Pesquisar
Pesquisar

A CIA e a contrarrevolução na Venezuela

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

A sociedade capitalista tem como uma de suas principais características a opacidade.

Atílio A. Borón*

Ilustração Vitor Teixeira
Ilustração Vitor Teixeira

Se nos velhos modos de produção pré-capitalistas a opressão e a exploração dos povos eram evidentes e adquiria inclusive uma expressão formal e institucional, com hierarquias e potestades, no capitalismo prevalece a obscuridade e, com ela, o desconcerto e confusão. Foi Marx que com o descobrimento da mais-valia descortinou o véu que ocultava a exploração a que eram submetidos os trabalhadores “livres” , emancipados do jugo medieval. E foi ele também que denunciou o fetichismo da mercadoria numa sociedade onde tudo se converte em mercadoria e portanto, tudo se apresenta fantasmagoricamente diante dos olhos da população.

O anterior vem à tona por conta da negação sobre o papel da CIA na vida política dos países latino-americanos, e não só nesses. O permanente ativismo da CIA é iniludível e não pode passar despercebido a um olhar minimamente atento.

Quando se fala da crise na Venezuela, para tomar o exemplo que agora nos preocupa – e as ameaças que pairam sobre esse país, a “agência” não é citada, salvo poucas e isoladas exceções. A confusão gerada pela opacidade e o fetichismo do capitalismo produz novas vítimas no campo da esquerda. Não deveria surpreender que a direita alenta esse ocultamento da CIA.

A imprensa hegemônica –na realidade imprensa corrupta e canalha- jamais a menciona. É um tema tabu para esses impostores seriais. Nem ela, a CIA, nem nenhuma das outras quinze agências que constituem o conjunto que Estados Unidos denomina “comunidade de inteligência”.

Eufemismo à parte, é um temível conglomerado de 16 bandos de criminosos financiados com fundos do Congresso dos Estados Unidos com uma dupla missão: recolher e analisar informação e, sobretudo, intervir ativamente nos diversos cenários nacionais, num raio de ação que vai  desde o manejo e a manipulação da informação e o controle dos meios de comunicação, até a cooptação de líderes sociais, funcionários e políticos; da criação de organizações de fachada dissimuladas como inocentes e insuspeitas ONGs dedicadas a inobjetáveis causas humanitárias, até assassinatos de líderes sociais e políticos que incomodam, e a infiltração –e destruição de- toda classe de organizações populares.

Vários ex agentes da CIA arrependidos e nauseados descreveram com riqueza de detalhe toda essa atividade, com nomes e datas, o que desculpa não aprofundarmos no tema (1).

É compreensível que a direita seja cúmplice do acobertamento do protagonismo dos aparatos de inteligência de Estados Unidos. São parte da mesma gangue e protege com um muro de silêncio a seus compinchas e sicários, O que é absolutamente incompreensível é que representantes de alguns setores da esquerda –notadamente o trotskismo-, o progressismo e certa intelectualidade enredada nos embriagantes vapores do pós-modernismo aderem a esse negacionismo em que não só a CIA desaparece do horizonte de visibilidade como também o imperialismo.

Essas duas palavras, CIA e imperialismo, nem de leve aparecem nos numerosos textos escritos por personalidades daquelas correntes sobre o drama que hoje se desenvolve na Venezuela. A seus olhos parece ter como único responsável o governo bolivariano. Os que aderem a essa errônea –insanamente errônea- perspectiva de interpretação esquecem também da luta de classes, que brilha também por sua ausência, sobretudo nas análises de supostos marxistas que não são outra coisa que “marxólogos” , isto é, cultos doutores embriagados pelas palavras, como às vezes dizia Trotsky, mas que não compreendem a teoria nem muito menos a metodologia da análise marxista e por isso, diante dos ataques que sofre a revolução bolivariana, exibem uma fria indiferença que, nos fatos, converte-se em complacência com os reacionários planos do império.

