O mundo está em tamanha transformação que tudo parece ter um novo modo de ser, um novo lugar. Nem mesmo o capitalista de hoje é como foi o de antigamente, aquele que “explorava os trabalhadores, mas produzia, gerava produto e pagava impostos”.
A assertiva do economista Ladislau Dowbor parece irônica, mas é real. As transformações têm descentrado até lógicas econômicas que, por mais perversas que pareciam ser, ainda tinham um mínimo de geração de bem-estar social. “A fragilidade do atual sistema dominante consiste precisamente no fato de ser economicamente, social e ambientalmente disfuncional”, observa.
Na entrevista concedida por correio eletrônico à IHU On-Line, Dowbor detalha que, na atualidade, o grande vilão não é nem mesmo o capitalismo, mas o capitalismo rentista, pois o patrão “de mão no bolso, vê o seu dinheiro crescer de maneira exponencial. Ele ganha com juros altos, pois os recebe. Mas a massa da população, a pequena e média empresa e, o Estado, pagam juros sobre a dívida. Pagam esses juros, precisamente, para os que vivem de aplicações financeiras”. O resultado é que “a população perde capacidade de compra, a empresa capacidade de investir, e o Estado, capacidade de prover políticas públicas e infraestruturas”. Por isso, defende uma inversão: “a economia precisa se recentrar no bem-estar das famílias e na sustentabilidade do planeta. A visão de sucesso econômico precisa se deslocar da glorificação dos bilionários, que souberam como arrancar um pedaço maior, para o reconhecimento de quem mais contribui”.
Dowbor ainda destaca que já há saída para essa situação. “Trata-se, de um lado, de reduzir os impactos destrutivos. Por outro lado, trata-se de promover o acesso gratuito, público e universal a um conjunto de bens essenciais”. Ações que, nesse nosso tempo de avanços tecnológicos, já têm a possibilidade de implementar essa reconversão. “Mas não temos poder político sobre as corporações que geram o desastre”, acrescenta.
Ladislau Dowbor é economista e professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema “S”. Formado em economia política pela Universidade de Lausanne, na Suíça, também é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, na Polônia.
Revista IHU On Line
Na atualidade, o grande vilão não é nem mesmo o capitalismo, mas o capitalismo rentista
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Podemos afirmar que a economia do nosso tempo assumiu tamanha centralidade a ponto de pôr a sociedade a seu serviço, invertendo a lógica para a qual o campo econômico foi concebido? Por quê?
Ladislau Dowbor – No mundo, a produção de bens e serviços aumenta em média 2% ao ano. É que produzir é trabalhoso. Mas as aplicações financeiras rendem em média, nas últimas décadas, entre 7% e 9% ao ano. O dinheiro – não o nosso, que serve para pagar as contas, mas o dos ricos – vai para onde rende mais.
Isso gera as fantásticas fortunas financeiras de quem não produz, mas drena os processos produtivos em seu proveito. Hoje o 1% mais rico tem mais do que os 99% seguintes, o que deformou radicalmente a economia. O PIB cai, e os lucros dos bancos e dos rentistas se expande. A economia real, que é o que nos interessa, perde espaço.
De que forma o mercado e, consequentemente, as corporações assumem a capacidade de drenar recursos e esvaziar o papel das políticas públicas?
O mecanismo é o que se chama de efeito bola de neve. Um bilionário que aplica o seu bilhão em papéis que rendem modestos 5% ao ano está ganhando 137 mil por dia. No dia seguinte o seu rendimento será sobre o bilhão mais 137 mil e assim por diante. De mão no bolso, vê o seu dinheiro crescer de maneira exponencial. Ele ganha com juros altos, pois os recebe.
Mas a massa da população, a pequena e média empresa e o Estado pagam juros sobre a dívida. Pagam esses juros, precisamente, para os que vivem de aplicações financeiras. A população perde capacidade de compra, a empresa capacidade de investir, e o Estado capacidade de prover políticas públicas e infraestruturas. O volume dos nossos impostos transferidos para os bancos e a classe média alta rentista foi de 310 bilhões de reais em 2018, é tanto a menos para políticas públicas. Equivalem a 10 vezes o Bolsa Família.
Como o relatório do Roosevelt Institute , divulgado recentemente, põe em xeque a perspectiva de que faltam recursos para financiar políticas públicas? E que outra economia se pode conceber a partir do que revela o relatório?
