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"A situação do Brasil é gravíssima, mas dizer que não temos saída é tolice e comodismo"

Em entrevista especial, o jornalista Antonio Martins sugere que façanhas do governo Bolsonaro “abrem um imenso campo para a ação da esquerda”
patricia-fachin
Revista IHU On-line
Porto Alegre (RS)

Tradução:

O “autoritarismo” de Bolsonaro, suas declarações polêmicas e o agravamento das condições de vida da população “abrem um imenso campo para a ação da esquerda”, sugere o jornalista Antonio Martins à IHU On-Line. Mas a retomada do protagonismo político da esquerda, perdido em grande parte após a eleição do presidente Jair Bolsonaro, depende de ela deixar de “repetir automaticamente antigas fórmulas” e de dar-se conta da nova realidade e oferecer respostas a ela, diz Martins. Segundo ele, a “maioria da sociedade opõe-se aos valores do bolsonarismo” e prefere o diálogo à brutalidade e o exame sereno dos problemas do país em vez da polarização primária. Apesar disso, menciona, “o problema é que a esquerda tem sido incapaz, e mesmo indesejosa, de mobilizar estes sentimentos ou de dar consequência a eles”.

Depois de um ano do último pleito, pontua, os partidos de esquerda “estão cegos para os dramas urbanos – desde os das periferias, convertidas pelo capital em senzalas pós-modernas cada vez mais abandonadas e violentas, até os das classes médias, obrigadas a uma vida bovina entre automóveis e cimento, mal disfarçada por certa ilusão de consumo medíocre”. Na cena política atual, ao invés de propor novas pautas, “parte importante da esquerda institucional pensa em votar em favor de Aras no Senado, por seu vago aceno – sem nenhuma garantia – de que poderá frear alguns dos aspectos mais autoritários da Operação Lava Jato”, critica.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Martins analisa os primeiros meses do governo Bolsonaro e frisa que a “tentativa do presidente de defender seu filho às voltas com a Polícia Federal e de se rearticular com o Centrão e a ‘velha política’ contraria todo o discurso ‘anti-establishment’ e anticorrupção que é central à manutenção de sua base”.

Antonio Martins (Foto: Media Makers in Brazil)Ele comenta ainda que o debate em torno da sucessão presidencial de 2022, depois de nove meses governo, indica que “há um imenso vácuo político”.

Antonio Martins é jornalista e editor do sítio Outras Palavras. Participou da construção do Fórum Social Mundial e integra seu Conselho Internacional.

Em entrevista especial, o jornalista Antonio Martins sugere que façanhas do governo Bolsonaro “abrem um imenso campo para a ação da esquerda”

Foto: Thalita Carvalho – CC
Ilustração

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Num artigo recente, o senhor afirmou que o “pleito do ano que vem pode promover a difusão do bolsonarismo por todo o país; ou, ao contrário, sua derrota – e a emergência de uma esquerda de valores”. Quais são os elementos que poderiam levar à difusão do bolsonarismo e, de outro lado, quais são os elementos que poderiam levar à sua derrota?

Antonio Martins – O crescimento da extrema-direita no Ocidente é um fenômeno generalizado e perigosíssimo, mas que pode ser detido e revertido. O neoliberalismo esvaziou a democracia; as maiorias dão-se conta de que o sistema não é sensível a sua dor e anseios; a esquerda não é capaz de entender e muito menos dar respostas à nova realidade. Em todos os países em que este quadro se manifesta, abre-se caminho para forças que mobilizam o ressentimento em favor do autoritarismo e do retrocesso civilizatório.

O Brasil é um caso típico. Em quatro anos – a partir da segunda eleição de Dilma Rousseff – uma força política nova surgiu praticamente do nada para, em ambiente favorável, conquistar a Presidência, impor sua agenda ao Congresso e formar uma corrente de opinião poderosa nas ruas e redes sociais. Essa corrente está em declínio, ao menos temporário, porque não oferece ao país outro projeto além da destruição. Porém, não está extinta – e a brecha aberta pela paralisia da esquerda continua disponível. Diante deste vácuo, temo que, nas eleições de 2020, este movimento ganhe capilaridade. Será trágico se tivermos, passado o pleito, algumas milhares de cidades em que o poder local estará ocupado por esta corrente. Já sabemos, no plano nacional, o que isso significa. Nos municípios, onde quase sempre os controles democráticos são mais frágeis, pode ser trágico.

