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A crise do Haiti é reflexo da corrupção com endosso internacional, afirma sociólogo

O presidente é visto como aquele que faz do Estado um lugar de negócios para o enriquecimento dos que estão próximos ao poder e que favorece à corrupção
Wagner Fernandes de Azevedo
Revista IHU On-line
Porto Alegre

Tradução:

O primeiro país latino-americano a conquistar sua independência em 1804, a partir de um levante de escravos iniciado em 1791, liderado por Jean-Jacques Dessalines e Toussaint L'Overture, apontava as incoerências da emergente modernidade. A incipiente Revolução Francesa não bradava seus ideais nas suas colônias. Séculos mais tarde, o Haiti amargurou por décadas os golpes e intervenções externas, as ditaduras dinásticas e sanguinárias, além das catástrofes naturais e epidemias. Em 2019, o país ainda busca sua sobrevivência, e novas revoltas populares tomaram o país, exigindo a renúncia do presidente, Jovenel Moïse. O sociólogo haitiano Laënnec Hurbon afirma que os haitianos estão “presos na ilusão de um estado ao qual atribuímos uma soberania que é uma quimera”. Segundo Hurbon, a corrupção e o endosso da comunidade internacional se refletem na atual crise do governo.

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De acordo com o sociólogo, a raiva da sociedade, acumulada pela desigualdade social e pela miséria, “é a base dos protestos”. Hurbon argumenta que a desigualdade é consequência de “um sistema corrupto que inclui principalmente a maioria dos parlamentares” e “tem o presidente como eixo”.

A comunidade internacional influencia tanto a geração de recursos, como o escândalo de desvio de dinheiro enviado pela Venezuela à empresa estatal Petrocaribe, quanto a legitimação das práticas governamentais. Porém, para o sociólogo, o maior problema é a intervenção externa no processo político. “Não podemos esperar por mudanças reais e duradouras se a comunidade internacional persistir em fazer sua escolha de governadores para o Haiti”, destacou Hurbon, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Laënnec Hurbon | Foto: Reprodução Youtube 

Laënnec Hurbon é sociólogo, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica de Paris – CNRS e professor da faculdade de Ciências Humanas da Université d’Etat d’Haiti. Seu último livro publicado é Esclavage, religion et politique en Haiti (Escravidão, religião e política no Haiti, tradução livre), Porto-Príncipe: Éditions de Université d’Etat d’Haiti, 2018.

O presidente é visto como aquele que faz do Estado um lugar de negócios para o enriquecimento dos que estão próximos ao poder e que favorece à corrupção

IHU On-Line
"A Batalha de Vertières", de Auguste Raffet, 1803, ilustração de um combate entre haitianos e franceses na Revolução Haitiana.

Eis a entrevista.

IHU On-Line — Por que se acentuaram os protestos em fevereiro? Houve novos fatos políticos? Quais?

Laënnec Hurbon / Os protestos do último mês de fevereiro representam uma soma das manifestações iniciadas nos dias 6 e 7 de julho contra o aumento do preço da gasolina, depois novamente em 7 de outubro e 18 de novembro, ocorridos na capital e todas as cidades da província ao mesmo tempo. Dessa vez partem do presidente da República, que demandou através de uma operação chamada “pays lock” (“país bloqueado”, em português), que consiste em fechar completamente o país, isto é, as pessoas não podem sair de casa, as rodovias estão bloqueadas, as ruas e os serviços públicos cessaram o funcionamento. No começo, os protestos tinham uma demanda precisa: a prestação de contas dos empréstimos da Petrocaribe, de 3.8 bilhões de dólares oferecidos pela Venezuela de Chávez-Maduro para enfim tirar o Haiti da pobreza. Um empréstimo a taxas muito baixas que deveriam ser reembolsadas anualmente. Isso produziu uma percepção muito forte que essa quantia foi desperdiçada, porque em nenhum lugar poderíamos perceber os resultados dos projetos que deveriam ser implementados, no entanto as desigualdades sociais se tornaram mais flagrantes, a miséria foi sendo cada dia mais visível e a inflação indo além dos 15% no país. Este é o contexto da violência (queima de pneus, barricadas, incêndios em carros, às vezes saqueando lojas) que mostram que uma grande raiva é a base dos protestos.

Além disso, o atual presidente demonstra que é insensível a esse pedido de prestação de contas de empréstimo da Petrocaribe e segue tentando inventar todo tipo de estratégia para prevenir que se esclareça isso. Entre essas estratégias, há a impunidade desfrutada por grupos de bandidos que fazem o que querem, fazer chover e o bom tempo, nos bairros populares da capital e cujas armas vêm, com toda a probabilidade, de deputados, senadores, ministros ou delegados ou membros do partido no poder. Essas gangues agem como se fossem peças superiores do povo, bloqueiam rodovias, cobram dos viajantes, sequestram mulheres para violentá-las. Eles parecem dispor de um poder absoluto. O recente massacre no último 15 de novembro de sessenta pessoas, todas de classes populares (de acordo com investigações de associações de direitos humanos) no bairro de La Saline (zona de um grande mercado que provê recursos a toda a capital), dá o nível de insegurança em que a vida cotidiana é mantida, de modo que o país está agora fechado ao turismo.


