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A ideologia, o partido e sua castração

Nils Castro

Tradução:

Nils Castro*

Nils-CastroSob esse título coloco dois artigos sucessivos sobre o mesmo tema: de como o clientelismo político e o oportunismo neoliberal propiciaram o esvaziamento ideológico e a desnaturalização do Partido Revolucionário Democrático (PRD), do Panamá, fundado pelo general Omar Torrijos três anos antes de sua morte. Esse fenômeno, que não é excepcional na América Latina, acabou por levar o PRD ao maior desastre eleitoral e político de sua história, a ponto de colocar a disjuntiva de refundar-se ou perecer com mais penas que glórias.

Os artigos foram publicados no diário panamenho digital Hora Zero, nos dias 12 e 17 de junho de 2014.
É possível reconciliar o PRD com o torrijismo?
JOVENTorrijismo e PRD são coisas diferentes. O primeiro é herdeiro da cultura política patriótica e popular dos anos 1960, que nos anos 1970 influiu no governo reformador liderado pelo general Torrijos. Como corrente social, teve expressão política no movimento Novo Panamá. O PRD por sua vez, foi a estrutura político-eleitoral que dez anos mais tarde se somou ao torrijismo como meio para competir nas subsequentes eleições pluripartidárias.
Nesse curto espaço é impossível resumir as característica do torrijismo como forma de pensamento e motivações políticas nos 35 anos seguintes da evolução do PRD, porém cabe pontuar algumas coisas. Em seu início, o partido assumiu o torrijismo como sua ideologia, isto é, como o conjunto de ideias, métodos e costumes próprios de sua cultura política, o que está consagrado em sua Declaração de Princípio de Programa. Entre suas características destaca-se uma forte vocação social, inclusiva e reformadora, que impulsionou um novo sistema de representação popular –um método democrático no qual os pobres podiam competir com os ricos-; uma prolixa atenção aos problemas setoriais e locais que deu frutos tais como o Código do Trabalho e os comitês de saúde, etc., etc., bem como uma estratégia de desenvolvimento nacional similar as que agora tentam realizar os atuais governos progressistas latino-americanos.
Isso deu ao torrijismo um perfil ideológico compatível com a socialdemocracia daquela época, muito diferente da atual, que capitulou diante do neoliberalismo e agora contribui a desmantelar as conquistas sociais dos povos europeus.
Outra característica torrijosta foi um patriotismo popular que confiou em sua capacidade para solucionar por meios políticos o problema crucial do país: a recuperação da integridade territorial e da soberania e propriedade sobre o principal recurso da nação. Tudo isto, articulado a uma valorosa convicção independente, latino-americanista e não alinhada –e a coragem para erguer-se diante das grandes potencias-, deu a Panamá seus lustros de maior prestígio internacional.
Dita cultura política fincou fundas raízes em todo o país e deu ao PRD em seu início sua base social e uma capacidade organizativa irmanada com o sistema de representação popular daqueles tempos. Essa base permitiu que o partido emergisse como o maior e mais organizado e combativo do país. Tanto assim que resistiu aos embates do período que seguiu à morte física de Omar Torrijos, quando o PRD foi a primeira vítima dos erros da cúpula militar e dos seguintes intentos de desideologizar-lo e corrompe-lo, de eliminá-lo fisicamente sob a invasão dos Estados Unidos e, logo, submetê-lo à agenda neoliberal.
Sua base ideológica originaria se manifesta na capacidade das pessoas do PRD para aglutinar-se, inovar e superar adversidades, o que fez do partido um exitoso aparato eleitoral. Aparato que, por decorrência, foi grande atração a muitos arrivistas políticos que o procuraram e se filiaram para satisfazer suas ambições pessoais. A posteriori isso contribuiu para que o PRD tivesse crescimento clientelista alheio ao fortalecimento do papel político-cultural do torrijismo. Lamentavelmente, sucessivas direções nacionais do partido descuidaram da seleção e educação política dos novos filiados promovidos por esse fenômeno.
O crescimento clientelista do PRD se disparou como um hematoma malsã. Mutatis mutandis, o partido assumiu condutos e postulou candidaturas alheias e até opostas a seu caráter originário. Ocorreu um gradual divórcio entre o torrijismo e a máquina eleitoreira. E na mesma medida, uma importante proporção de quem antes se filiara por razões político-culturais e programáticas se desmotivassem e, em consequência, se desmobilizassem. Comprova o fato de que nas duas últimas eleições muitos dos membros de PRD deixaram de votar ou votaram por candidatos alheios ao partido, fazendo-se cair para segundo e agora ao terceiro lugar nas preferencias da cidadania.
O partido eleitoral suplantou o partido permanente e o partido das frentes de massa. Assim essas derrotas, causadas ao PRD por seus próprios dirigentes de turno, de novo colocam a necessidade de reconstruir ou refundar o partido. Não obstante, isso também traz um problema moral, questão da qual depende a confiança cidadã. Há muitas dúvidas sobre se essa organização política poderá ser reconstituída pelos mesmos que antes a deixaram desnaturalizar-se, ou por aqueles que buscam vesti-la a sua própria medida para candidatar-se.
