A novidade desta eleição é o surgimento de uma “onda conservadora que varreu o país, de norte a sul, evidenciando uma polarização forte entre petismo e antipetismo”, diz o historiador Daniel Aarão Reis à IHU On-Line, ao comentar o resultado das eleições presidenciais do último domingo, em que Bolsonaro obteve 46% dos votos contra 26% de Haddad. Apesar de a “nova direita” representada pela candidatura de Bolsonaro ter recebido mais votos, Aarão Reis pontua que “é preciso de fato distinguir um núcleo duro de extrema direita, combativo e ativista, e uma nebulosa de diferentes direitas — alcançando até setores centristas — que se reuniram momentaneamente em torno de Bolsonaro, mas que não são adeptas de regimes ditatoriais nem nostálgicas de última ditadura. O que liga toda esta gente é muito mais o antipetismo”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Aarão Reis frisa que múltiplos fatores ajudam a explicar esse fenômeno, como a “extrema desmoralização do sistema político; ausência irritante de autocrítica pelos principais partidos (MDB, PT e PSDB); situação aflitiva da questão de segurança; profunda crise econômica, com milhões de desempregados; péssimos serviços públicos (saúde, educação e transporte); questões comportamentais mal discutidas e mal resolvidas”. Além disso, menciona, “ao se sentirem desamparadas e não atendidas pelo sistema em vigor, muita gente se sentiu atraída e seduzida por propostas alternativas conservadoras, que se apresentaram como outsiders, ‘contra tudo o que aí está’”.
Apesar de esta eleição também ter representado a maior renovação do poder Legislativo desde a eleição de 1989, Aarão Reis pontua que o novo Congresso estará “extremamente fragmentado, com dezenas de partidos, boa parte dos quais minipartidos, alguns irrelevantes, salvo para negociar cargos e malfeitos. É provável, no entanto, que o presidente eleito, em virtude dos poderes que concentra, possa alinhar o Congresso a suas propostas iniciais. Quais serão estas propostas? Esperemos que, no segundo turno, estas apareçam mais claramente. No momento, só temos vagas indicações”.
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Daniel Aarão Reis também avalia as consequências políticas desta eleição para partidos tradicionais, como o PT, o PSDB e o MDB. “Da mesma forma que ocorre com o PT, os outros dois maiores partidos da mal chamada Nova República, o PSDB e o MDB, precisam lidar com o desafio da reinvenção. Ou se reinventam ou tendem a se tornar irrelevantes”, adverte.
Daniel Aarão Reis é graduado e mestre em História pela Université de Paris VII e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. É professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense. É autor de, entre outros, A revolução faltou ao encontro – Os comunistas no Brasil (Brasiliense, 1990), A aventura socialista no século XX (Atual, 1999), Ditadura militar, esquerdas e sociedade (Jorge Zahar Editor, 2000), Uma revolução perdida: a história do socialismo soviético (Fundação Perseu Abramo, 2007) e Ditadura e democracia no Brasil (Zahar, 2014).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Do ponto de vista da história política do país, como avalia o resultado das eleições de domingo, que levou Bolsonaro e Haddad ao segundo turno? Algum aspecto em particular da eleição chamou a sua atenção em comparação com eleições anteriores?
Daniel Aarão Reis: Eu destacaria, como já o têm feito outros analistas, a onda conservadora que varreu o país, de norte a sul, evidenciando uma polarização forte entre petismo e antipetismo.
O fenômeno deveu-se a um complexo de fatores: extrema desmoralização do sistema político; ausência irritante de autocrítica pelos principais partidos (MDB, PT e PSDB); situação aflitiva da questão de segurança; profunda crise econômica, com milhões de desempregados; péssimos serviços públicos (saúde, educação e transporte); questões comportamentais mal discutidas e mal resolvidas.
Ao se sentirem desamparadas e não atendidas pelo sistema em vigor, muita gente se sentiu atraída e seduzida por propostas alternativas conservadoras, que se apresentaram como outsiders, “contra tudo o que aí está”. Fenômenos semelhantes já tinham acontecido no Brasil, com as ascensões meteóricas de Jânio Quadros (1960) e Fernando Collor (1989). Os resultados não foram nada edificantes.
A subestimação da crise, em suas múltiplas facetas, fez com que muitos insistissem nos mesmos caminhos de outras eleições, sendo surpreendidos pelos resultados.
Cumpre destacar, finalmente, o papel decisivo desempenhado pelas mídias sociais e afins (WhatsApp e outros aplicativos), intensamente usadas — com resultados positivos — pelas forças conservadoras.
Como avalia o percentual de votos recebido por Ciro Gomes? Por que ele não conseguiu ser uma alternativa ao PT?
Faltaram a Ciro Gomes estrutura partidária e tradição “pela esquerda”. Sobraram aos petistas autoconfiança e subestimação dos adversários. Os resultados — desastrosos — talvez incentivem os petistas a fazer o que se lhes exige há muito tempo: uma profunda autocrítica. Para isso, porém, eles precisarão convencer Lula, líder supremo do PT, que não aceita formular a menor autocrítica.
Quais são as consequências políticas desta eleição para o PSDB, considerando a baixa votação de Alckmin? Que futuro vislumbra para o partido considerando também o apoio de Doria a Bolsonaro?
