Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor.
Quinze dias após ter sido restituída as suas prerrogativas presidencialistas através do plebiscito realizado em 6 de janeiro de 1963, o presidente João Goulart assinou o decreto 53.465, de 21 daquele mês e ano, que instituía o Programa Nacional de Alfabetização (PNA) do MEC e dava outras providências. Tinha início de fato o governo de Jango e seu compromisso com o povo trabalhador mais sofrido. Assim, neste ano de data redonda, nada melhor do que rememorarmos o referido decreto.
O denominado Método Paulo Freire teve sua aplicação bem-sucedida pela primeira vez em setembro de 1963. Nesta data, cerca de trezentos trabalhadores foram alfabetizados em 45 dias. Daí a sua instituição como meta a ser alcançada na gestão do Ministro da Educação Paulo de Tarso foi um passo.
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A finalidade precípua era trazer para a cidadania um contingente social, que além de não ter acesso aos bens culturais, sociais e profissionais por estarem à margem de uma sociedade letrada a excluir os iletrados, os impedia de serem eleitores e eleitos, pois os analfabetos não tinham esse direito até então.
Juntamente com as Reformas de Base que visavam implantar medidas estruturantes com vistas a ampliar os direitos sociais comprimidos por uma democracia meramente formal e reticente a demandas no plano social, como de resto ainda se encontra, o PNA dava início à conscientização por parte de amplas parcelas de uma sociedade que havia até então sonegado o legítimo direito por melhores condições em suas vidas.
E estas não podiam se limitar apenas à alfabetização nos marcos de um sistema tradicional a reproduzir a subalternidade das classes trabalhadoras numa sociedade inflada pela lógica patronal. Era preciso dar-lhes dignidade e condições de reverterem o estado de exclusão social em que se encontravam.
Por sinal, a tomada de consciência do educador Paulo Freire para dar importância ao processo de conscientização ocorreu em dois planos quase simultaneamente. De um lado, tem a ver com o cangaço, manifestações de segmentos sociais alijados das terras açambarcadas pelos grandes coronéis da Casa Grande, que com eles, por vezes, compunham-se para fazer valer sua condição de atores da ordem extralegal, como de resto extralegal era também os senhores de terras. A geração do jovem Paulo Freire tiraria ensinamentos desse fenômeno do cangaço.
Arquivo Nacional.
Passado mais de meio século, a figura do educador revolucionário Paulo Freire ainda incomoda os podres poderes da República
De outro lado, o contato com o professor e filósofo Álvaro Vieira Pinto e os demais integrantes do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) implicou na valorização do conceito de alienação e da conscientização como polos conjuminados dialeticamente para que entendamos a realidade brasileira farta de suas presenças nos duros embates políticos e sociais. O próprio Paulo Freire reconheceu mais tarde a influência positiva desse contato, que será por ele levado como ponto fulcral de sua concepção de educação libertária, em condições de nos levar a compreender a realidade.
Essa junção da vivência do cangaço como um tipo de insurgência a desenvolver-se mediante o uso de expedientes diversos, ora através de demonstrações típicas de um banditismo social, ora por vezes tendo que negociar intermediações junto ao coronelismo e ao mandonismo local a favorecer uns e outros, permitiu adquirir o instrumental que lhe proporcionou a tão enfatizada leitura do mundo de Freire, dando-lhe régua e compasso para fazer fluir o seu obstinado curso de fazer da educação algo transformador.
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Apreender as realidades para poder compreender suas configurações tornaria possível interpretá-las e, com isso, levá-las a promover as transformações necessárias. Este último verbo, transformar, Paulo Freire o incorporou a sua saga pela educação como prática não apenas da liberdade a remover a ignorância, mas como uma agenda voltada para a libertação. Não basta se sentir livre, pois é preciso se libertar das amarras que têm subjugado aqueles que foram objetos da espoliação e da supressão de uma formação cidadã por força da negação da cultura educacional.
Daí, ser a trajetória de Freire verdadeiramente revolucionária, a começar pela comunhão de sua formação religiosa, católica e espírita, crenças partilhadas pelos seus pais, com a sedução do ideário marxista, da mesma forma que sem sectarismo abraçou contribuições de educadores liberais e agnósticos, desde que pudessem enriquecer a multiplicidade de suas concepções aplicadas à educação.
Na proximidade desses sessenta anos do alvorecer de uma experiência interrompida por um golpe de estado ironicamente em nome da democracia é dever dos que prezam pelas ideias inovadoras e transformadoras como a que se devem aplicar no campo do ensino e aprendizagem, cujo enredo não se encerra apenas nos conteúdos curriculares, uma vez que vai muito além disso; que evoquemos a passagem entre nós de um educador que doou sua existência para formar gente pensante e mutante, no que se refere à capacidade de produzir engenhos para a humanidade. Engenhos que podem resultar, como nas boas iniciativas, em proveito do ser humano e inspirados na mais doce concepção de socialização à disposição dos mais necessitados.
A importância da prática libertadora passa pela adoção da dialética, tanto no plano teórico ao dizer-se aliado de dois barbudos, Jesus e Marx, quanto no plano propriamente dito da prática da execução de seu projeto que ambientado na educação foi fundamentalmente político, uma vez que só nesta esfera é possível se alcançar mudanças que traduzam as expectativas por ele e seus seguidores alimentadas. Dialética que esteve o tempo todo presente em sua vivência no Nordeste agitado das décadas de trinta e quarenta do século XX, acrescido pela efervescência dos anos subsequentes de cinquenta e sessenta embalados pela perspectiva da revolução brasileira sustada pelo golpe de 1964, mas não eliminada do horizonte dos nossos tempos.
Passado mais de meio século, a figura do educador revolucionário Paulo Freire ainda incomoda os podres poderes de uma República que ainda não logrou se republicanizar. Tido pelos ideólogos das classes dominantes como agitador, e ele o foi, tem sido alvo das mais iníquas acusações por parte dos que mesmo após a sua morte se sentem afetados por suas ideias.
Seu legado, porém, se encontra tão presente que tem sido um farol a iluminar os projetos que um dia farão prosperar e tornar concretas as suas ideias, porque elas não são o resultado de meras conjecturas idealistas, mas do empenho em tornar realidade os sonhos sonhados juntos de um povo que irá buscar a sua realização plena unindo o destemor e a sabedoria da consciência coletiva irmanada na busca de um mundo melhor. E para ser melhor tem de ser justo.
Lincoln Penna | Doutor em História Social, conferencista honorário do Real Gabinete Português de Leitura, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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