Toda essa horrível confusão, estimulada como dissemos pela própria natureza da sociedade capitalista, se dissipa quando se recorda as incontáveis e intermináveis intervenções criminosas que a CIA perpetrou na América Latina (e onde mais fosse necessário) para desestabilizar processos reformistas ou revolucionários.

Uma sumária enumeração, inevitavelmente incompleta, destacaria:

  • o sinistro papel da CIA na Guatemala, em 1954, derrubando o governo de Jacobo Arbenz através da invasão mercenária dirigida por Castillo Armas, que realizado o mandato foi assassinado dois anos depois.
  • E houve o Haiti, em 1959, garantindo a perpetuidade o apoio a essa criminosa dinastia até 1986.
  • Nem o que falar do imenso envolvimento da CIA em Cuba, desde o início da Revolução Cubana, atividade que continua até os dias de hoje, que teve seu auge em 1961 com a invasão por Playa Girón.
  • No Brasil em 1964, assumindo um ativíssimo papel no golpe militar que derrubou o governo de João Goulart e mergulhou esse país numa brutal ditadura que permaneceu por décadas.
  • Na República Dominicana  em 1965, apoiando a intervenção dos fuzileiros navais contra os patriotas liderados por Caamaño Deñó.
  • Na Bolívia em 1967, organizando a caçada ao Che e ordenando a covarde execução de um prisioneiro ferido. A CIA permaneceu no terreno e conspirou para derrubar o governo popular de Torres em 1971.
  • No Uruguai em 1969 quando a CIA enviou a Dan Mitrione, um especialista em técnicas de tortura, para treinar os militares e a polícia para arrancar confissões dos Tupamaros. Mitrione foi por isso justiçado em 1970, mas a ditadura permaneceu até 1985.
  • No Chile, desde o início dos anos 1960 e intensificando sua ação com a cumplicidade do governo democrata-cristão de Eduardo Frei. Na mesma noite em que Salvador Allende ganhou as eleições presidenciais de 4 de setembro de 1970, o presidente Richard Nixon convocou de urgência o Conselho Nacional de Segurança e ordenou à CIA que impedisse por todos os meios a posse do líder chileno e no caso de não conseguir, não economizar esforços nem dinheiro para derrubá-lo. ”Nem um parafuso, nem uma porca” disse esse facínora que logo seria desalojado da Casa Branca num processo político.
  • Na Argentina, em 1976 a CIA e a embaixada foram ativos colaboradores da ditadura genocida do general Jorge R Videla, contando inclusive com a ajuda e conselho do então secretário de Estado Henry Kissinger.
  • Na Nicarágua, sustentando contra vento e maré  a ditadura somozista e, a partir do triunfo dos Sandinistas, organizando a contrarrevolução, apelando inclusive ao tráfico ilegal de armas y drogas para alcançar os objetivos da Casa Branca.
  • Em El Salvador, desde 1980, para conter o avanço da guerrilha do Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, envolvendo-se ativamente durante os doze anos que durou a guerra civil que deixou um saldo de mais de 75 mil mortos.
  • Em Granada, liquidando com o governo marxista de Maurice Bishop. No Panamá, em 1989, invasão orquestrada pela CIA para derrubar Noriega, um ex agente que pensou que poderia liberar-se de seus chefes, ocasionando pelo menos três mil mortos na população.
  • No Peru, a partir de 1990, a CIA colaborou com o presidente Alberto Fujimori e seu chefe do Serviço de Inteligência, Vladimiro Montesinos, para organizar forças paramilitares para combater Sendero Luminoso, e logo também às forças de esquerda, deixando um saldo de milhares de vítimas.
  • Com todos esses antecedentes, alguém  poderia pensar que a CIA permaneceu de braços cruzados diante da presença das FARC-EP e do ELN na Colômbia, onde Estados Unidos mantém sete bases militares para mobilizar suas forças?
  • Ou que não atua sistematicamente para corroer as bases de sustentação de governos como o de Evo Morales e, em seu momento, de Rafael Correa e hoje Lenin Moreno?
  • Ou que tenha se retirado para seus quartéis de inverno e deixado de atuar na Argentina, Brasil e em toda essa imensa região constituída por América Latina e Caribe, considerada com justa razão como reserva estratégica do império? Só por um ataque de ignorância ou ingenuidade se poderia pensar tal coisa.

