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Ricardo Carlos Gaspar*
O espaço geográfico e social que forja o caráter dos inesquecíveis personagens do Prêmio Nobel de Literatura de 1982, Gabriel García Marquez, é pouco conhecido, mas não menos fascinante que sua narrativa.
O reconhecimento da beleza dessa região e da cultura de seu povo constitui uma justa homenagem àquele que é considerado uma das maiores expressões literárias do continente americano em todos os tempos.
Podemos mapear esse espaço geográfico percorrendo o Caribe colombiano e seu exuberante cenário natural e humano, onde a maioria de seus contos e romances se desenrola.
Esse ambiente desvenda parte do mistério da prosa desse novelista, um dos grandes responsáveis pela difusão da literatura latino-americana no mundo, a partir das últimas décadas do século passado.
O percurso que aqui empreenderemos incorpora obras literárias marcantes de Gabriel García Márquez, relacionando-as a determinados lugares.
Identificamos entre parênteses os livros onde os referidos acontecimentos ficcionais podem ser encontrados.
Fica muito clara a influência do meio físico e social sobre a imaginação do escritor, nascido em 1928, na pequena cidade de Aracataca, na Colômbia.
Principiamos pela joia colonial que é Cartagena de Índias. Principal baluarte espanhol do comércio com as Índias Ocidentais ao longo dos séculos XVI e XVII, Cartagena ostenta hoje, no seu território amuralhado e nas fortalezas que cercam a sua baía, inúmeros testemunhos daquele tempo de glória e martírio.
A cidade foi cenário de passagens memoráveis da pena de Gabo, além de ter sido moradia do escritor ainda jovem, quando ele se aventurava no jornalismo.
Ali o amor desvairado de Florentino Ariza por Fermina Daza (Do amor e outros demônios) errou pelas mansões e igrejas decrépitas do centro colonial, e pelos prostíbulos e bairros pobres dos manguezais que cercam, ainda nos dias atuais, parte da cidade.
No antigo Convento de Santa Clara – hoje transformado em hotel de luxo -, o escritor encontrou o túmulo de uma marquesa menina, cuja imensa cabeleira lhe fizera recordar as estórias de sua avó materna.
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Pouco mais de uma hora em moderna rodovia separa atualmente Cartagena do maior centro econômico do norte colombiano, a arborizada, quente e fervilhante Barranquilla.
Na fronteira urbana oriental fica a desembocadura do Rio Magdalena, que encontra o oceano nas águas turbulentas das “Bocas de Ceniza”.
Às margens do caudaloso leito fluvial, as corpulentas fêmeas de peixe-boi amamentavam suas crias e emitiam lamentos de sereia, desnorteando os tripulantes das linhas regulares de passageiros que cruzavam o rio no início do século passado (O amor nos tempos do cólera).
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Mais adiante está Ciénaga e a balbúrdia de seu comércio.
Pela mistura de artigos de toda ordem, gritos dos mercadores e centenas de pessoas dividindo o leito da rua poeirenta com tachos de comida fumegante, “bicitaxis” (parecidos com os “riquixás” do sul da Ásia), veículos de tração animal e buzinas estridentes, o cenário lembra as feiras populares do Oriente distante, se descontada a ausência de camelos e vacas nas vias públicas.
Ciénaga está a meio caminho entre Barranquilla e Santa Marta, concentrando boa parte de seus habitantes – que vivem da venda de ostras e ceviches aos viajantes que cruzam a rodovia – em choças miseráveis à beira das lagunas.
Na estação ferroviária do lugarejo foi perpetrada a matança de trabalhadores bananeiros em greve e seu “esquecimento” oficial, uma das passagens memoráveis de Cem anos de solidão.
Duas horas em estrada asfaltada e bem sinalizada, beirando o Caribe, separa Barranquilla da histórica cidade de Santa Marta, onde está situada a bela Quinta San Pedro Alejandrino, testemunha das últimas semanas de vida de Simón Bolívar, que ali morreu.
Em O general e seu labirinto, Gabriel García Márquez recria esses angustiosos dias, quando o Libertador vagava entre a febre delirante de suas recordações e a paixão por Manuela Sánchez, a derradeira amante que superou em vão numerosos obstáculos na tentativa de vê-lo ainda com vida.
A poucos quilômetros dali, nas vertentes da Serra Nevada, estão os vestígios da outrora poderosa civilização Tairona, da qual derivou uma descendência que ainda hoje habita a mesma região de seus ancestrais e conserva indumentária e costumes seculares.
