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Entrevista com a socióloga e cientista política Mónica Bruckmann, por Fernando Arellano Ortiz, de Medellín, Colômbia.
América Latina desaproveita uma oportunidade histórica de desenvolver uma relação estratégica de longo prazo com a China”
Mónica Bruckmann*
Segundo os dados da CEPAL, em 1995 do total de exportações da América Latina para a China, 38% eram matérias primas sem valor agregado, enquanto que em 2008 o peso das matérias primas em relação às exportações total havia subido até quase 70%.
“Isso significa um evidente processo de reprimarização das exportações da região para a China, em um momento em que poderíamos estar fazendo exatamente o contrário, ou seja, exportando mais produtos do que matérias primas, agregando valor à exportação através de cadeias de valor regional, de política de transferência tecnológica, de cooperação científica, etc.”, afirma a pesquisadora social peruana Mónica Bruckmann que também é colaboradora de Diálogos do Sul.
Além disso, ela explica que “a reprimarização das exportações da América Latina para a China reproduzem as relações de dependência e subordinação que marcaram a inserção de nossa região no sistema mundial há muitos séculos, com todas as sequelas de miséria, pobreza, devastação ambiental que isso significa. Nesse sentido, não vejo na reprodução de um modelo primário exportador em relação à China uma oportunidade para a região, mas sim exatamente o contrário. A América Latina desaproveita uma oportunidade histórica de desenvolver uma relação estratégica de longo prazo com a China”, observa.
Para aprofundar esta interessante análise geopolítica e econômica e, sobretudo, os desafios e ameaças de nossa região, o Observatório Sociopolítico Latino-americano (www.cronicon.net) entrevistou em Medellín no marco da VII Conferencia Latino-americana e Caribenha de Ciências Sociais realizada por CLACSO entre os dias 9 e 13 de novembro, a socióloga e cientista política peruana Mónica Bruckmann, docente do departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretora de pesquisa da Cátedra Rede da UNESCO sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável.
Bruckmann tem se destacado pela agudeza de suas pesquisas sobre geopolítica latino-americana e por seu trabalho como assessora da Secretaria Geral da União de Nações Sul-americanas (UNASUL).
De sua ampla produção acadêmica, bibliográfica e jornalística se destaca seu bem documentado livro Recursos naturais e a geopolítica da integração sul-americana. (http://www.cronicon.net/paginas/Documentos/paq2/Recursos%20naturales%20y%20%20geopolitica.pdf)
Lítio, o petróleo do século XXI
A realidade geopolítica e econômica global tem desbordado praticamente as expectativas de uma política de integração com relação aos recursos naturais na América Latina. Diante da redução das commodities no mundo, os Estados Unidos, a União Europeia e, por que não dizer a China, estão na estratégia de “divide e reinarás” para poder obter recursos naturais a preços baixos?
Eu creio que o ciclo da inserção da América Latina como exportadora de baixo ou nenhum valor agregado está se esgotando por várias razões. Em primeiro lugar, por uma queda explosiva do preço internacional da maioria das chamadas commodities, mas há outras que não só mantiveram um preço importante, mas estão subindo, como é o caso do lítio. O lítio é um mineral extremamente estratégico pela demanda que a economia mundial tem desse mineral, mas principalmente pelo uso do lítio em pelo menos três ciclos tecnológicos muito importantes. Em primeiro lugar nas baterias recarregáveis que praticamente estão em todos os dispositivos eletrônicos que são produzidos e consumidos no planeta. A partir de 2006 nós vemos que praticamente todas as baterias produzidas no planeta são de lítio e de lítio íon e não da tecnologia anterior de cádmio e níquel, e podemos dizer que em 2015 praticamente 95% das baterias já são de lítio íon. O segundo elemento importante é o uso de lítio na produção de veículos híbridos elétricos, que são veículos que neste momento já têm a performance de qualquer outro veículo movido a partir de bio diesel. Tem um nível de aceleração que chega a 180 quilômetros nos primeiros 8 segundos de funcionamento do veículo, tem uma autonomia que está próxima dos 350 quilômetros por cada recarga de bateria, porque agora se permite que o veículo parcialmente se recarregue com o próprio movimento; além disso, a partir dos novos materiais que estão sendo criados, sobretudo pelos alemães que estão se especializando nisso, está sendo produzido plástico com a resistência do aço, a preço de plástico. Então, isso está fazendo com que os veículos aumentem de tamanho, tenham maior capacidade de transporte e, na América Latina inclusive já estão sendo usados alguns ônibus com baterias elétricas à base de lítio. Esta circunstancia nos coloca diante de um panorama de mudança de padrão na área de transportes, se começamos a usar isso no transporte público. E o terceiro elemento, do ponto de vista geopolítico, o plano estratégico da Europa em 2014 tem isso muito claro, ao indicar que sua proposta e seu objetivo é incrementar e duplicar a participação das energias limpas e renováveis na cesta total de produção energética europeia, o que significa a possibilidade de armazenar essa energia a partir de fontes limpas. A energia fotovoltaico, a energia eólica, a energia geotérmica em grandes centros, em grandes reservatórios energéticos para permitir o fluxo energético contínuo. Porque um problema que tem a energia fotovoltaico, eólica, etc. é que depende do clima. No dia que não há sol, não temos energia solar, no dia que não há vento, não temos energia eólica. Então é indispensável ter um fluxo contínuo e isso se garante através de grandes reservatórios que usam o lítio. Por esses três elementos, podemos dizer que este foi o século do lítio cujo ciclo, em termos de baterias recarregáveis para dispositivos eletrônicos, inicia-se em 2006; e nossa região tem 96% do lítio do planeta.
