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A Colômbia ficcional de Vargas Llosa e as dificuldades para a paz na "Colômbia real"

Para Pietro Alarcón, a ficção de Vargas Llosa é prodigiosa, mas “cair na real" implica enxergar os fatos incontestáveis, para os quais não adianta a plasticidade metafórica
Pietro Alarcón
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Ninguém colocaria em discussão a qualidade literária de Mario Vargas Llosa. Falamos de um escritor conhecedor como poucos da língua hispânica e dotado de uma invulgar capacidade de envolver com a sua prosa, estilo e relato, aos leitores mais exigentes. 

Entretanto, parece que sua razão de ser como escritor não é necessariamente expressar a realidade real da nossa América Latina, senão se afastar e fabricar sua própria realidade. Nada contra, é uma opção desviar os olhos e é recurso de alguns desde tempos imemoriais.

Esse grau de inconsciência ou de “consciente miopia” (só ele pode dizer) ficou escancarada em linhas de sua autoria reproduzidas pelo jornal Estado de São Paulo no domingo 21 de fevereiro, nas quais o peruano rasga elogios à democracia colombiana e a seu atual governo. 

Diz o escritor que: “O caso da Colômbia é curioso. Nenhum país latino-americano sofreu tantas guerras civis e, no entanto, com a mesma segurança pode-se dizer que nenhum outro tem sido mais livre, civil e democrático, neste mesmo período; Uribe é outra das vítimas de uma campanha de desprestígio da extrema esquerda que o perseguiu desde que estava no poder (…) Se todas as nações latino-americanas tivessem uma classe política semelhante à da Colômbia, outro seria o destino deste continente”.

E destaca ainda, numa tentativa quimérica de talvez resgatar a imagem do governo de Iván Duque, a promessa presidencial de regularizar a presença de 1 milhão de venezuelanos em solo colombiano, que passariam a ter identidade e direitos à saúde e à educação.

Para Pietro Alarcón, a ficção de Vargas Llosa é prodigiosa, mas “cair na real" implica enxergar os fatos incontestáveis, para os quais não adianta a plasticidade metafórica

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A paz na Colômbia precisa se afiançar.

O primeiro questionamento, que salta à vista, é que a regularização dos migrantes não está relacionada com o desfrute desses direitos. Se na Colômbia possuir um cartão de identidade fosse garantia de direitos como à saúde e à educação, os colombianos não estariam desamparados, angustiados e sem vacina até hoje. Venezuelanos ou qualquer pessoa deveriam ter acesso aos direitos sociais porque simplesmente são seres humanos, e não porque sejam ou não nacionais. 

Abrir os olhos à realidade faz enxergar que a naturalização em massa é uma proposta política de velha data, que intenciona, no panorama da miséria agravada pela pandemia, um aumento do caudal eleitoral no 2022 em favor do governo a partir de uma suposta “justa troca” entre direitos sociais e direitos políticos. Quem inventou a armadilha fez a lei e conduz o processo de naturalização e assimilação. Contra essa realidade não há magia verbal que possa se sobrepor.  

Três questões na atual conjuntura bastariam para desmontar os argumentos de que a Colômbia é um país livre, civilizado e democrático. Inicialmente tentaremos contextualizar e depois avançar sobre tais elementos de análise.  

Contexto da política colombiana

Contextualizando: sem dúvida, para Colômbia e América Latina a assinatura do Acordo de Paz de 2016 entre a então guerrilha das FARC — hoje partido político Comunes — e o Estado, é um dos mais transcendentais passos para a segurança regional. O Acordo, com seu esperançoso conteúdo, é uma conquista popular, precedida de uma grande mobilização social e política, dentro e fora do país. 

Os objetivos do Acordo, que se adicionam ao texto da Constituição de 1991 e que também têm caráter de compromisso internacional, contando inclusive com observadores da ONU, são amplos e propõem uma mudança de rumo na direção da economia, da política, do papel das forças armadas e do tratamento da ordem pública.

