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Maria José Silveira*
Desde que praticamente ele a comprou do pai, e a levou pra casa pra ser babá do filho, ela sabia que seu destino seria dele. Tipo uma coisa; uma propriedade. Não foi nenhuma surpresa quando ele a procurou no quartinho dos fundos. A surpresa foi quando, alguns anos depois, a esposa foi embora, e ele disse, Vou me casar com você, e casou.
No dia do casamento, ele tingiu os cabelos para que não ficasse óbvia a diferença de 31 anos entre eles. Mas não tingiu o bigode. A idade aparece é na cabeça, disse. No bigode, é besteira. Se eu quiser, eu raspo, disse.
Continuaram morando na mesma casa de sempre, um sítio rústico nos arredores da cidade. Perto da mata, onde ele ia caçar. Mas fazia tempo que não caçava mais. Acabou, dizia. Num tem mais caça, dizia.
Os filhos da primeira esposa cresceram, dela nasceram dois, e a vida continuou a de sempre, ela vivendo a vida dele, fazendo a comida dele, arrumando a casa dele, cuidando dos filhos dele, indo pra cama com ele.
Não saindo sem ele.
Quando deixou de trabalhar, ele passou a ficar mais tempo em casa. Nos dias de feira na cidade, ou nos domingos de missa, ela e os filhos entravam na Brasília velha, e ele os levava e trazia de volta. No mais das vezes, passava o tempo era no quarto onde guardava suas armas, suas coisas de homem. Não a proibia de entrar, mas não gostava que entrasse. Não precisa limpar, dizia. Deixa que eu mesmo cuido. São coisas minhas, dizia.
De vez em quando também dizia, Você é a única pessoa na minha vida, isso nas noites em que se punha emotivo, depois de esvaziar ou pelo menos deixar pela metade uma garrafa do uísque.
Nunca bateu nela, ou se bateu foi logo no comecinho e ela não se importou, não se lembra mais. Na primeira mulher, ele batia, mas nela não. E depois que se casaram, nunca. Batia era no filho mais velho, às vezes até batia muito, mas só quando ele merecia. Às vezes ele merecia mesmo, ela completou; maluco como ele era.
Se eu me sentia presa? No começo não entendeu a pergunta. Por não poder sair sozinha? Quando entendeu, perguntou, Pra que sair sozinha?, e riu de leve como se tivesse feito uma piada. Disse, Eu não me importava não. E riu um pouquinho mais, um fiozinho de riso torto que não dava pra saber direito se saía de sua boca ou se ficava por ali mesmo.
Só quando ele morreu, e um pessoal apareceu para ver o que tinha no quarto onde as coisas dele ficavam guardadas foi que ela ficou sabendo que o marido tinha sido um conhecido torturador. Muita gente desapareceu nas mãos dele, disseram. Na época da ditadura, lembra? Sabe quando foi?
Não, ela disse. Não sabia.
*Do núcleo de colaboradores de Diálogos do Sul