No texto, argumento que este desastre pode ser evitado. Como demonstram fartamente as pesquisas, os dois componentes da “nova” ultradireita – o proto fascismo de Bolsonaro e o ultracapitalismo de Paulo Guedes – são minoritários entre a sociedade. É possível vencê-los. Para isso, no entanto, é necessário que a esquerda deixe de repetir automaticamente antigas fórmulas, dê-se conta da nova realidade e responda a ela. Chamei este movimento de “hipótese Dráuzio Varella” porque exigiria, entre outros pontos, escolher candidatos a prefeito não convencionais e não ligados à lógica dos partidos – mas capazes de expressar valores opostos ao bolsonarismo, e majoritários entre a população.

O senhor menciona a possibilidade de surgir uma “esquerda de valores”. O que vem a ser isso? Quais são as possibilidades da emergência dessa esquerda de valores na atual conjuntura e quais seriam as “decisões não convencionais” que possibilitariam o surgimento dessa esquerda?

Poderia chamá-la de “esquerda Bacurau” – não em referência à violência da resposta aos invasores (plenamente justificável, na narrativa do filme), mas à defesa, numa pequena comunidade, de valores como a solidariedade, o respeito, a abertura ao outro, a igualdade, a coragem.

Uma ampla maioria da sociedade opõe-se aos valores do bolsonarismo. Defende a inteligência, em lugar da brutalidade; o diálogo e o respeito às opiniões alheias; o acesso de todos aos meios necessários a uma vida digna; o exame sereno dos problemas do país e das cidades, ao invés da polarização primária e da agressão a quem discorda; o acolhimento. Sempre que convidada a defender estes valores – e, é claro, as políticas associadas a eles – a sociedade entra em ação. É falso falar que vivemos um “estado de apatia”. Veja, por exemplo, desde 2015, as manifestações contra o golpe, os protestos espontâneos em todo o país contra o assassinato de Marielle, o #elenão e, mais recentemente, a solidariedade da população aos estudantes e educadores que encheram as ruas em defesa da Escola, da Universidade e da Ciência.

O problema é que a esquerda tem sido incapaz, e mesmo indesejosa, de mobilizar estes sentimentos ou de dar consequência a eles. Muitas vezes, acreditamos que estamos derrotados ainda como o jogo em curso; que a espiral rumo ao fascismo são favas contadas, restando-nos viver um enredo cujo script está pronto. Há até um certo gozo de morte, neste derrotismo. No texto, argumento que “nada está escrito” – como lembra Lawrence da Arábia, no filme de David Lean; que é preciso convocar este sentimento majoritário; e que isso obriga a esquerda a uma saudável reinvenção.

O senhor defende a articulação de candidaturas de esquerda de frente para as eleições municipais do próximo ano. Qual é o espaço para viabilizar essa proposta, inclusive, sem cair nas disputas ideológicas de esquerda x direita?

Estamos caminhando para um desastre autoinfligido. A pouco mais de um ano das eleições, observe o panorama dos partidos de esquerda em quase todas as cidades. Eles estão cegos para os dramas urbanos – desde os das periferias, convertidas pelo capital em senzalas pós-modernas cada vez mais abandonadas e violentas, até os das classes médias, obrigadas a uma vida bovina entre automóveis e cimento, mal disfarçada por certa ilusão de consumo medíocre.

Ao invés de se debruçarem sobre estes dramas, de se articularem entre si, de dialogarem com a sociedade, os partidos fazem cálculos meramente eleitorais. A nova lei, que dificulta as coligações nas disputas proporcionais (em 2020, para vereador), estimula esta tendência à mesmice. Em cada cidade, cada grupo de esquerda especula, neste momento, sobre que candidato a prefeito (mesmo sem chances de ser eleito) poderá ajudar a eleger a maior bancada de vereadores. Isso tende a piorar o quadro, porque levará à fragmentação. A direita, que já firmou suas lideranças nos anos anteriores, aproveita-se do vácuo para consolidá-las – mesmo sendo, como vimos, claramente minoritária.

A alternativa, também aqui, é uma repolitização. Para que existem, por exemplo, a Frente Brasil Popular e a Frente Povo sem Medo se não podem, diante deste cenário, pensar autonomamente uma saída? Friso que não é fácil. É preciso tempo, abertura e generosidade para construir frentes suprapartidárias – ou, na verdade, extrapartidárias, porque precisam envolver os cidadãos e coletivos não filiados a partidos – em favor de outras cidades possíveis. Mas é preciso começar já, para que haja tempo. Do contrário, prevalecerá, por exclusão ou decurso de prazo, a inércia, interna aos partidos, que leva ao acomodamento, à busca da solução mais fácil e automática.