Que avaliação a sociedade haitiana faz do presidente Jovenel Moïse? Quais são os principais personagens de oposição hoje?

Jovenel Moïse é desconhecido da vida política. Nós sabemos que antes de ser presidente teve uma empresa chamada Agripans que deveria exportar banana para Alemanha, mas que logo faliu. O Parti Haitien Tet Kalé – PHTK (Partido Haitiano Cabeça Raspada, em tradução literal do créole para o português, nome em referência ao ex-presidente do Haiti e fundador do partido Michel Martelly) precisava de um sucessor, então Jovenelfoi apresentado nas eleições de 2015 como o homem da banana (“nèg banann”, o slogan da sua campanha presidencial) que teria sido um empresário de sucesso. Mas não foi assim. Descobre-se que ele gozou da generosidade do fundo Petrocaribe para sua campanha eleitoral e outros relatos difíceis de justificar. Seu programa de governo parecia muito pesado, mas rico em promessas extravagantes, como o projeto de fornecer eletricidade para todo o país, 24 horas por dia, em 24 meses. O que descobrimos hoje na realidade é uma grande capacidade de esconder a corrupção, ao mesmo tempo em que fez da luta contra a corrupção o seu principal programa.

Revogou logo após sua posse o diretor da UCREF (Unidade Central de Inteligência Financeira), que durante a campanha eleitoral divulgou o dossiê das irregularidades das contas do candidato Jovenel Moïse. Casos de corrupção se sucederam: kits escolares gerando milhões de dólares de contratos inexplicáveis e irregulares, nos quais a esposa do presidente está envolvida. Mas ele é o eixo de um sistema corrupto que inclui principalmente a maioria dos parlamentares (deputados e senadores, que tomam a maior parte do orçamento nacional: US$ 10.000/mês, dois carros, residências particulares, encargos gigantescos, com franquias para contratos obtidos preferencialmente dos ministros que eles escolheram inicialmente); diretores de instituições (como o National Insurance Office, o Social Insurance Fund, o Fundo de Assistência Social e Econômica – FAES, etc …) são salários como US$ 15.000 por mês e custos incalculáveis, como US$ 10.000 ainda por mês, cada.

É essa informação que circula do próprio reino do poder, de modo que o presidente é visto como aquele que faz do Estado um lugar de negócios para o enriquecimento daqueles que estão próximos ao poder e que favorece todas as práticas relacionadas à corrupção: drogas, tráfico de armas, contrabando… Portanto, são abandonados concretamente o sistema de saúde, o sistema escolar, a segurança, o país acaba entrando em uma desregulamentação em todos setores: Universidades, escolas, segurança, serviços públicos, meio ambiente. Mas como os manifestantes continuam a se enfurecer, todos as defesas são procuradas pelo presidente. Para surpresa de todos os setores da vida pública, ele votou contra o Maduro na OEA, enquanto esse está cheio de sua “generosidade” com os bilhões da Petrocaribe; pois ele espera assim conseguir apoio do presidente Trump. Vai de diálogo em diálogo, em uma busca frenética de interlocutores certos.

De acordo com o primeiro relatório do Tribunal Superior de Contas e Conflitos Administrativos, Moïse beneficiou-se pelo menos de maneira irregular do fundo Petrocaribe e, portanto, há uma chance muito pequena de que o julgamento possa ser realizado durante seu mandato.

A oposição é multiforme, mas o que se coloca de problema está na fraca credibilidade dos seus porta-vozes, os mais barulhentos nas mídias. Entre eles, há primeiro Jean-Charles Moïse: ex-candidato à presidência nas eleições de 2015 e 2016, ele criou o partido “Petit Desalin” (“Filhos de Dessalines”, que foi o primeiro chefe de estado do Haiti, liderou a guerra da independência de 1802 a 1804); outro é membro da organização Fanmi Lavalas Party (criada pelo ex-presidente Jean Bertrand Aristide), Schiller Louidor, e o jurista André Michel. Eles se apresentam como parte do “setor democrático e popular”. Da mesma forma, um grupo de jovens chamado Petrochallenger se apresenta para exigir a prestação de contas da Petrocaribe. Alguns partidos políticos tradicionais se juntaram, uma fusão da tendência socialista, formando a Organização do Povo em Luta – OPL, partido que se destacou da organização de Aristide. Outros partidos e instituições tomam posições bastante moderadas, como a Reunião dos Democratas Progressistas Nacionais – RDPN, ou grupos civis como as câmaras de comércio, que propõem que o presidente coloque seu mandato na mesa em um diálogo com todas as forças da nação. Por outro lado, pode dizer-se que apenas o PHTK e o seu grupo parlamentar ainda apoiam o presidente Jovenel Moïse. É claro que muitas personalidades empresariais e de classe média temem o caos e defendem a estabilidade política.