Por tudo isso, pode alguém se surpreender diante do protagonismo da CIA hoje na Venezuela, o ponto mais quente do hemisfério? Pode comando estadunidense -o real, o “deep state” como dizem seus mais lúcidos observadores, não os fantoches que despacham na Casa Branca- ser tão inepto a ponto de desinteressar-se pelo que possa ocorrer com a luta travada contra a Revolução Bolivariana no país que tem as maiores reservas de petróleo do mundo?

Pode o trotskismo e outras correntes extraviadas achar que a MUD e o chavismo sejam a mesma coisa, e manter-se indiferente? Porém, os administradores do império que sabem o que está em jogo estão conscientes de que a única opção para se apoderar do petróleo venezuelano –objetivo não declarado de Washington- é acabar com o governo de Nicolás Maduro, deixando de lado qualquer escrúpulo, contanto obtenha este resultado, queimando vivas as pessoas, incendiando hospitais e creches.

Sabem que a mudança de regime na Venezuela seria um triunfo extraordinário para o imperialismo estadunidense, porque, instalado em Caracas com seus peões e lacaios, o país se converteria de fato num protetorado estadunidense, montando uma farsa pseudo democrata –como a que há hoje em vários países da região- que só uma nova maré revolucionária poderia desfazer.

Diante dessa opção, império versus chavismo, não há neutralidade que valha. Porque não pode ser a mesma coisa uma coisa ou outra. Porque por mais defeitos, erros e deformações que possa ter sofrido o processo iniciado por Chávez em 1999; por mais responsabilidade que tenha o presidente Nicolás Maduro em evitar a desestabilização do governo, os acertos históricos do chavismo superam amplamente seus desacertos e colocá-los a salvo da agressão estadunidense e de seus serventes é uma obrigação moral e política inevitável para os que dizem defender o socialismo, a autodeterminação dos povos, a revolução anticapitalista.

É isto, nada menos que isto o que está em jogo nos próximos dias na terra de Bolívar e de Chávez. Nessa encruzilhada ninguém pode apelar à neutralidade ou pela indiferença. Seria bom lembrar a advertência que Dante colocou à entrada do Sétimo Círculo do Inferno: “este lugar, o mais horrendo e ardente do inferno, está reservado para aqueles que em tempos de crise moral optaram pela neutralidade”. Anotar.

(1) Ver John Perkins, Confissões de um assassino econômico. A cara oculta do imperialismo estadunidense – Cultrix. Título original: Confessions of an Economic Hit Man First published by Berrett-Koehler Publishers, Inc., San Francisco, CA, USA. Ver também Philip Agee, de 1975, Inside the company – https://leaksource.files.wordpress.com/2014/08/inside-the-company-cia-diary-philip-agee.pdf

 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Revista Diálogos do Sul

LEIA tAMBÉM

Trabalho digno no Peru o decreto de 2006 e a decisão histórica de Kuczynski
Trabalho digno no Peru: o decreto de 2006 e a decisão histórica de Kuczynski
Com Trump, EUA vão retomar política de pressão máxima contra Cuba, diz analista político
Com Trump, EUA vão retomar política de "pressão máxima" contra Cuba, diz analista político
Garcia Luna
EUA pedem perpétua a García Luna por considerá-lo culpado por overdoses entre estadunidenses
Trump_Mexico_EUA
Com ameaça de guerra, Trump culpa México por overdoses de fentanil nos EUA