Porque o senhor aposta que candidaturas não convencionais permitirão à esquerda encarar a crise da representação política?

As candidaturas não convencionais não são uma solução mágica – mas parte do processo de repolitização. Elas chamam tanta atenção porque os partidos, de tão despolitizados, perderam a capacidade de enxergar. Pense numa cidade como São Paulo: haveria uma candidatura mais eleitoralmente viável e mais capaz de expressar valores à esquerda que a de Dráuzio Varella? Não o consultei, ao escrever o texto – seu nome é apenas um exemplo. Mas defendo que a esquerda precisa deixar o cálculo meramente eleitoral (quantos vereadores e assessores poderemos manter?) e se debruçar tanto na formulação de programas para as cidades quanto na busca de candidatos que expressem a mudança. E isso tem de começar já, para que haja tempo.

As candidaturas não convencionais chamam atenção também porque tocam num problema de fundo. A esquerda brasileira não se sensibilizou ainda para a crise da democracia, não buscou dialogar com os vastos contingentes (mais uma vez, desde as periferias até as classes médias) que enxergam a falência do sistema político e querem saídas. Esta cegueira não é regra geral. Em alguns países, por perceber o fenômeno, a esquerda criou formações novas, partidos-movimentos como o Podemos, na Espanha, a Frente Ampla, no Chile ou o Morena, no México. Em outros, o novo irrompeu por dentro dos velhos partidos, oxigenando-os. Refiro-me, por exemplo, a Jeremy Corbyn, no velho Labour britânico e a Bernie Sanders, no Partido Democrata dos EUA. Há casos em que as antigas lideranças buscam soluções não convencionais. Veja a jogada estratégica genial de Cristina Kirchner, ao abrir mão da candidatura à Presidência e esvaziar por completo o discurso de Maurício Macri. No Brasil, falta um movimento de grande relevância neste rumo.

Como a esquerda está se opondo às pautas do governo no momento?

A esquerda institucional está tão ausente do cenário e do debate político que certas lideranças conservadoras começam a ocupar seu lugar. Em São Paulo, o prefeito Bruno Covas contrapõe-se às tentativas de obscurantismo ao dizer que a cidade não se curva à censura. Há alguns dias, o apresentador Luciano Huck lembrou que “não encontraremos soluções para a crise do Brasil em ambientes cheios de gente branca”.

O autoritarismo e o agravamento das condições de vida da maioria abrem um imenso campo para a ação da esquerda. Veja, por exemplo, a situação dos endividados (hoje, mais de 50% da população ativa), em contraste com os lucros indecentes dos bancos. Ou os ataques de Bolsonaro e Paulo Guedes aos direitos trabalhistas e, agora, à própria correção do salário mínimo. Ou a tentativa do presidente de defender seu filho às voltas com a Polícia Federal e de se rearticular com o Centrão e a “velha política” – contrariando todo o discurso “anti-establishment” e anticorrupção que é central à manutenção de sua base.

Tudo isso permitiria ação política intensa: debate, mobilização social, formulação de alternativas. No entanto, o que se vê? Uma esquerda voltada para dentro, para sua própria estrutura – o que o analista político Artur Araújo chamou de “umbiguismo”. Um pequeno exemplo: Bolsonaro quer nomear Augusto Aras para a Procuradoria Geral da República. Escolheu-o a dedo, contrariando centenas de procuradores, que participaram da formulação de uma lista tríplice que o presidente atirou ao lixo. O escolhido já anuncia que chamará para sua equipe personagens ligadas ao pior obscurantismo, como Ailton Benedito e Guilherme Schelb. Apesar de tudo isso, o que se observa? Parte importante da esquerda institucional pensa em votar em favor de Aras no Senado, por seu vago aceno – sem nenhuma garantia – de que poderá frear alguns dos aspectos mais autoritários da Operação Lava Jato.

Quais seriam as possibilidades de articular uma frente ampla neste momento?