Quer dizer que o lítio é o petróleo do século XXI?
O lítio, do meu ponto de vista, é um mineral que vai impactar profundamente tudo o que for mercado energético mundial neste século. E isso significa que, na medida em que haja uma mudança no padrão energético de minerais, de energia produzida de fontes fósseis para energias limpas e renováveis, o lítio adquirem uma importância estratégica fundamental. Isso provavelmente vai tardar ainda alguns anos, talvez um par de décadas. É uma coisa que é preciso estudar em termos de ciclo energético e ciclo tecnológico.
Na América Latina, conforme tenho entendido, a Bolívia é o maior produtor de lítio…
Bolívia tem aproximadamente 82, 83 por cento das reservas mundiais de lítio, seguida pela Argentina e pelo Chile e agora, segundo os dados do serviço geológico dos Estados Unidos para 2014, aparece a Austrália como um produtor importante, mas em termos da participação nas reservas mundiais não chega aos 3 ou 4 por cento, ou seja, os dados demonstram que a região continua sendo a grande concentradora das reservas de lítio no nível mundial, entre 94 e 96 por cento.
Por una estratégia continental de aproveitamento dos recursos naturais
Vai se repetir a história da América Latina como região produtora de recursos naturais como o lítio, e não de valor agregado?
Essa é a pergunta do milhão. E é o que animou toda uma discussão estratégica que se iniciou em 2012 em grande medida por um impulso que foi dado pela Secretaria Geral da Unasul, naquele momento sob a gestão de Alí Rodríguez Araque, quando em um momento muito interessante foi apresentado um documento à Cúpula de Presidentes da Unasul em novembro desse ano, no qual se propunha que a região avançasse sobre a visão estratégica e a elaboração de uma estratégia continental de aproveitamento dos recursos naturais para o desenvolvimento integral dos nossos países. Isso punha dentro da discussão a questão da soberania e dos projetos de desenvolvimento nacionais, regionais e sub-regionais, o que gerou toda uma sequela de espaços de debate nos quais participaram não apenas acadêmicos, cientistas, mas também elaboradores e gestores públicos, bem como representantes dos movimentos sociais. Em minha opinião foi muito incipiente, deveria ser incrementada a participação da sociedade civil e dos movimentos sociais nessa discussão, mas, exatamente para responder a sua pergunta, essa discussão tinha o propósito de assinalar que a região tem uma oportunidade histórica de agregar valor às matérias primas que produz. A China depende de una maneira muito clara dos minérios metálicos, dos minerais fósseis, dos alimentos que a região produz e é preciso levar em consideração que ela é um dos países com uma alta problemática ambiental. Entre 2010 e 2011 morreram oitocentas mil pessoas na China devido a problemas respiratórios diretamente em consequência da poluição ambiental. Isso quer dizer que China não se interessa mais em receber matérias primas sem valor agregado, e vemos que o papel dinâmico que tem no sudeste asiático significa toda uma série de cadeias de valor articuladas à sua produção. Isto é, aí nossa região tem uma oportunidade histórica de deixar de exportar meramente matérias primas e agregar valor ao que produz em termos de minérios metálico e alimentos. A China os necessita.
Mas o que parece é que a região não está pensando em conjunto para executar uma estratégia dessa natureza.
Temos avançado pouco em uma visão regional orientada a aproveitar essa oportunidade histórica, e os dados da CEPAL mostram que as exportações da América Latina para a China se incrementaram notoriamente. Passaram de 38% de matérias primas no total das exportações da América Latina para a China a quase 70% em pouco mais de quatro anos, já no início do século XXI. Então, há uma oportunidade histórica fundamental para a região. Não só a Unasul, mas a academia, vários partidos políticos e setores sociais estão propugnando pela necessidade de uma visão estratégica do papel que a região deve cumprir nessas profundas mudanças da economia mundial e das finanças internacionais. Não é à toa que o Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura inicia com 200 bilhões de dólares suas operações e com um capital similar para investimentos de contingência com 100 bilhões de dólares. Ou seja, isso mostra como é que se está reconfigurando a economia com as finanças internacionais através de uma participação muito importante das potências emergentes, particularmente a China. Contrastando, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial estão ainda presos em uma crise importante, uma crise de reservas, enquanto nós, na região, temos outros sistemas que estão sendo criados com reservas importantes. E esta realidade evidentemente vai significar não apenas uma reconfiguração geopolítica importante.