Seu objetivo central é vencer as causas objetivas da violência, dentre elas impedir a continuidade do processo de assalto às terras do qual historicamente têm sido vítimas os camponeses, investigando e promovendo sua devolução aos legítimos donos, após anos de esbulho e deslocamento forçado. Igualmente, tomar medidas efetivas e outorgar garantias para exercício da oposição ao regime, de maneira a impedir assassinatos de lideranças políticas e sociais e permitir o avanço da democracia. 

Essa perspectiva se complementa com a necessidade de estabelecer uma política externa renovada, longe da premissa de que o relacionamento geopolítico do país passa por considerar que está situado entre o Sul, o Centro e o Caribe continental e é, portanto, o lugar ideal para a projeção dos interesses estratégicos das potências e especialmente dos EUA nos Andes e na Amazônia. Essa visão, na qual a segurança dos EUA é, ao mesmo tempo, a insegurança permanente dos colombianos, sustenta as oito bases militares da potência, que se dedicam ao acossamento de vizinhos e ao monitoramento regional.     

Os agenciadores da guerra têm nome próprio, por exemplo, o ex-presidente Álvaro Uribe, cúmplice das milícias paramilitares de ultradireita. A comunidade internacional não esquece a informação classificada do Departamento de Estado dos EUA – DEA – vazada alguns anos antes do Sr. Uribe ocupar a cadeira presidencial, na qual aparecia como uma das pessoas a ser procuradas pelos seus vínculos com os cartéis do narcotráfico. 

A prisão de Uribe em 2019 não foi um exagero jurídico nem um caso de lawfare, ou produto de um “delírio esquerdista” senão o resultado de provas incontestáveis por compra de testemunhas, falsidade e obstrução ao trabalho da justiça penal comum nos processos em curso por seus nexos com as milícias.


Tais milícias paramilitares, organizadas desde o Estado por setores da classe dominante, são responsáveis por inúmeros massacres e assassinatos de lideranças sociais desde a década de 1960 do país.  

O Centro Democrático, partido do ex-presidente Uribe, é o partido governante, do qual faz parte o Sr. Duque. Tanto o partido como o presidente são inimigos do Acordo. Duque, ao invés de celebrar a paz, simplesmente manifestou que seu governo “rasgaria os acordos”, um propósito que tenta, sistematicamente, cumprir desde o dia da sua posse. 

Por que o acordo de paz não deu certo?

Passado o contexto, argumentemos, primeiro: um dos resultados do acordo de paz é a criação de um Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição. O Sistema tem vários componentes. Um deles é a Jurisdição ou Justiça Especial de Paz (JEP), instância de justiça transicional cuja tarefa é investigar, esclarecer, julgar e punir os graves crimes cometidos em décadas de conflito armado no país.

No dia 18 de novembro, a JEEP divulgou parte das conclusões da tramitação do Caso 03, que investiga os chamados falsos positivos. Oficialmente, os magistrados da JEP têm à sua frente, após inúmeros depoimentos, que “(…) pelo menos 6.402 pessoas foram assassinadas ilegitimamente para serem apresentadas como dados de baixa em combate em todo o território nacional entre o 2002 e o 2008” e que os autores destas ações são membros das forças armadas colombianas. 

O que ficou evidente é que se tratou do cumprimento de um plano, ou seja, de uma decisão deliberada de realizar a prática de recrutar jovens com promessas de emprego, conduzi-los a distintas regiões e logo assassiná-los. As cifras de falsos positivos de outras entidades, como as do Centro Nacional de Memória Histórica (CNMH) ou as do Sistema de Informação Judicial do Ministério Público (SIJUF), são diferentes, mas não distantes. E todas coincidem que no período entre 2002 a 2008, ou seja, justo durante os seis anos de mandato de Álvaro Uribe, se registraram 78% do total dessa prática.    