O relatório está centrado em dois conjuntos de medidas: restringir o poder das corporações e recuperar a capacidade de ação do Estado. Hoje, temos essencialmente um Estado apropriado por grandes corporações, que ditam políticas como, por exemplo, a lei do teto de gastos, a apropriação da previdência pelos bancos, a liberação dos agrotóxicos proibidos em outros países, o desmatamento da Amazônia, a entrega da Embraer, a venda de terras aos grupos internacionais, a entrega do petróleo e assim por diante.
Assim, as corporações agem indiretamente, por meio do Estado, que perdeu a sua função de defesa dos interesses públicos. Trata-se de enquadrar as corporações e de promover ações diretas do Estado, em particular no fornecimento de bens públicos como saúde, educação e semelhantes. Clique para acessar as principais propostas.
O esvaziamento da perspectiva política da economia pode ter contribuído para a resignação do campo a lógicas tecnocráticas? Por quê? E de que forma a economia política é capaz de frear a centralidade do mercado e a imposição de suas lógicas ao campo da economia?
Não se trata de lógicas tecnocráticas, mas de narrativas pseudotécnicas destinadas a obscurecer os mecanismos de apropriação de dinheiro por meio de sistemas financeiros deformados. Agiotagem, na maioria dos países, é crime. Mas os caminhos para se recolocar a economia nos rumos construtivos são evidentes e bem conhecidos. O dinheiro que vai para a base social dinamiza a demanda, o que estimula a produção, o que por sua vez amplia o emprego, gerando mais demanda e um ciclo ascendente de desenvolvimento. Não gera inflação, pois temos uma grande capacidade ociosa das empresas.
O aumento da produção e do consumo de massa também amplia a receita tributária, o que permite financiar as políticas governamentais e ampliar o outro eixo de bem-estar da população que é o acesso aos bens e serviços públicos, como saúde e educação, gerando uma prosperidade que se amplia. Assim temos desenvolvimento sem gerar déficit. O Estado, pela sua capacidade de dinamizar a demanda na base da sociedade, precisa ter um papel central na promoção dessa dinâmica. Inversamente, o dinheiro no topo da sociedade gera especulação financeira, evasão fiscal e déficit nas contas.
De que forma a transição ecológica pode impactar a concepção de novas formas de trabalho e, consequentemente, de uma outra economia?
Sabemos o que deve ser feito, e os 17 objetivos da Agenda 2030 constituem um caminho que não só é claro como aprovado pela quase totalidade dos países, Brasil inclusive. Trata-se, de um lado, de reduzir os impactos destrutivos, como o aquecimento global, a perda de biodiversidade, a perda de solo fértil, a contaminação generalizada da água, a liquidação da vida nos mares e assim por diante. Envolve reconversão energética, agricultura de precisão, regulação das corporações e assim por diante. Temos os recursos financeiros e tecnológicos para assegurar esta reconversão, mas não temos poder político sobre as corporações que geram o desastre.
Por outro lado, trata-se de promover o acesso gratuito, público e universal a um conjunto de bens essenciais, e em particular à saúde, educação, água segura e semelhantes, bens e serviços que constituem bens públicos e de consumo coletivo, exigindo gestão pública. Melhoram radicalmente o bem-estar das famílias e geram muito pouco impacto ambiental, pelo contrário, em geral melhoram o nosso convívio com a natureza, além de gerar mais empregos. Não são “gastos”, como gosta de afirmar o governo, são investimentos nas pessoas. Um real investido em saneamento básico, por exemplo, reduz em quatro reais os gastos com doenças.
Ao longo dos últimos anos, o capitalismo tem revelado uma grande capacidade de transformação e superação das crises geradas por ele mesmo. Como compreender essa capacidade de transformação? E é possível conceber um sistema econômico que opere a partir das bases do capitalismo, mas que aja no sentido contrário?
O capitalismo está vivendo uma dinâmica profunda de transformação, que resulta em grande parte das dinâmicas tecnológicas. O que surge tem sido caracterizado de capitalismo global, financeiro, parasitário, imaterial e outros qualificativos que tentam captar que tipo de deformação está em curso. Eu trabalho com a hipótese de que estamos vivendo uma revolução digital que é tão profunda quanto foi a transformação dos sistemas agrários pela revolução industrial. Não é uma indústria 4.0. É muito mais do que isso. Temos de parar de analisar apenas como o passado está se deformando, e pensar que novo sistema está se formando.