A oportunidade da América Latina com a China
A presença da China na América Latina é cada vez maior…
Dois grandes projetos que vão mudar profundamente o comércio mundial e particularmente o comércio da região são, por um lado, a ferrovia transoceânica que vai unir o Atlântico ao Pacífico e que vai passar pelo Brasil, pela Bolívia e pelo Peru, e por outro o canal da Nicarágua, ambos financiados com capital chinês. O canal da Nicarágua tem uma característica bem interessante que temos que levar em conta do ponto de vista político. Como se trata de unir grandes lagos, o que vai acontecer é que a passagem de embarcações pelo canal da Nicarágua vai permitir navios de muito maior calado do que os que podem passar pelo canal do Panamá. Isto vai significar uma reconfiguração geopolítica importante e aí vemos a presença da China sistemática com uma visão estratégica muito clara do que quer da América Latina, e nossa região ainda se encontra em uma discussão muito incipiente. Tem havido avanços, temos que reconhecer que houve avanços, mas ainda muito insuficientes em relação ao potencial que temos.
É por debilidade econômica ou debilidade política desses países que fica só no discurso o propósito da integração?
Eu tenho a impressão de que é fundamentalmente um problema político. É um problema de visão e de definição política. Veja que nossas estruturas universitárias na região cresceram, e cresceram de maneira impressionante, as capacidades de pesquisas cresceram muito, temos um governo como o equatoriano que está investindo maciçamente em educação como um dos elementos centrais do que denominou de mudança de raiz produtiva. O Brasil teve um crescimento importantíssimo nos últimos 15 anos da capacidade de pesquisa, foram criados sistemas de novas universidades, sobretudo durante o governo do Lula; agora, se a política brasileira se mantiver no sentido do ajuste fiscal, o que foi feito no setor educativo vai ter um retrocesso lamentável. Mas em todo caso, o que podemos dizer é que houve avanços muito importantes em termos da capacidade de produção de ciência e tecnologia e aí é preciso ter claro que tudo o que é colaboração científica internacional tem que ser visto como uma estratégia para o desenvolvimento destes países, e isso significa criar, continuar criando e fomentar as capacidades centrais de produção científica e tecnológica. Esse é um ponto que devemos considerar quando falamos do que a região pode ou não pode. Temos a principal reserva de petróleo mundial que é a Venezuela e agora com as reservas do pré-sal no Brasil, esse país pode se converter em produtor e exportador importante de petróleo. Temos as principais reservas dos minérios metálicos que a economia mundial demanda mais intensivamente. Dos dez países mais mega diversos no nível mundial, cinco são sul-americanos, sete são latino-americanos; temos 30% da água doce do planeta, ou seja, um potencial impressionante, mas estou convencida de que o que falta é uma visão política e estratégias concretas para viabilizar esse potencial.
Um dos desafios pendentes também é o das relações Sul-Sul para poder gerar uma estratégia geopolítica em matéria de recursos naturais?
– Eu diria que a complexidade do mundo contemporâneo e as reconfigurações que estão se produzindo muito rapidamente nos últimos 15 anos nos levam a pensar que a relação, a forma em que se desenvolvam as relações Sul-Sul vão permitir viabilizar inclusive formas de convivência humana mais adequadas aos princípios da defesa da vida, a uma agenda de paz. O que temos visto em todo esse processo que se inicia em 2001 com o atentado às Torres Gêmeas de Nova York é uma militarização no nível mundial. Essa disputa global por recursos considerados estratégicos adquire no instrumento militar e da guerra um elemento central. A China não está interessada em mais uma guerra por recursos naturais. A China propôs em 2008 sua política para a América Latina. Por primeira vez nesse anos a China aprova uma política para esta região na qual esboça que lhe interessa relacionar-se com os países deste hemisfério, encontrar condições de paz, de beneficio compartilhado, princípios de soberania, não intervenção na política interna dos países, isto é, são os princípios fundamentais que inspiraram, ou que consagraram a reunião de Bandung em 1955, onde surge o Movimento do Terceiro Mundo, dos Países Não Alinhados. Eu creio que existe uma recuperação desses princípios fundamentais de solidariedade, de colaboração, de não intervenção e beneficio compartilhado na relação dos países do sul, do sul geográfico, do sul político e a possibilidade da emergência de uma nova ordem internacional na qual não haja uma concentração de poder unipolar ou bipolar. Mas sim pluripolar, e aí os países, as potências emergentes cumprem um papel importante. O Brasil tem um papel importante, mas também todas as regiões articuladas a ele. Definitivamente creio que estamos ante o desafio de uma redistribuição profunda das relações Sul-Sul e os princípios de Bandung podem ser uma inspiração importante, além de ser um legado histórico relevante para a região.
*Original do Observatório Latino-americano Cronicon – http://www.cronicon.net/paginas/edicanter/ediciones111/nota05.htm Mede