Diga-se o que se diga, a crise do PRD vem de um longo processo de desenganche entre a base ideológico-cultura que antes lhe deu substancia e a superposição eleitoreira que logo substituiu sua natureza política original. Observando-se as experiências latino-americanas destes últimos anos, fica claro que o torrijismo hoje têm amplíssimas possibilidades de desenvolver-se e crescer como corrente político-cultural. Não obstante, muitos torrijistas já não confiam na estrutura do PRD nem em quem a representa.
De fato, os torrijistas percebem que ficaram sem um partido fiel a suas expectativas de desenvolvimento com justiça e equidade, e hoje buscam uma estrutura alternativa capaz de recuperar e conservar de conta nova a confiança dos torrijistas. Do contrário, com o passar do tempo outro movimento sociopolítico o substituirá.
Resgatar o torrijismo das manipulações
Mais que uma doutrina, o torrijismo é um método. O principal dessa corrente não está em citações ou frases que se encontram em testemunhos e documentos. Está na maneira com que os dirigentes e o povo torrijista enfrentaram, em seus respectivos lugares e tempos, os principais problemas do país.
O próprio Omar Torrijos –que deu nome a essa corrente por seus sucessos- não foi alguém dado a conversas teóricas: sempre preferiu dizer, em cada ocasião, o que correspondia a cada caso. Embora tenha feito vários discursos de relevante importância (por exemplo, o de “governador do que”, pronunciado no Conselho de Segurança da ONU), preferia oferecer o conceito oportuno no momento preciso. Para conhecer sua visão geral era melhor observar suas condutas e decisões em seu contexto do que colecionar suas frases, com frequência dotadas mais de ironia do que de intenções doutrinarias.
Em poucas palavras, há um modo torrijista de ser e de fazer, mais que uma postura de idealizar frases citáveis.
Este sempre foi um dos quebra-cabeças dos arrivistas e imitadores que foram se somando ao PRD para fazer carreira sem ter origem no torrijismo nem buscar o sentido de suas lutas e conquistas. Eles repetem frases soltas e perjuram beijar a bandeira e continuar sua obra, mas sem identificar-se com os destinatários, as intenções nem os objetivos de suas atuações. Faltam-lhes isso: o que é que prometem ‘continuar’?
Aqui não há o espaço necessário para cobrir esse tema. Não obstante, há um exemplo que –por muito que tenha sido gasto até esvaziá-lo de seu conteúdo-, que pode ajudar a ilustrar o tema. Trata-se da frase muito usada e traída: “quem mais consulta menos se equivoca”.
Em sua simples dimensão quantitativa este é um velho ditado de sentido comum e não se diferencia por sua genialidade. É uma falta de respeito reduzir o pensamento de Omar Torrijos a essa modica dimensão. Em realidade, o que deu relevância ao uso torrijista dessa frase foi o contexto e as intenções sociopolíticas que lhe deram sentido. Este foi (e é) um tema inclusivo, posto que “consultar” significou dar participação aos marginados de sempre; aos interioranos e aos camponeses, às organizações operárias, aos indígenas, ao movimento estudantil e aos intelectuais de esquerda.
Antes de que o torrijismo ascendesse ao governo, no Panamá as ações oficias já eram consultadas: aos gringos –civil e militares-, assim como aos chefes econômicos e políticos da oligarquia local, que eram sempre atendidos em suas opiniões. O que deu significado moral e político relevante a essa frase foi a dimensão inclusiva e democrática, ao ampliar a consulta efetiva aos grandes setores sociais que lhe davam substância, história e cultura à nação.
Em tempos da guerra fria, da confrontação nacional contra a “quinta fronteira” e de enfrentamento popular contra os foros e privilégios oligárquicos, a decisão de estender o campo de consulta e a participação aos setores e personalidades antes discriminadas e perseguidas foi um ato subversivo, isto é, subverteu a ordem que até então havia dominado o país.
Repetir –como se fosse um slogan comercial- que “quem mais consulta menos se equivoca”, obviando o corajoso sentido patriótico e social que deu novo valor moral e político à frase, não é um gesto torrijista. É um ato de desrespeito à circunstância histórica, ao povo e ao líder que deram a ela essa outra dimensão. Sobretudo agora, quando a nação ainda procura sair de um período em que a consulta cidadã foi cinicamente substituída por um regime de abuso autocrático e corrupto.
Outro tanto se pode dizer de numerosas outras ações, fatos e frases de Omar e do torrijismo que com o tempo os frívolos e os arrivistas esvaziaram e manipulam, castrando-lhe o sentido patriótico e social que lhe deu valor. O sentido que, precisamente agora, é indispensável recuperar para que este país possa encontrar o rumo perdido.
*Colaborar de Diálogos do Sul. Sociólogo e filósofo, foi assessor no governo de Omar Torrijos, um dos fundadores do PRD, foi embaixador do Panamá no México.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Nils Castro Um dos mais prestigiados intelectuais da região. É autor do livro “As esquerdas latino-americanas em tempo de criar”

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