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A destruição da memória e o “ideal” de uma sociedade lobotomizada

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

alfredo pitaO jornalista e escritor peruano Alfredo Pita, residente em Paris, estreia como colaborador de Diálogos do Sul com uma profunda e necessária reflexão sobre a memória, de extrema atualidade nesse mundo globalizado que tudo destrói.

Alfredo Pita*
No Peru, desde sempre, a memória tem sido atacada, adormecida, sabotada e tergiversada. Se há uma sociedade curada contra a memória e realmente amnésica é a nossa.
La destrucción de la memoria y el “ideal” de una sociedad lobotomizada1Chamou a minha atenção, há alguns meses, ficar sabendo que no Peru um escritor promovia uma campanha “contra a memória”. Perguntei-me se essa pessoa sabia o que estava fazendo, pois seu empenho, caso produzisse efeito, não seria mais que uma reiteração, em um país que é terreno fértil, desde sempre, para esse tipo de esvaziamento de conteúdos e de consciência histórica e social que agora promove com denodo a ideologia neoliberal.
Efetivamente, no Peru, desde sempre, a memória tem sido adormecida, sabotada e tergiversada. Se há uma sociedade curada contra a memória e realmente amnésica é a nossa, e por isso a proposta do cândido ativista não podia ser mais peregrina, para não dizer maliciosa.
O drama não é peruano, em todas as sociedades a memória é um terreno de disputa, inclusive de batalha, posto que se trata, nada menos, desse alicerce invisível e inacessível, mas concreto e sólido, que cria e consolida a auto percepção individual e coletiva, a identidade, isso que somos ou acreditamos que somos como entidade humana solitária ou plural.
Por isso é que tão facilmente a memória se converte em uma arma cultural e política sobre a qual os grupos hegemônicos, ou os que buscam a dominação, tentam ter o controle. Não tê-lo implica que uma sociedade, ou grande parte dela, pode começar a pensar por conta própria e atentar contra os interesses do grupo dominante. A memória deve estar, portanto, sob vigilância e orientada adequadamente.
No Peru, as forças que combatem a memória sempre o fizeram desde posições vantajosas, a partir da institucionalidade do Estado, da cobertura religiosa-pedagógica da Igreja, do aparato educativo e, obviamente, dos meios de comunicação de massa.
Neste terreno, minha geração chegou a ver os efeitos grotescos da velha cultura colonial filtrada no imaginário coletivo, na evocação de nossas origens. A celebração do Dia do Índio nos instalava nesse limbo da inconsciência que balançava entre a glória etérea do Império Incaico e a contundência do Descobrimento da América.
Não sabíamos do que devíamos estar mais orgulhosos, de haver tido Pachacutec entre nossos antepassados ou de haver sido descobertos por Christóvam Colombo.  A presença, durante décadas, da estátua de Pizarro ao lado do Palácio de Governo expressava bem nossa confusão, na qual se instalava perfeitamente o racismo entrecruzado que nos aflige, cuja pior manifestação é a não aceitação do que somos.
Esses são os efeitos do controle da memória no plano histórico em uma sociedade como a nossa, que acontecem também no plano político, no marco do exercício da cidadania. Facilmente caímos em surpreendentes amnésias e letargos cerebrais coletivos. Se não, como explicar que boa parte da juventude peruana ignore hoje como era o país há trinta ou quarenta anos.
A imagem distorcida do conflito armado dos anos 1980 e 1990, que custou a vida de mais de 70.000 peruanos, em sua maioria civis de cultura quíchua, não só é uma ração mais do velho purgante de esquecimento e engano que sempre nos foi administrado, mas ao situar-nos na consciência histórica nos põe em risco de ver repetida a tragédia.
A esse respeito é muito ilustrativa a reiterada destruição do monumento O Olho que Chora, ou a árdua criação do Museu da Memória, como o projeto foi chamado no seu início. Depois passou a se chamar Casa da Memória e agora é apenas Lugar da Memória. O concreto é que é um projeto rechaçado, combatido por aqueles que querem que não recordemos, ou que nos instalemos no esquecimento ou no ódio irreflexivo.
Isso sem falar de outros efeitos da memória deletéria que nos impõem os instrumentos de formatação de consciência de que dispõem os poderes institucionais e fáticos. Sem falar, por exemplo, do recente e do óbvio, da forma como nossa sociedade anestesiada elege e reelege suas autoridades entre os políticos que se têm comportado da forma mais corrupta e desprezível.
Estamos inermes frente ao presente e ao futuro, porque não conhecemos o passado e isso não é matéria de nossa reflexão. Operaram o nosso cérebro coletivo e nos deixaram lobotomizados. Atuamos aparentemente de forma normal, mas não temos reflexos intelectuais básicos. Sequestraram nossa memória, nossa consciência e nossa ética. Colocaram nossa sociedade em uma virtual situação de alienação coletiva, deficiente para a modernidade.
Isto foi obra de nossas elites, que nem sempre foram muito ilustradas, mas tiveram, sim, a inteligência para fazer perdurar por séculos taras pós coloniais, para anular, ou postergar, ou pelo menos distorcer, toda reclamação de direitos das grandes maiorias. E o conseguiram, sobretudo nas últimas décadas, com instrumentos de modelagem do imaginário coletivo: a imprensa, o radio e a televisão lixo e, sobretudo a educação e o aparelho cultural destruído e negado.
Diante deste panorama sinistro nós, peruanos, tivemos, ao longo do século XX, uma trincheira precária e ao mesmo tempo sólida, pelos efeitos proliferadores de sua ação: a literatura, o trabalho de antídoto à destruição da memória realizado por nossos escritores, em particular por nossos narradores. Graças a isso a autopercepção e a lucidez não foram totalmente perdidas.
Esta é possivelmente a explicação do vigor de nossa poderosa narrativa realista. Nossos escritores tiveram que somar ao seu compromisso artístico a dura tarefa de ser oráculos da memória, testemunhas da vida, agentes da consciência e da reflexão social. Esta condição, que incomoda a alguns, tem sido de uma utilidade social evidente e bem-vinda, na medida em que nossos escritores não abdicaram de sua qualidade artística.
Obviamente, a literatura peruana não se esgota em seu veio realista nem nos grandes afrescos sociais. Assim, nos últimos tempos, tivemos uma colheita de livros que se inscrevem na chamada “literatura do eu”, uma manifestação tardia entre nós da “autoficção” que há vinte anos “anemiza” a literatura francesa. Em nosso âmbito, no entanto, os recentes títulos que têm aparecido exploram a memória individual e familiar em meio de tempos de grande conflito, e contribuem assim para a exploração coletiva, para o grande espelho caleidoscópico que a nossa sociedade sem identidade necessita para se olhar.
Neste marco, e para voltar ao que me inquietava no começo desta reflexão, não chego a discernir o que propõem aqueles que advogam por campanhas contra a memória e, sobretudo a partir do terreno da literatura. É difícil para mim conceber que um escritor se proponha a ser um agente para aperfeiçoar o “ideal” da sociedade lobotomizada que já nos impuseram, à qual, até agora, nossos narradores  e poetas têm resistido e combatido com obras extraordinárias, algumas delas se aproximando de genialidade. As piscadelas do sistema e do mercado triunfante não devem afastar os artistas e os criadores de sua fidelidade essencial, que deve ser o respeito por sua obra e por si mesmos.
*Escritor, autor peruano do romance El rincón de los muertos – Colabora com Diálogos do Sul, vive em Paris, França.
Foto em destaque de Christian Reynoso


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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