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A filosofia do Bem Viver é a única forma de superar o neoliberalismo, diz Alberto Acosta

Juliana Gonçalves
Brasil de Fato

Tradução:

O economista equatoriano, professor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e espécie de “porta-voz” da filosofia do “Bem Viver”  contou um pouco sobre a construção desse novo matiz de pensamento político, que nasce no seio das comunidades tradicionais no mundo e compreende todas as formas de vida sob o mesmo conjunto de direitos fundamentais.

Em passagem pelo Brasil na última semana, a convite do 15ºCongresso Mundial do Lazer que ocorreu entre os dias 28 de agosto e 2 de setembro, em São Paulo, Alberto Acosta falou à reportagem do Brasil de Fato. O economista, professor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e espécie de “porta-voz” da filosofia do “Bem Viver”  contou um pouco sobre a construção desse novo matiz de pensamento político, que compreende todas as formas de vida sob o mesmo conjunto de direitos fundamentais.

Em 2016, Acosta lançou o livro “O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos”, no qual faz duras críticas à ideia de “desenvolvimento” criada pelas elites burguesas e perseguida inclusive por movimentos que se consideram progressistas ou de esquerda, e apresenta o conceito do “Bem Viver” como única alternativa possível para a superação do neoliberalismo. Para o autor, “seguimos presos à ideia do desenvolvimento”.

Acosta presidiu o processo Constituinte do Equador que incluiu o conceito do Bem Viver na Constituição do país. Nascido em berço andino, o “Bem Viver” propõe o combate ao capitalismo e suas relações de opressão a partir de outro modelo de sociedade, com base comunitária.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Professor, no seu livro podemos perceber que o Bem Viver é um conceito em construção e em disputa. Pode falar sobre isso?

Alberto Acosta: É construção porque podemos fazer algo novo, mas simultaneamente podemos reconstruir e recuperar todo esse conhecimento que vem de uma memória antiga. Porque as ideias do Bem Viver não aparecem recentemente. Não são ideias que foram construídas na academia, nas universidades ou partidos políticos, são ideias e valores, experiências e muitas práticas existentes em muitas comunidades.

Quando falamos em Bem Viver nos remetemos a origens andinas. Porém, no seu livro, o senhor fala sobre ‘correspondência’ com outras culturas como a guarani e a africana. Como é isso?

Naturalmente o que mais conhecemos são as origens da indigeneidade amazônica e andina, mas há outras formas de ancestralidade em diversas partes do planeta. O Bem Viver também tem origens africanas. Se você estudar um pouco mais o movimento negro e o mundo negro vai encontrar elementos do Bem Viver. Nós encontramos por volta de 2004, mas o Bem viver já estava no mundo indígena. Encontramos isso [Bem Viver] buscando alternativas ao neoliberalismo.

Quando se fala em comunidades tradicionais e seu legado, qual cuidado é necessário termos?

Não podemos idealizar o mundo indígena, nem tudo que vem dele é necessariamente transformador. Os mundos indígena e africano têm mais de 500 anos de conquista e colonização que não terminou. A colonização segue presente na República, não acabou quando os portugueses e espanhóis foram embora. No mundo afro e indígena, isso [a ideia do Bem Viver] está se perdendo rapidamente, por conta do individualismo, alimentado pelo produtivismo, consumismos, o afã de lucro que vai destruindo as raízes comunitárias.

O senhor apresenta alguns problemas estruturais da sociedade como o racismo como manifestação dos resultados dessa colonização, como isso se relaciona com a sociedade neoliberal?

A matriz do capitalismo, de onde surge o capitalismo, é o racismo e o patriarcado. Essas são as raízes. Não se trata apenas de acabar com a exploração dos seres humanos e da natureza, temos que terminar com o patriarcado e colonialidade. Não há nenhuma ideia com tanta potência como a do racismo, a da raça, para dominar o mundo.

Além da universalização dos valores eurocêntricos, a ideia de branqueamento faz parte da deterioração de outros valores civilizatórios, como os indígenas e africanos?

Me parece que é fundamental uma aproximação do processo de branqueamento existente na sociedade, que se manifesta em múltiplos mecanismos. O que significa branquear a sociedade, é negar os valores das culturas e línguas indígenas e afro. E esse é um ponto forte, por isso é uma ferramenta de dominação, as raças, a ideia de raça. É a ferramenta de dominação mais poderosa na história da humanidade. Os brancos justificavam os processos de dominação não só na América, mas em outras partes, por meio da sua supremacia branca. Viam como normal matar africanos depois que mataram milhões de indígenas.