Como a comunidade internacional influencia na crise? É certo dizer que a Minustah não somente fracassou na missão de paz, mas também trouxe mais problemas para a ilha?

O Haiti conheceu duas intervenções estrangeiras, em 1994 e a partir de 2004, a Minustah, que durou 13 anos, sem que nós víssemos resultados em plano político. Podemos razoavelmente falar de uma falha da Minustah pela epidemia de cólera que se espalhou pelo país e que causou 10 mil mortos.

Um outro fator é a interferência no Conselheiro Eleitoral pelo governo americano, que obviamente ocorreu, colocando autoritariamente Michel Martelly na 2ª posição para o segundo turno.

A comunidade internacional, assim, é vista aos olhos da população como responsável pelo desastre econômico e político que o país atravessa atualmente, e soma-se a corrupção e o esbanjamento do fundo Petrocaribe, tendo o Estado se tornado um local de negócios para aqueles próximos do poder.

O endosso pela comunidade internacional dos resultados das eleições irregulares de 2015, denunciadas pela maioria dos partidos e instituições de direitos humanos, é reiterado na atual crise.

Além disso, por último, mas não menos importante, 8 mercenários estrangeiros, entre estes um sérvio, um russo e os outros americanos, foram presos em 17 de fevereiro pela polícia em carros sem placas matriculadas e com armas de guerra. Eles declararam que estavam a serviço do governo haitiano. Eles foram soltos sem qualquer acusação contra eles e enviados de volta para os Estados Unidos, em acordo com a embaixada americana.

Foi um agradecimento de Jovenel Moïse à comunidade internacional pela segurança que dá ao seu governo. O país agora tornou-se explicitamente propriedade de uma gangue dominante.

Que cenário pode se desenrolar nos próximos dias? É possível a renúncia do presidente?

Não é fácil prever o cenário que vai se desenvolver nos próximos dias. O Haiti viveu duas semanas de fechamento (Operação pays lock) e apesar da sua fragilidade, o presidente Jovenel não fará sua renúncia, mesmo enquanto demonstra que não está mais dirigindo o país. De fato, estamos presos na ilusão de um estado ao qual atribuímos uma soberania que é uma quimera, a comunidade internacional dá o seu apoio ao presidente, e faz parte das forças envolvidas. Há também, e acima de tudo, a dificuldade de dar credibilidade a alguns barulhentos atores da oposição chamados de “setor democrático e popular”, enquanto muitos partidos tradicionais se tornaram marginalizados.

Mas o que é certo é a falta de liderança de Jovenel Moïse e sua incapacidade de reunir até moderados. Presumivelmente, apesar do cansaço da população, a mobilização para a saída do Presidente se fortalecerá nos próximos dias. Porque existe a percepção de que o processo sobre a dilapidação dos fundos da Petrocaribe não pode ocorrer enquanto Jovenel Moïse estiver no poder.

Por outro lado, em qualquer caso, o problema do Parlamento (103 deputados e 30 senadores), que drena uma parte escandalosa do orçamento nacional, é que continuará encarregado de resolver o impeachment do presidente. Ainda assim, será necessário pensar na necessidade de uma Assembleia Constituinte, para produzir uma nova constituição, que possa bloquear a prática generalizada de corrupção dentro do Estado. Algumas pessoas inclinam-se para tal solução, que terá sucesso em evitar eleições, porque correm o risco de levar os mesmos parlamentares de volta aos seus postos.

Qual é o principal problema do Haiti, hoje? Qual é a principal urgência?

Hoje, o Haiti está enfrentando uma situação de vida muito abaixo da linha de pobreza nas classes mais desfavorecidas. Eles estão à beira da inanição. O PIB per capita é de US$ 805, mas na República Dominicana é de US$ 7052,26. Um fundo de ajuda alimentar de emergência é necessário, mas que seja bem supervisionado. A solução sustentável é um programa de infraestrutura imediata: água, saúde e higiene pública, sistema escolar unificado e gratuito, recuperação da agricultura, problemas que nenhum governo parece ter levado a sério até então. O Haiti ocupa a 168ª posição entre os 189 países no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano. Não podemos esperar por mudanças reais e duradouras se a comunidade internacional persistir em fazer sua escolha de governantes para o Haiti. 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Wagner Fernandes de Azevedo

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