Da mesma forma que ocorre com o PT, os outros dois maiores partidos da mal chamada Nova República, o PSDB e o MDB, precisam lidar com o desafio da reinvenção. Ou se reinventam ou tendem a se tornar irrelevantes. O mesmo acontecerá com o PT, embora este tenha resistido melhor à onda conservadora.
O senhor disse que se o PT fizer uma autocrítica neste momento, isso pode contribuir para a eleição de Haddad. O partido parece caminhar nessa direção? Quais são os acontecimentos que sinalizam a possibilidade de o PT fazer uma autocrítica neste momento?
Haddad formula apenas uma autocrítica parcial. Não creio que seja suficiente. O que o tem amarrado muito é o Lula, seu mentor. Infelizmente, em termos político-eleitorais, ele não tem vida própria sem o Lula. E Lula foge da autocrítica como o diabo da cruz.
Qual seria o significado político de uma autocrítica neste momento, dado que ela não foi feita até agora?
Sinalizaria um momento forte para o reagrupamento de todas as forças democráticas em torno da candidatura Haddad-Manoela, algo como uma frente democrática e popular para salvar o regime das ameaças que pairam sobre ele. Deveria ter sido feita antes do momento eleitoral, tomando a forma de uma chapa Ciro-Haddad. Lula e o PT não quiseram tomar este rumo, subestimando os perigos que, agora, se concretizaram com notável dramaticidade. Mas ainda há tempo para fazê-la, muito pouco tempo, é verdade…
O senhor também afirmou recentemente que “a boa notícia” desta eleição “é que está se formando uma apreciável massa crítica aos desacertos do PT e do Lula”. Qual é o peso dessa massa crítica?
A votação expressiva do Ciro, a consolidação de expressões alternativas democráticas ao PT e ao lulismo, o aparecimento de novas lideranças não comprometidas com os “mal feitos” cometidos pelo PT e suas lideranças, os movimentos sociais de rua, como o das mulheres contra “ele” [Bolsonaro], a insatisfação que cresce no interior do próprio PT, tudo isso expressa movimentos positivos e construtivos. É provável que eles terão que trabalhar e amadurecer doravante em condições extremamente adversas. Um desafio e tanto…
Existe uma avaliação de que tem crescido o número de brasileiros que se identifica com partidos de direita. Na sua avaliação, isso de fato tem acontecido ou a votação de Bolsonaro é explicada por um sentimento antipetista?
Penso que os dois fenômenos (antipetismo e direitas) não se excluem necessariamente, mas é preciso de fato distinguir um núcleo duro de extrema direita, combativo e ativista, e uma nebulosa de diferentes direitas — alcançando até setores centristas — que se reuniram momentaneamente em torno de Bolsonaro, mas que não são adeptas de regimes ditatoriais nem nostálgicas de última ditadura. O que liga toda esta gente é muito mais o antipetismo.
O que explica o antipetismo neste momento?
O petismo configurou-se para muita gente como o cerne e o pilar central do “sistema” político, que apodrece a céu aberto há muito tempo. Não é uma avaliação apropriada, a meu ver, mas é a avaliação que tem predominado em muitas consciências. Contribuiu para isto, sem dúvida, a inapetência autocrítica dos petistas que pagam, hoje, sua alergia a apreciar autocriticamente os erros cometidos em passado recente.
Do ponto de vista político, que cenários se desenham para a esquerda e para a direita a partir desta eleição?
A pior hipótese — infelizmente, possível — aponta para uma radicalização das contradições sociais e políticas. Neste caso, teremos pela frente tempos difíceis, tormentosos e bastante interessantes. No entanto, é possível evitar o despenhadeiro com a formação de uma ampla frente democrática e popular que contenha polarizações radicais em proveito da construção democrática e do aperfeiçoamento do sistema democrático. Vai depender da lucidez das lideranças democráticas e do seu empenho em superar querelas sectárias.
O que se pode esperar de um possível governo Bolsonaro ou um possível governo Haddad?
Um eventual governo Bolsonaro aponta para uma crescente ameaça às instituições democráticas. Só uma ampla frente democrática e popular poderá conter estes desdobramentos. Já um governo Haddad também precisará do apoio da referida frente democrática. Em caso contrário, não conseguirá governar.
Já é possível fazer um balanço dos eleitos para o Congresso? Que tipo de Congresso irá legislar a partir de 2019?
Um Congresso extremamente fragmentado, com dezenas de partidos, boa parte dos quais minipartidos, alguns irrelevantes, salvo para negociar cargos e malfeitos. É provável, no entanto, que o presidente eleito, em virtude dos poderes que concentra, possa alinhar o Congresso a suas propostas iniciais. Quais serão estas propostas? Esperemos que, no segundo turno, estas apareçam mais claramente. No momento, só temos vagas indicações.
O país precisa de reformas profundas e urgentes. Veremos se elas tomarão o caminho do aperfeiçoamento democrático, da inclusão e da justiça sociais. Ou se caminharemos para um regime antidemocrático, baseado no arbítrio e na prepotência.
Deseja acrescentar algo?
A democracia está ameaçada no Brasil. Do que se trata é saber se conseguiremos salvá-la, aperfeiçoando-a, ou se assistiremos à sua destruição. Opções em aberto. As opções e as circunstâncias decidirão.