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A devastadora história de sexo e paixão que tanto contribuiu com Freud e Lacan

"Fedra" nos aporta casos e mais casos em que o amor é basicamente a paixão ou o tormento do sexo
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

A tragédia francesa “Fedra” escrita por Jean Racine no século XVII, inspirado em Eurípedes e em Sêneca, muito contribuiu para ilustrar diversos raciocínios psicanalíticos, tanto de Freud quanto de Lacan.

Fedra” nos aporta casos e mais casos em que o amor é basicamente a paixão ou o tormento do sexo. Em seu epicentro temos as figuras míticas de Teseu, Fedra e Hipólito.

No dizer de Lacan o amor surge sempre como complemento da relação sexual, que em “Fedra”, assim como nos fragmentos que nos chegaram de Eurípedes, a todos devasta.

Freud chamou de libido a energia que dirigimos aos objetos de nossos desejos. Pensou a sexualidade como a única função do organismo capaz de levar cada um além de si mesmo, numa busca constante de relação com a sua espécie.

"Fedra" nos aporta casos e mais casos em que o amor é basicamente a paixão ou o tormento do sexo

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Os escritores Freud e Lacan. "Fedra" nos aporta casos e mais casos em que o amor é basicamente a paixão ou o tormento do sexo

O objetivo de nosso ensaio é percorrermos essa saga de paixão, sexo e devastação no núcleo de uma família que, por gerações, foi orientada pelo sexo. Sua força de libido sexual foi central em todas as suas atitudes.

Principiemos por Teseu, marido de Fedra e pai de Hipólito. Teseu é filho de Egeu, o mesmo rei de Atenas que deu guarida à enlouquecida Medeia, que fugiu de Corinto após matar por ciúmes os próprios filhos.

A infertilidade de Egeu não lhe permitia ter descendência e isso o desesperava. Em sua viagem de retorno a Atenas, por influência da feiticeira Medeia, embriaga-se antes de deitar com Etra, filha de Piteu, rei de Trezena. 

Embriagado, Egeu não consegue possuir a bela Etra e essa, na falta de sexo e desolada, sonha com um deus, Poseidon, e por ele é penetrada e engravidada.

Etra tenta então convencer o envelhecido Egeu de que o filho era seu, de que eles haviam transado. Pelas dúvidas, antes de voltar para Atenas, Egeu soterra com as sandálias, uma espada colossal. Somente um filho seu ou o filho de um deus poderia erguê-la.

Teseu, em grego “théseus”, significa aquele que é forte, teso, duro, um tesão que fará jus às sandálias e à espada. Ao tornar-se jovem desenterra-as e caminha para Atenas. E nesse trajeto, de posse da espada e de uma clava, livra a terra de uma série de monstros, complementando o trabalho iniciado tempos atrás por outro herói, Hércules.

Quando chega à Atenas, Medéia, a ciumenta, casada agora com Egeu, prepara uma poção de veneno que matará o filho do rei. Entretanto, o pai, ao reconhecer a poderosa espada desembainhada por Teseu, evita mais um crime por ciúmes e expulsa da cidade a feiticeira.

Nessa época Atenas havia sido derrotada por Creta numa batalha e pagava uma cota anual de sacrifício. 

Sete moças e sete rapazes eram enviados para a ilha de Creta e lançados no labirinto do palácio de Cnossos, para servirem de pasto para um monstro, o Minotauro.

Minos, o rei de Creta era casado com Psifae. Com ela tivera duas filhas, Ariadne, a mais velha, e Fedra, a jovem. 

Mas a esposa era sexualmente insaciável! Ela atrai para sua cama um deus que vem do mar, o próprio Dionísio! E dessa relação nascerá Minotauro, que Minos é obrigado a aceitar como filho seu, o “touro de Minos”.

E Teseu, que já matara uns tantos monstros, convence o pai de que ele deveria ser um dos quatorze que iriam para o sacrifício. O pai a custo concorda e estipula uma única condição: ao retornar, se vitorioso, uma vela branca seria içada no barco. Caso contrário, a negra permaneceria e ele, Egeu se suicidaria por haver enviado o filho à morte.

Lá foi Teseu! Ele tinha força, poderia matar o Touro, mas como sair do labirinto construído pelo maior dos artífices mitológicos, dédalos?

Hora, a linda Ariadne ao ver o maior herói ateniense se deixa arrastar pela paixão. Entrega ao conquistador o famoso novelo de lã, que não permitiria que ele se perdesse no labirinto.

Dito e feito, no combate o monstro é destruído, o jovem Teseu escapa do labirinto e leva em seu barco Ariadne, a salvadora, até a ilha de Naxos. 

Se ela estava apaixonada ele a saciou, mas o amor que complementa o sexo ele não tinha a dar. Tudo de sua parte, fora pretexto e cálculo. Abandona-a dormindo e parte para Atenas. Ao despertar, Ariadne aceitará partir na barca do deus Dionísio, também chamado de  Baco.

Ao chegar a Atenas, Teseu aparentemente se esquece do combinado com o pai e não iça a vela branca. Este, crendo morto o filho, atira-se ao mar. E Teseu assume o comando da cidade. Entretanto, nega-se a ser um Rei, promove diversas reformas políticas e torna-se o fundador mítico da Democracia.