A relação entre o homem e a natureza ganha outra dimensão com o Bem Viver. O senhor poderia falar sobre esse ponto?

Para as pessoas do mundo indígena, a natureza não existe como a vemos. Nós vemos a natureza fora e distante. Nos colocamos à margem da natureza a partir de uma visão judaico-cristã de que a natureza está aí para ser dominada. Deus, quando expulsou Adão e Eva do paraíso, foi para que se multiplicassem e dominassem a natureza. No mundo indígena não há isso, os indígenas entendem que são natureza. Não há separação entre natureza aqui e os seres humanos lá, nós somos a natureza.

O discurso de defesa da natureza, embora pertinente, é muitas vezes corrompido por não pontuar as questões de classe embutidas ou por ser relativizado pelos próprios governos…

Seguimos presos à ideia do desenvolvimento. Não podemos dizer para o povo proteger a natureza tolerando a miséria, a pobreza. Se sai em defesa da natureza, puramente pela natureza, podemos cair num ecologismo que pode ser imperialista. Tenho visto e ouvido propostas que os países ricos têm que proteger a Amazônia, porque é boa para todos. Não senhores, nós [países empobrecidos] que vamos proteger a natureza, mas gerando condições para que haja justiça social. Não vai haver justiça ecológica sem justiça social e nem justiça social sem justiça ecológica. Tudo precisa vir junto, direitos humanos e direitos da natureza, que não são os mesmo, mas são complementares, os dois se potencializam.

Aqui no Brasil está cada vez mais forte o debate do quanto as esquerdas precisam incorporar pautas diversas. Como essa discussão dialoga com o Bem Viver?

Uma esquerda que não vê o racismo é uma esquerda colonial. Uma esquerda que ignora o feminismo é uma esquerda patriarcal. Uma esquerda que ignora a ecologia é marrom [termo usado para designar governos progressistas que defendem uma pauta desenvolvimentista e ignora impactos socioambientais]. A esquerda tem que ser simultaneamente socialista, feminista, ecologista e decolonial. Eu creio que isso é fundamental para as esquerdas: aprender a recuperar as diversidades.

O seu livro apresenta como um dos desafios do Bem Viver saber construí-lo dentro das cidades, aliado à lógica urbana. Essa tarefa é bem complexa, tendo em vista que as cidades estão cada vez potencializando as individualidades e não o comunitário…

Creio que isso seja uma grande tarefa, identificar o comunitário, a vida em comunidade. Outra prática muito importante é como se tomam decisões nas comunidades. Claro que não é fácil. Não se pode pensar em uma participação de todos os habitantes de São Paulo em um teatro tomando decisões, mas sim, podemos pensar em nível mais local, as comunidades tomando decisões. Esse é um ponto chave e o segundo é sobre a relação com a natureza, isso é fundamental. No campo é relativamente mais fácil, o comunitário no campo está mais presentes, nas cidades não.

Hoje vivemos um momento de queda dos governos progressistas, e no Brasil, um golpe que retira cada vez mais direitos e extermina o saldo positivo deixado nas gestões democráticas anteriores. No entanto, houve uma dignidade que foi fragilmente conquistada pela via do consumo, como vê isso?

Políticas sociais e de transferência de recursos, como o Fome Zero, que combateu a fome e reduziu a pobreza de 30 milhões de pessoas, são muito boas, mas não afetaram os mecanismos de acumulação de capital. Com muito dinheiro, pelos alto preços da matéria-prima, dinheiro terminou com os ricos. Os ricos ficaram mais ricos e os pobres deixaram de ser tão pobres.

O senhor está dizendo que embora tenha caído a pobreza, a concentração de riqueza também subiu, ou seja, não se afetou a modalidade econômica?

Se vermos o Produto Interno Bruto do Brasil antes do governo do PT e agora, veremos que a indústria, que tem uma participação importante, tem menos agora, porque aumentou a venda de matérias-primas. Então isso explica porque para muita gente foi bom, mas para os ricos foi muito melhor. Porque não se afetou a lógica de acumulação.

Com esse cenário pós-golpe, onde as forças progressistas tentam se rearticular, está mais favorável falar em Bem Viver?

Lamentavelmente não, porque estão ganhando forças os governos neoliberais.

Edição: Diego Sartorato


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Juliana Gonçalves

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