Penso que, ao falar em “Frente Ampla”, você se refere a uma articulação que vá além da esquerda, que reúna também setores do centro ou mesmo da direita moderada contrários ao bolsonarismo. Sou totalmente favorável, porque, como se diz em Bacurau, “estamos sendo atacados” e não se deve desprezar o poder destrutivo do atual governo.

Penso que é preciso, inclusive, colocar cunhas entre os dois setores essenciais do bolsonarismo – os protofascistas e os ultracapitalistas. Repare, por exemplo, a capa mais recente de Veja, contrária à censura. A revista, que defende a ferro e fogo a pauta de ataque aos direitos sociais de Paulo Guedes, rejeita a tentativa de tolher as pautas LGBT. Ao mesmo tempo, parte importante da base de Bolsonaro (o pessoal da “Educação e Saúde padrão FIFA”) pode ser sensibilizada contra os cortes na Saúde, nas Universidades, na Ciência. É interessante que em todos os países em que há o ascenso da ultradireita pós-moderna, ele apoia-se nesta articulação muito poderosa entre o retrocesso nos costumes e o capitalismo sem barreiras. Por isso, é preciso encontrar maneiras de sabotá-la.

Mas insisto: não haverá “Frente Ampla” sem uma esquerda vertebrada. Enquanto a opinião pública não perceber que há uma visão de mundo alternativa tanto à de Bolsonaro quanto à de Paulo Guedes, e capaz de influir no cenário nacional, ela não poderá se mobilizar para defender esta saída. É esta a lacuna central no momento.

Alguns analistas têm avaliado que o atual momento político é mais grave do que o momento político de 1954, quando o ex-presidente Vargas se suicidou, ou até do que o golpe militar de 64 e, diante dessa conjuntura, defendem a necessidade de uma frente ampla como alternativa política ao governo atual. O senhor concorda com esse tipo de análise?

Em certa medida, sim, especialmente devido ao cenário internacional – em que o capitalismo assumiu sua face mais brutal e descartou a máscara democrática. As datas que você menciona referem-se ao período do pós-II Guerra e à hegemonia das políticas keynesianas. Diante da crise pós-1929 e, mais tarde, da emergência de uma União Soviética poderosa, o capitalismo respondeu com concessões parciais aos trabalhadores e certa tolerância ao desenvolvimento da periferia do sistema. Foi a época de um anticomunismo feroz (que levou ao golpe de 1964), mas, também, da urbanização e industrialização do país.

Diante da crise global de 2008, o sistema respondeu com a radicalização de suas características mais predatórias e selvagens. Os direitos sociais são atacados em todo o Ocidente. Veja, por exemplo, a Europa, onde as políticas de “austeridade” corroem o antigo Welfare State – e não são revertidas, apesar de condenadas majoritariamente, em praticamente todos os países. As portas ao desenvolvimento se fecharam. Mesmo os países que aderem plenamente ao neoliberalismo são relegados às traças. Veja o que está ocorrendo, neste exato momento, na Argentina. Ou repare no Estado de Vigilância permanente instaurado pelos EUA, a destruição de países como a Líbia, a Síria, o Afeganistão, o Iraque, a disposição de Washington de intervir em qualquer país, totalmente à revelia do Direito internacional.

É este contexto que favorece o surgimento impune de uma ultradireita em diversas partes do mundo; e que cria situações perigosíssimas. No momento em que dialogamos, podemos estar à beira de uma nova guerra no Oriente Médio, agora com uma agressão contra o Irã, e consequências imprevisíveis. Porém repare: tudo isso revela, simultaneamente, a fraqueza do sistema, sua incapacidade de gerar consensos. É justamente por isso que, nos países em que a esquerda tem aparecido com sua face própria, e com atenção às mudanças produzidas pela pós-modernidade, ela avança e disputa. Nos EUA, por exemplo, Bernie Sanders pode vencer Donald Trump – mas é bem menos provável que Joe Biden, democrata muito moderado, burocratizado e ligado ao poder econômico, o faça.

Que avaliação tem feito dos primeiros meses do governo Bolsonaro?

Frei Betto chamou a atenção, há algumas semanas, para a impropriedade de falar que o governo não tem projeto. Mostrou que há clara coerência nas ações de Bolsonaro, e que elas implicam fazer o país regredir à condição de colônia – com todo o séquito de consequências trágicas.

Porém, gostaria de ressalvar que isso não constitui um projeto, no sentido de um conjunto de políticas capaz de criar hegemonia, de estabelecer consensos, de levar os próprios dominados a aceitar sua condição, em troca de certos benefícios. É, como afirmou o próprio Bolsonaro, um projeto de desconstrução – ou, dito sem eufemismos, de devastação nacional.