Ora, Teseu possuía desde os tempos de Trezena um amigo íntimo, Piritoo. Os dois decidem que precisavam se distrair e planejam o sequestro da filha de Leda, aquela mortal que tivera relação com um cisne divino (um dos disfarces de Zeus para enganar sua mulher Hera), e dessa relação nascera, Helena, a mais bela do mundo antigo! 

A mesma Helena que, ao tornar-se mulher, encantada com Páris, um visitante de seu marido Menelau rei de Esparta, com ele fugiria e provocaria mitologicamente a guerra de Troia.

Tiraram a sorte nos dados e Helena coube a Teseu que fará sua iniciação sexual. Como ela é ainda uma menina impúbere, a relação será anal, aliás, uma relação muito comum dentre os gregos.

Agora Piritoo também quer raptar alguma filha de um deus ou uma deusa, e escolhe justamente Coré que, como Perséfone, reina ao lado do esposo, no Hades. 

Os dois amigos descem ao reino dos mortos, mas somente Teseu consegue retornar. Piritoo lá ficará para sempre, graças à sua desmedida paixão.

Tempos após, Atenas é atacada pelas Amazonas, comandadas por Hipólita. Estando já sem o amigo íntimo, Teseu arderá de paixão pela comandante das tropas inimigas. Convence-a a se deixar raptar e dessa relação nascerá Hipólito. 

Depois, Hipólita será morta pelas próprias ex-companheiras, que não lhe haviam perdoado a traição. Hipólito será criado pelo pai, Teseu.

Alguns anos após, Teseu já cinquentão se apaixonará pela irmã de Ariadne, Fedra e a desposará. Seu filho, nessa altura, já é um belo jovem e o maduro Teseu não conseguirá manter por muito tempo acesa a chama de desejo que arde em Fedra. 

E esta chama arderá pelo enteado.

E é aí que principia a tragédia de devastação amorosa de Racine, “Fedra”.

À primeira vista, “Fedra” é uma tragédia de amor como tantas outras. Teseu ama Fedra, que ama Hipólito, que ama Arícia… quem não conhece uma novela como esta? Fedra, todavia, é mais que uma tragédia do ciúme. 

“Os Deuses e os Monstros se misturam ao jogo dos humanos… a luta que se trava em seu coração não é somente a luta entre o Bem e o Mal, entre não sei que nostalgia da pureza e o pecado original, é a luta de duas heranças, dos deuses da luz e dos animais mitológicos…” (Roger Bastide).

Fedra é uma mulher madura, cujo esposo, Teseu está longo tempo afastado do lar. Para alguns, já estaria morto; para outros, estaria bem vivo, porém entregue aos gozos de novas amantes.

Fedra, φαιδρός, “aquela que brilha”, então, está só, seu brilho dá lugar à tristeza, esconde enquanto pode seu amor por Hipólito e pensa em morte. Ao queimar de desejo, nela tanto o amor quanto o ódio são exaltados.

Hipólito, por seu lado, sofria também por  um amor que lhe era pela lei e por imposição paterna, proibido. Ele amava a jovem Arícia, mas amá-la era trair o próprio pai. Arícia, por seu lado, como as demais, considerava Hipólito indiferente às mulheres e ao amor, inimigo de Afrodite. Admitamos que ele tinha lá seus trejeitos… 

Entretanto, ao ser interrogado por seu aio de forma direta ele explicita seu sentimento: “Amais, senhor? ”, Hipólito responde: “Tu que na alma me lês desde que ao mundo vim, poderás exigir-me o indigno desmentido? ”

Hipólito, em toda essa família orientada pelo sexo é o único a buscar alternativas racionais para não se deixar arrastar pela paixão.

Surge o boato da morte de Teseu; Hipólito crê na possibilidade de unir-se a Arícia e, inclusive, de devolver o cetro à sua família, usurpado que fora no passado por Teseu, pois isto já não representaria uma traição filial. Então, ele se declara.

Assim como fez o jovem enteado, convencida de que Teseu não voltará e instigada pela ama, a quem já havia confessado estar sofrendo dos “fatais furores” do amor, Fedra decide declarar-se a Hipólito, que se mostra surpreso e indignado.

Mas a trama traz Teseu de volta a Atenas. Temendo que Hipólito a delatasse ao pai, Oenone, a serva amiga de Fedra, encarrega-se de incriminá-lo, sugerindo que o amor incestuoso partira do filho e não da esposa. Fedra, tal qual a esposa bíblica do castrado Putifar, ficara de posse da espada de Hipólito, e esta é a prova da culpabilidade do enteado, na versão mentirosa de que ele tentara violentá-la.

Duas mortes se sucederão: a ama se suicida e o jovem Hipólito, vitimado pelo pai, que não deu crédito às suas palavras, e que atraiu a fúria vingativa de Poseidon, senhor dos mares, morre esquartejado pelos próprios cavalos.

Somente então, após essa morte, Fedra declara em viva voz:

“Cada instante é precioso; ouvi-me, pois, Teseu:

Fui eu que ousei poluir este filho exemplar,

Tão casto quão leal, com incestuoso olhar”.

Fedra, complementando o círculo de sexo-paixão e devastação, suicida-se. Teseu desespera-se como o homem que, enganado pela mulher, encomendara aos deuses a morte do próprio filho.

Não nos admiremos da importância desta tragédia de autoria de Racine, que se origina na tradicional tragédia grega, para os conceitos psicanalíticos de Freud e de Lacan.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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