a dificuldade em estabilizar o processo democrático em nosso meio tem raiz na memória do arquétipo colonizado. Em 500 anos de história, nenhum de plena liberdade democrática, entendendo que democracia não é um conjunto de regras eleitorais e sim a condição para que cada cidadão se realize em todo seu potencial de ser humano. Esse tempo transcorreu sob a férula do colonizador, do império ou, das ditaduras das oligarquias ou do capital financeiro.

No Brasil as rupturas do processo democrático se deram quando por pressão das massas as elites se sentiram ameaçadas ou a conjuntura favoreceu ou exigiu mudanças no status quo. Rupturas que levaram a revoluções logo frustradas e na maioria das vezes a processos regressivos.

Quando se aprofundam os conflitos, como conciliar os interesses antagônicos? Como restabelecer o equilíbrio?

Observando o processo da história recente em Nossa América, a construção do equilíbrio requer de um líder e de um projeto. No Brasil atual não temos nem um nem outro. Na falta de projeto o papel do líder não passa de mero conciliador, mediatizador.

O projeto pode ser de construção ou de destruição.

Vargas, como líder da Revolução de 30, se atribuía a “função de coordenar as aspirações gerais com o fim de estabelecer o equilíbrio”. Equilíbrio que ele julgava indispensável para construir sua sonhada democracia social. Todos os seus discursos apontam nessa direção. Chávez na Venezuela sonhou com utilizar o dinheiro do petróleo para construir o Socialismo do Século XXI. Não chegou lá, mas abriu as avenidas para a redenção de seu povo.

Já a Tatcher negava a existência do coletivo (do social) e dizia que o único que vale é o indivíduo, e o capital. Em 1987 ela se perguntava: “quem é a sociedade?” e ela mesma respondia: “não existe tal coisa, tão só indivíduos, homens e mulheres”. Deu no que deu.

O laisser-faire, laissez-passer da Revolução Francesa mais o liberalismo anglo-saxão-estadunidense foi levado ao paroxismo na era Tatcher-Reagan. Matéria publicada aqui em Diálogos do Sul mostra que o resultado da desmontagem do estado de bem-estar foi desastroso. Até o abastecimento de água potável ela privatizou. Quando Thatcher chegou ao poder em 1979 havia 9% da população na pobreza e quando o abandonou, em 1990, a cifra ascendia a 24%. Porém, a catástrofe dessa ideologia espalhou-se pelo mundo ocidental e cristão.

Como diria Galeano, o pior dos crimes, consequência dessa política, foi que matou-se a esperança, e, como dizia Vargas, “o que mais necessita o mundo é de esperança”.

Aprendemos com a realidade que o estadista é aquele que se comunica com o povo. Comunica o que? A filosofia de seu governo, por exemplo: como ele vê o mundo e porque. Comunica o projeto nacional dando conta a cada momento dos avanços e dificuldades, deixando claro quais são os objetivos de curto, médio e longo prazo.

O estadista é aquele que tem um arcabouço teórico e em seus discursos e em suas ações unem a teoria e a prática. Isto dá consistência a sua proposta.Quando a brecha entre o discurso e a prática se alarga, vem o cansaço, a descrença, a demagogia supera a liderança.

O fundamentalismo de Tatcher não é diferente do fundamentalismo das igrejas. A liberdade de Tatcher obliterou a liberdade dos outros. A liberdade do Feliciano anula a liberdade dos diferentes. Ambos têm como objetivo a satisfação pessoal e o lucro.  A obediência cega ao deus dinheiro, ao consumismo. É a teologização da política.

O que antepor à teologia da política? Não é certamente a Bíblia nem muito menos o Corão ou Toráh  ou quaisquer dos fundamentalismos. Se admitirmos que a crise atual mais do que econômica e política é moral, que a sociedade está enferma, qual o remédio possível para resgatar a  ética? Só a cultura salva.

Cultura no sentido mais amplo, adotada como política de estado e transversal a todos os setores da vida pública, da política.  O neoliberalismo, como no estado liberal, desprezou a cultura porque esta exige o pensamento crítico.

E a cultura não pode ser divorciada da educação, simplesmente por que uma leva a outra. Não se pode perder de vista que a má escola no nosso meio tem sido parte do projeto de dominação. A má escola, em todos os níveis, levou ao desvirtuamento  da cultura e a mais vil das escravidões que é a servidão intelectual.

A educação libertadora, sistematizada há 50 anos por Paulo Freire é um dos  alicerces necessários para se proclamar a nova abolição. O pensamento de nossos próceres são os pilares que poderão sustentar a libertação e a construção do estado nacional. É hora  de se repensar tudo: a liberdade, a democracia… Democracia que garanta direitos, atenda as necessidades, ofereça oportunidades, tudo isso para todos.

*Jornalista e editor de Diálogos do Sul


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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