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Uma história que já vivemos por aí

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Na abertura da mostra de vídeos do Estéticas da Periferia, “Jennifer” debate mestiçagem e pressões sociais para esconder negritude. Diretor afirma, em entrevista: “cinema das quebradas precisa falar de tudo”

<<Por Juliane Cintra>>

A narrativa do média-metragem Jennifer poderia ser definida como “Uma história que já vivemos por aí”: a história dessa garota de  17 anos, moradora da Vila Nova Cachoeirinha, Zona Norte de São Paulo, cairia muito bem em qualquer uma das quebradas paulistanas.

Filha de mãe solteira e de família nordestina, Jennifer enfrenta todos os dilemas comuns aos jovens de periferia. E na luta pela construção da sua identidade, vai descortinando as sutilezas das relações humanas quando o assunto é a questão racial.Para os mais apressados, poderia estar falando de mais um daqueles clichês típicos de filmes que abordam o preconceito ou racismo. Tudo coisa de preto. Mas cuidado: a pele de Jennifer não é retinta. A garota manipula suas fotos no Photoshop para ficar mais clara e com cabelos lisosNo momento em que se torna adulta, ela vive dilemas relativos à sua identidade numa sociedade calcada nos significados de branquitude. Confira a entrevista do diretor do filme Renato Candido de Lima.

Como foi o processo de produção de Jennifer? Como você chegou nesta personagem?

Eu escrevi esse roteiro na virada de 2007 para 2008, e o fiz pensando na atriz Juliana Valente, com quem estudei teatro. Queria que ela fosse protagonista de algum filme meu. E pela sua história e a minha vontade de criar algo que dialogasse com diversas questões típicas do cotidiano das mulheres do meu entorno, do meu bairro, que é a Vila Nova Cachoeirinha, comecei a pensar na Jennifer.

Sobretudo por conta de uma questão, que sempre me chamou muito a atenção, de como é possível se negociar a branquitude em nossa sociedade. Tantas foram às vezes, nas quais, por mais que a pele fosse mais escura, os traços afrodescendentes marcantes, sempre a existência de algum parentesco branco, seja de um avô espanhol, uma tia portuguesa, era lembrado.

E durante todo o filme, a Jennifer vai tentando de algum forma dialogar com a sua própria auto-estima, imersa nesse contexto de negociação. Até porque uma de suas crises, como apontado por um dos personagens, é o fato de ela não ser loira. Então e aí, o que dá para negociar? O que dessa herança dá para negar para ser aceito, reconhecido?

E tudo fica bem marcado pelo seu cabelo crespo, a característica mais marcante visualmente dessa ancestralidade, que se apresenta com maior força que até mesmo o tom de sua pele clara. E é muito engraçado, como durante toda a minha vida, sempre observei como o cabelo é uma demanda que se apresenta desde há muito tempo no dia-a-dia de negros e mestiços.

Mas por que uma garota mestiça para o papel de Jennifer?

Pensar o roteiro, na Jennifer com as características da Juliana, me fez construir um personagem que negocia a negritude ou a branquitude a partir de uma perspectiva, na qual também pode se ser aceito como branco, por ter essa pele mais clara, apesar dos traços negros.

Eu quis fugir também da ideia de que as questões raciais são exclusivas dos negros. Ela é uma demanda da sociedade, é uma questão comum de negros ou brancos. Na medida em que afeta a todos, seja na concessão de privilégios, na forma como se estruturam as hierarquias, enfim…

Além do cabelo e dos traços afrodescendentes, Jennifer pertence a uma religião de matriz afrobrasileira. E isso fecha a questão do pertencimento racial de maneira muito sutil…

Exatamente, para além da questão da pele, Jennifer enfrenta a questão racial pela sua cultura, presentes no candomblé, no fato de sua mãe ser baiana e ela, apesar de ter nascido em São Paulo, ter passado sua infância no Nordeste e estar aqui com um sotaque forte. Imagina você chegar a uma escola em que o seu sotaque é igual o da faxineira, como relatado no filme, com um cabelo crespo e muito volumoso? Apesar de a pele ser mais clara, ela teve que lidar com as questões raciais desde muito cedo. Entende? Essa demanda é de todos, não importa o quão retinta seja a sua pele. De alguma maneira isso vai te atingir.

Falando um pouco das produções de periferia, você considera o que faz como um cinema periférico?

Eu considero cinema de quebrada. Mas aí é uma postura pessoal, porque eu não me sinto a vontade quando vou à mostra de curtas, eventos deste tipo, saio sempre indignado. Mas já nas quebradas, para exibição de Jennifer em um escadão, por exemplo, eu me sinto à vontade, gosto desta troca de experiências, conhecimento, pontos de vista.

Mas o que significa ser cinema de quebrada? É uma questão técnica somente? Ou de definição de temas a serem abordados?

É bem perigoso dizer que a gente vai fazer só auto-retrato. O cinema de quebrada discute diversas coisas na relação periferia-centro, podendo fazê-lo de várias perspectivas. Nós vamos falar de outros lugares também, nós podemos falar de tudo, com várias linguagens e formas. Como sujeitos de nossa realidade, nós encontramos nuances que talvez outros olhares não enxerguem. Mas isso não limita e nem impede que alcemos outros voos.

Mas e a questão do financiamento para este tipo de produção, muitas vezes o cinema de periferia está vinculado à estética da falta, você concorda?

Não dá mais para assumirmos isso. O cinema de quebrada não é aquele em que o roteiro pode não ser tão bom, ou que a qualidade da imagem pode ser pior. É um posicionamento político. Tendo os equipamentos adequados, não temos nada de diferente do dito cinemão, nós temos competência pra produzir o que quisermos.

Mas o discurso que se faz sobre este tipo de produção nem sempre tem essa visão.  Como você encara a construção da identidade, até mesmo visual, do cinema de quebrada?

Nós estamos conquistando algumas coisas. Mas essa construção é conjunta, até mesmo pensando no Estado e na maneira como as políticas públicas encaram as nossas produções. Nós já estamos fugindo daquele lugar comum de que o cinema de periferia é o cinema da falta, seja de qualidade, de infra. Se tivermos 10 reais, adaptando equipamentos, nós vamos continuar produzindo, mas com recursos e o apoio devido, nós vamos produzir melhor ainda. É um processo de conquista. A gente não quer ficar fazendo vídeo no celular, só que não queremos ser escravos de nada. Queremos condições para criar e trabalhar.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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