Em dias claros, dali se pode divisar a imponência do pico Cristóbal Colón, desafiando as águas do Caribe com seus mais de cinco mil metros de altitude e neves eternas.
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Mais duas horas avançando rumo ao interior do país, acompanhados à distância pelos trilhos da ferrovia que hoje conduz minério de ferro (não mais transporta passageiros) para embarque no porto de Santa Marta, e margeada por intermináveis extensões de plantações bananeiras, chegamos à Aracataca, a lendária Macondo da saga da família Buendía.
Ao contrário do que Gabo encontrou quando lá retornou, com sua mãe, na idade de 22 anos, para vender a residência da família (Viver para contar), Aracataca não é mais aquela cidade fantasmagórica e em ruínas que impressionou o jovem escritor e marcou sua ficção por toda a existência.
Continua a depender da banana que, na atualidade, vive um bom momento – é comum observarmos plantações modernas com pistas de pouso para aeronaves agrícolas – e confere certo dinamismo à vida urbana local.
Porém, a pequena cidade ainda guarda os traços do realismo mágico nas cores das fachadas e na sua gente, nas famílias protegidas do calor inclemente sob grandes guarda-sóis, nas matronas que se penteiam, fazem pés e mãos nas calçadas em frente às casas, nos mulatos caribenhos jogando dominó na sombra das árvores da praça principal ou bebendo rum ao som estridente de salsas e cumbias, nos aromas do sancocho (refogado picante de carnes e, ocasionalmente, frutos do mar) saídos de fumegantes panelas, no apito diário do trem que corta o povoado sem parar na estação deserta.
Testemunha daqueles tempos, a antiga casa do escritor (hoje transformada em museu), com a enorme amendoeira no quintal que algum dia abrigou, sob um pequeno teto de palha construído em suas ramagens, o glorioso Coronel Aureliano Buendía, no delírio das suas últimas semanas de vida (Cem anos de solidão).
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Já no extremo norte da Colômbia e habitada pelos índios wayúu está a península da Guajira, na região mais setentrional da América do Sul, o ponto onde um deserto em forma de vela se encontra com os infinitos verdes e azuis do mar das Antilhas.
A Guajira está presente na maioria dos contos e novelas de Gabriel García Márquez.
Depois de percorrer o deserto rumo norte numa estrada pedregosa perfeitamente reta e paralela à ferrovia que transporta carvão desde as minas de “El Cerrejón” até Puerto Bolívar, onde vai ser embarcado para o mundo, adentramos outro universo cultural, que conserva sua própria língua e costumes, de origens pré-colombianas.
As famílias que compõem essa comunidade nativa vivem em agrupamentos de casas de adobe, construídas no deserto e conhecidas como “rancherías”.
Ali se desenvolve o rico artesanato local, constituído principalmente por vestidos, mochilas e redes multicoloridas.
Também apascentam ovelhas, a mais importante fonte de proteínas dos guajiros, junto com os pescados e as tartarugas, presentes nos suculentos desjejuns da região.
Os homens vivem da pesca e também são hábeis comerciantes, nos tórridos centros de trocas e contrabando de Uribia e Maicao, este último próximo da fronteira com a Venezuela e do povoado lacustre de Sinamaica, no país vizinho.
Praias paradisíacas e noites de assombrosa beleza completam a experiência de conhecer esse remoto canto do continente americano.
Somente a trinta minutos do cruzamento viário de Uribia, na direção do mar, estão localizadas as salinas de Manaure.
Em imensas parcelas de água marinha, cercadas com areia, aquecidas e evaporadas pelo sol, os wayúu e negros antilhanos extraem o sal, tarefa que desempenham desde tempos anteriores à conquista, quando intercambiavam esse produto com sociedades vizinhas.
Um branco brilhante cega a vista e contrapõe-se ao azul turquesa do mar, em montanhas de mineral que alcançam a altura de edifícios de três andares.
Na imensidão desértica e nos vastos areais da Guajira Cândida Erêndira correu, para não mais voltar, da fúria ensandecida de sua avó desalmada.
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Costuma-se apresentar a Colômbia como a síntese da América Latina. No território do país fazem fronteira dois oceanos, convivem vales férteis e páramos gelados, a floresta amazônica e as altitudes andinas. Os tipos humanos, produtos desse ambiente, demarcam a riqueza do cenário cultural que moldou o realismo fantástico de uma das mais influentes manifestações literárias do século XX.
* Ricardo Carlos Gaspar é autor de ensaios e estudioso dos temas urbanos. Professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FEA/PUC-SP). Colaborador da Diálogos do Sul.