Estamos em emergência, sob risco de desconstrução do Brasil – e isso precisa ser dito com clareza. Assim como precisam começar a ser desenhadas as políticas (totalmente opostas às de Bolsonaro) capazes de promover o que devemos chamar de resgate. Veja, neste sentido, o exemplo dos EUA, onde a rejeição a Trump levou a esquerda a formular a proposta inteligentíssima do Green New Deal. É extremamente radical, no sentido de que se baseia em lógicas opostas ao neoliberalismo, mas ao mesmo tempo vai muito além do cacoete da extrema esquerda, de apenas lançar slogans anticapitalistas sem sentido concreto. Dialoga, por exemplo, com Roosevelt, visto pela grande maioria dos norte-americanos como símbolo de um tempo de avanços.

Alguns analistas afirmam que as declarações do presidente são parte de uma estratégia para pautar o debate nacional enquanto ele encaminha as reformas que considera necessárias. Concorda com essa análise?

Certamente. E muitas vezes, perdemos tempo mordendo as iscas que ele põe à nossa frente. Precisamos levar muito a sério a hipótese de que, como afirmou há algum tempo Boaventura Santos, há uma espécie de “internacional ultradireitista” por trás de todos estes governos. Desde a aliança entre o conservadorismo moral e o capitalismo sem freios, até as táticas de manipulação eleitoral e a tentativa de criar factoides, para agir à sua sombra – tudo é muito parecido nestes processos.

Em nove meses de governo, o próprio presidente Bolsonaro tem pautado a eleição presidencial de 2022. Como o senhor interpreta essa iniciativa?

Como mais um sinal de que há um imenso vácuo político. Imagine isso: um presidente que devasta direitos, agride a Amazônia e os demais biomas do país, tem popularidade mais baixa (a esta altura do mandato) que todos os seus antecessores, sente-se, apesar disso, com mãos livres para pautar a agenda nacional e governar em franca campanha eleitoral. Só é possível em situações em que não há, de fato, oposição efetiva alguma.

Vale notar que surgem, aí, outras condições para abrir brechas e provocar divisões entre as forças governistas. Veja, por exemplo, a virulência com que Bolsonaro ataca até os políticos muito próximos, como João Doria. Mas vale a metáfora futebolística: time que joga 100% na defesa pode no máximo empatar – e em geral é derrotado, até por saturação.

Bolsonaro foi eleito com a pauta antipetismo e anticorrupção. Em que aspectos ele se assemelha e se distancia do jeito do PT de fazer política e como tem tratado a pauta da corrupção no seu governo?

É difícil falar do “jeito PT de fazer política”, porque o petismo sofreu enormes transformações ao longo de sua história – e neste conceito caberiam tanto iniciativas extremamente inovadoras e de repercussão internacional, como os Orçamentos Participativos quanto, no governo federal, a recusa à mobilização social e a acomodação ao que a política brasileira tem de pior.

Sobre a pauta anticorrupção de Bolsonaro, bastaram oito meses para ele rasgar a máscara – veja a proteção a seu filho investigado pela Polícia Federal, a compra de votos descarada no Congresso Nacional ou os ataques à Procuradoria Geral da República, à Receita Federal e à própria PF. Está surgindo rapidamente espaço para voltar contra Bolsonaro as pautas anticorrupção. E devemos lembrar que rejeitar o udenismo, ou a ideia tosca de que “a corrupção é o maior mal do país” não significa esquecer a importância e a ressonância popular desta pauta.

Membros da própria direita, como o deputado Kim Kataguiri, já manifestaram a insatisfação de parte da direita com o governo Bolsonaro e, inclusive, procuram se distanciar e se diferenciar do governo. O que esse tipo de postura no interior da direita sinaliza?

Que está aberta, também no interior da direita, uma disputa encarniçada pelo poder. Rodrigo Maia, Luciano Huck, o próprio Sérgio Moro – todos tentarão se viabilizar, nos próximos anos, como alternativa a Bolsonaro. Se o conseguirão, são outros quinhentos. Mas buscarão fazê-lo e isso abrirá mais brechas na coalizão no poder.

A situação é gravíssima e os riscos imensos. Mas dizer que não temos saída é tolice, comodismo e morbidez. 

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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