Segundo argumento: o informe 2020 da Alta Comissionada da ONU para Colômbia, que expressa: “No ano 2020, aconteceram 76 chacinas que implicaram a morte de 292 pessoas, 23 mulheres, 14 crianças, 6 indígenas e 10 afrodescendentes (…) a Missão de Verificação da ONU registra também o assassinato de 73 ex-integrantes das FARC, para um total de 248 ex-combatentes assassinados a partir da assinatura do acordo de paz no 2016 (…) A Oficina de Assuntos Humanitários registra o deslocamento forçado de 25.366 pessoas no ano (…) preocupa às Nações Unidas a falta de avanço de uma política pública destinada a desarmar os grupos paramilitares e suas redes de apoio (prevista no Acordo de Paz)”.

Há duas questões que aqui destacam. Por um lado, se os ex-combatentes das FARC são assassinados sem que exista nenhuma ação estatal concreta para impedi-lo, não somente temos uma omissão estatal, senão que, na prática, se impede o passo à paz e se envia uma mensagem de guerra ao Exército de Libertação Nacional (ELN) guerrilha com a qual o governo congelou qualquer tipo de diálogo. 

Por outro lado, o Acordo não se restringe a uma questão de desarmamento da insurgência das FARC, coloca claramente a necessidade do desmonte das milícias paramilitares. Essas milícias cumprem um papel multidimensional: são o apoio armado da estratégia de consolidação dos poderes da direita nos campos de Colômbia; são aliadas ao capital do extrativismo dos recursos naturais; são agenciadoras do deslocamento forçado de mais de sete milhões de pessoas nos últimos 25 anos; são as responsáveis pela militarização das regiões, obrigando, com o terror da metralha, ao voto obrigatório pelos seus candidatos aliados. Essa lógica de instrumentalização da engrenagem estatal para fazer a guerra, neutralizar opositores e avançar nos planos econômicos do neoliberalismo mais selvagem e rasteiro é a lógica da morte e da destruição do tecido social no qual permanece ainda mergulhada Colômbia.  

Genocídio político

E esse argumento se entrecruza com a última questão: a realização, recentemente, da audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos do caso do extermínio da União Patriótica (UP), o partido político de oposição que foi, literalmente, como tem sido denunciado e agora cada vez se torna mais evidente, alvo da mais violenta e cruel ação de um Estado, num dos casos mais paradigmáticos a escala universal de genocídio. 

O Estado colombiano deve ser declarado responsável por ação e omissão no caso das mais de 5 mil vítimas da UP entre os anos 1980 e 1990, entre candidatos presidenciais, senadores, deputados, membros da sua direção e militantes de base. São vítimas com rosto, que respiravam e trabalhavam pelos direitos das camadas mais afetadas pelo ciclo perverso da desigualdade e que não podem ser esquecidas. Essa ação do Estado não foi apenas uma agressão contra esse partido, mas contra a nação colombiana, contra a paz e a perspectiva de uma alternativa para uma sociedade mais civilizada, com direitos e respeito pela vida.   

A paz na Colômbia precisa se afiançar. Sendo realista, é uma tarefa difícil, para a qual somente com unidade e ampla mobilização popular ampla pode ser construída.  A ficção de Vargas Llosa é prodigiosa, suas travessuras verbais podem ser tentadoras para fugir e imaginar outras realidades, mas “cair na real”, como se diz por aqui, implica enxergar os fatos incontestáveis, para os quais não adianta a plasticidade metafórica.

 

Pietro Alarcón é professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da PUC/SP. É Pós-Doutor pela Universidad Carlos III de Madrid e pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Foi assessor para a paz e o intercâmbio humanitário da Comissão de Notáveis da República de Colômbia e observador para os Direitos Humanos de entidades do ECOSOC (ONU). É membro do coletivo Rueda la Palabra Paz de Brasil.

As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Pietro Alarcón É doutor em Direito. Professor da PUC/SP. Assessor do Comitê Permanente de Colômbia para a Defesa dos Direitos Humanos (CPDH).

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