Apresento os principais eixos de mudança num ensaio, Além do Capitalismo: a revolução digital . A borboleta é uma continuidade da lagarta, mas a natureza é qualitativamente diferente. As mudanças são sistêmicas. Precisamos deslocar o raciocínio. É a sociedade do conhecimento que precisa de outras regras.
O papa Francisco está conclamando economistas a pensar noutras formas de economia. O que está na gênese dessa proposta do pontífice? Quais os desafios para se levar essas questões de fundo de suas reflexões para a prática do campo da economia?
O papa Francisco está rigorosamente sintonizado com o que há de mais moderno nas propostas, em particular na Agenda 2030. A economia precisa se recentrar no bem-estar das famílias e na sustentabilidade do planeta. A visão de sucesso econômico precisa se deslocar da glorificação dos bilionários, que souberam como arrancar um pedaço maior, para o reconhecimento de quem mais contribui. Pasteur não precisou ser bilionário.
Na mensagem do Papa, eu vejo um profundo resgate de valores. Em termos econômicos, os caminhos são claros. O bem-estar das famílias, ao ser generalizado – como, por exemplo, no New Deal do Roosevelt, no Well-Fare State da Europa, ou nas políticas de 2003 a 2013 no Brasil, que o Banco Mundial qualificou de Golden Decade of Brazil –, gera uma maior demanda de massa, que por sua vez dinamiza as atividades empresariais. Ambas geram, além de empregos, mais receitas para o Estado, o que lhe permite financiar a outra dimensão do bem-estar das famílias, que é o acesso aos bens de consumo coletivo que mencionamos acima.
Hoje, no Brasil e no mundo, vivemos o ápice do liberalismo? E de que ordem é esse liberalismo?
Vivemos essencialmente uma desordem econômica, política e social. A economia, e em particular o sistema financeiro, tem como palco o planeta. O dinheiro hoje é imaterial, dinheiro-papel representa apenas 3% da chamada liquidez. E dinheiro imaterial viaja pelo mundo em tempo real por meio dos computadores. Mas os governos que tentam regular o sistema financeiro estão fragmentados em 193 países membros da ONU, cada um puxando para o seu lado. Há um desajuste sistêmico entre a dimensão global da economia e a dimensão nacional dos governos.
Com isso se gerou a impotência das políticas públicas e o vale-tudo econômico que vemos nas fraudes dos bancos, de empresas do porte da Volkswagen, de empresas farmacêuticas, de empresas energéticas, do agronegócio, nos desastres como em Mariana e Brumadinho. No meu livro A Era do Capital Improdutivo , disponível gratuitamente online, analiso essas transformações, inclusive com pequenos vídeos para cada capítulo. Acho vital que mais pessoas entendam os mecanismos de opressão que estão sendo gerados, bem como os caminhos que temos pela frente. Estamos funcionando no século 21 com regras do jogo de outra era. É só observar o caos político mundial que se expande.
O socialismo ainda é uma perspectiva política e econômica que pode fazer frente ao liberalismo? Por quê?
Temos de requalificar o que entendemos por socialismo. Em particular, sair da simplificação de que a esquerda quer estatizar e a direita privatizar. Somos sociedades demasiado complexas para simplificações ideológicas deste tipo. Mas os objetivos são claros: temos de assegurar uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável. Assim, temos um “norte”. O vale-tudo das corporações, e a opressão das populações, que é o que vivemos, não pode continuar a se cobrir de legitimidade científica com termos como liberalismo ou neoliberalismo.
Wolfgang Streeck diz que não é o fim do capitalismo, mas o fim do capitalismo democrático. O conceito de socialismo é forte no que associamos de decência no comportamento político, de visão humanista, de redução das desigualdades, de resgate do meio ambiente. É o tal do “outro mundo possível”. Mas precisamos mostrar que uma outra forma de gestão da sociedade é possível. Trata-se de formas concretas de organização do processo decisório da sociedade. Para mim, socialismo democrático parece ótimo como horizonte político.
O socialismo se construiu em diferentes sociedades, em diferentes momentos (como a Rússia de 1917 e a China de 1949). A partir desse dado, pode-se afirmar que o socialismo é um modelo que, como o capitalismo, possui uma grande capacidade de adaptação? Em que medida o(s) socialismo(s) se adapta(m) ao século XXI, atravessado pelas mudanças tecnológicas e culturais?
Eu trabalho com o conceito de economia mista. Produzir sapatos, carros e cosméticos pode perfeitamente ficar no âmbito da economia privada, mas com regulação, em particular pelos impactos ambientais. Mas as grandes infraestruturas de transporte, de energia, de comunicação e de água/saneamento precisam ser planejadas e geridas em função do bem comum, na lógica de um desenvolvimento equilibrado. Aqui, o Estado e o planejamento têm de exercer papel dominante.
Já as políticas sociais, como saúde, educação, segurança e semelhantes, onde funcionam bem, são públicas, gratuitas e de acesso universal. Sai muito mais barato e é muito mais eficiente do que a indústria da doença, a indústria do diploma, sem falar das milícias privadas. Aqui o Estado é fundamental, e de forma descentralizada, com lógicas diferenciadas segundo as condições. Em outra área, temos de exercer rigoroso controle sobre os grandes sistemas de intermediação financeira, que hoje deformam todo o processo de desenvolvimento.
Isso porque as finanças não são um setor, são uma dimensão de todas as nossas atividades. Se reduzimos as políticas sociais públicas, por exemplo com o teto de gastos, as famílias são empurradas para os planos privados de saúde, hoje mecanismos de extorsão. A intermediação financeira é atividade meio, ninguém come dinheiro. Só é legítima quando canaliza os recursos para o que nós como sociedade queremos priorizar. Apresento estas novas articulações num pequeno estudo, O pão nosso de cada dia: processos produtivos no Brasil .
A economia não é misteriosa, é só seguir o bom senso. Mas quando estão nos ferrando, querem demonstrar que é para o nosso bem, o que exige análises econométricas que realmente ninguém entende. E o objetivo deles é esse mesmo. Se você não entendeu, desconfie.
A construção do socialismo pressupõe método e disciplina por parte da classe trabalhadora. Levando em conta a característica dos movimentos de hoje, que se dão de forma descentralizada e efêmera, é possível afirmar que, nesse contexto, podem emergir “outros socialismos”?
Os desafios hoje se tornaram mais complexos. Não estamos mais no tempo em que havia a burguesia, o proletariado e o campesinato, e a luta de classes. Há uma profunda fragmentação social, formas muito diferenciadas de inserção que dificultam as identidades e solidariedades sociais. Hoje estão se tornando mais fortes eixos de identidade em torno do gênero, raça, religião, regionalismos. E as formas de construção de laços mudam profundamente com as redes sociais e as novas tecnologias.
Mas há grandes eixos de unificação de lutas. O que estamos enfrentando é um sistema que está destruindo o nosso futuro no planeta, e no mundo todo as pessoas estão despertando e se mobilizando. E a desigualdade está atingindo bilhões de pessoas, que hoje estão conscientes de que deveriam poder ter acesso a uma saúde decente, a escolas decentes. Não há mais pobres como antigamente, eternamente conformados. O saco cheio está se generalizando, como inclusive vemos no aproveitamento eleitoral de uma direita que navega no ódio. E em particular, está cada vez mais evidente que este duplo drama ambiental e social é gerado por uma minoria rica, poderosa e improdutiva. O que temos em paraísos fiscais, entre 21 e 32 trilhões de dólares, equivale a um terço do PIB mundial. Evasão fiscal, corrupção, lavagem de dinheiro, especulação financeira.
O capitalista de antigamente explorava os trabalhadores mas produzia, gerava produto e pagava impostos. A destruição do planeta é obra de uma minoria planetária que é improdutiva, desvia os recursos necessários para a reconversão das nossas economias para a sustentabilidade ambiental e a inclusão social. A fragilidade do atual sistema dominante consiste precisamente no fato de ser economicamente, socialmente e ambientalmente disfuncional. Como muitos economistas importantes que nada têm de esquerda hoje proclamam, de Joseph Stiglitz no Roosevelt Institute até Martin Wolf no Financial Times, este sistema perdeu a sua legitimidade.
Deseja acrescentar algo?
Sugiro fortemente que as pessoas peguem a minha análise nos 15 vídeos de 10 minutos que acompanham o livro A Era do Capital Improdutivo. Não precisamos ser economistas para entender como nos ferram, e como nos defender .■
*Ladislau Dowbor é fundador da Diálogos do Sul
Entrevista publicada originalmente em:http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao537.pdf
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